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A violência no cinema tem uma longa história que não poderei rastrear neste simples artigo, no qual quero apenas apontar algumas coisas, registrar algumas impressões que me ficam de ter visto, em dois dias sucessivos, dois filmes muito diferentes, mas basicamente dominados por um tema: a violência.  Foram eles No silêncio da noite, thriller "noir" de Nicholas Ray realizado em 1950, e O gângster, produção norte-americana de 2007, dirigida por Ridley Scott, que foi um grande sucesso do ano passado e concorreu com trombetas favoráveis da crítica neste 2008.

 

Começando pelo segundo, posso dizer que tanto o espectador comum quanto o crítico especializado estão sujeitos a uma coisa rotineira, hoje em dia: o ataque maciço da publicidade, que prepara todos para determinadas produções com toneladas de informações e seduções de todos os tipos. Somos manipulados para gostar de certos filmes, queiramos ou não, e só depois de tê-los visto é que percebemos que, a despeito de todas as firulas e confeitos novos que eles apresentaram na forma, o que nos contavam era mais do mesmo, refletindo a velha moral cínica dos comerciantes que sabem reciclar o já faturado e seguir faturando. Mas como gostamos de cinema, e isso é provavelmente mais vicioso do que parece, seguimos como consumidores ávidos de alguma coisa que não sabemos bem o que é e que queremos que seja extraordinária. Portanto, o círculo vicioso é incurável.

 

O caso de O gângster é bem assim: a crítica teceu grandes loas ao filme (na capinha do DVD, diz-se que é "o maior filme do ano"), as indicações ao Oscar impressionaram, e lá estão dois atores de que o público não poderá deixar de gostar: Denzel Washington e Russell Crowe. Ridley Scott, diretor capaz de grandes coisas, é irregular, e faz filmes bem esquecíveis também. Mas tem o senso do espetacular e sabe fazer produções imponentes, e em O gângster voltou a acertar: o filme é muito bem feito, absorvente e não há reparos técnicos a fazer: a coisa nos enche os olhos, vai num crescendo de interesse, e não é um filme curto.

 

Mas, quando termina, a impressão que se tem é de que, descontados os méritos técnicos, as boas interpretações, locações bem escolhidas, etc, viu-se foi uma variação (ainda que se inspire numa história real) de O chefão, Scarface e outros filmes, pequenos e grandes, que tematizavam esta coisa muito cara ao cinema americano: a história de um pulha violento que "vem de baixo", que "lutou pela vida" e que, não importa os métodos, chegou lá, no Olimpo dos vencedores, tornou-se um imperador em seu meio, apoiado no carisma e numa capacidade de jogar fora todo e qualquer escrúpulo.

 

É um crápula letal, mas se ampara no "sonho americano" da realização individual e até exibe uma ética rígida de negociante, não importando que seu produto seja morte certa para muita gente. Seu antagonista moral, o Bom Moço lutador e de uma honestidade acima de qualquer dúvida, claro, também se fará presente. Isso é patente neste filme, que conta em paralelo as histórias do Vilão e do Herói, jogando areia nos olhos dos que achariam isso muito simplório através de cenas muito movimentadas e bem dirigidas.

 

Denzel Washington, para variar, é desta vez o Vilão, mas ele não é muito além do personagem de sempre, com seu "estopim curto" de machão heróico, cujo ar de bom sujeito o autoriza a aprontar qualquer barbaridade contando com a complacência e o estímulo do espectador. Russel Crowe é o Herói, e também faz o de sempre — um sujeito que dá a impressão de desleixo, meio "gauche", até um pouquinho abestalhado, que tem a um só tempo um coração de ouro e uma capacidade temível de despachar gente malvada desta pra melhor. Aqui, para "confeitar" um pouco, Ridley Scott deu um jeito de torná-lo um mulherengo inveterado, desorganizado na vida conjugal e particular, para dizer que ele não seria um modelo tão rígido de honestidade. Mas é claro que isso só funciona em favor do personagem e prova que sua masculinidade é inatacável, a despeito de todas as suas cafajestadas. Um "macho paca" não pode, para os americanos, não sê-lo também na preferência sexual, e lá vai Crowe levar uma mulher para uma cozinha e "executá-la". Ele não poderia fazer sexo de maneira simples. Tinha que ser de um modo machíssimo, parecendo um estupro apoteótico. E, na questão da guerra que declara a Washington, arrebanha alguns sujeitos também machíssimos, "gauches" também, mas muito honestos, e forma um grupo que evoca de imediato Os intocáveis, de Brian de Palma, em guerra declarada a Al Capone.

 

Nisso e no resto, o filme é particularmente mistificador, a despeito de sua imponência: a banalidade da violência e do sexo "espetacular" nos é mostrada com justificativas aparentemente sólidas, e o público pode desfrutá-la sem dores na consciência, porque os clichês estão lá, mas foram muito bem combinados. Dá até para os apreciadores de cinema de arte acharem que viram alguma coisa muito profunda, ambígua, matizada etc e tal. Dá até para ganhar vários Oscar.

 

O que me cansa (e deve cansar a muita gente que, a despeito de gostar de cinema, repele a violência e não vai mais ver nada) é que esses filmes sempre autorizam o espectador a desfrutar de seus piores instintos travestidos em nobres funções — esquartejar, arrebentar, trucidar nossos inimigos ideológicos, sociais, étnicos parece natural e desejável, dados certos postulados. O que não temos de fascismo consciente na vida, deixamos existir impunemente na sala de projeção. Alguns filmes já nem se preocupam em apresentar nada que não seja sadismo puro, caso da série Jogos mortais, mas os diretores mais conscientes e de maior prestígio crítica precisam ainda do aval da arte e da moralidade, ainda que de maneira capenga. Servem o horrendo, o odiento e o inaceitável de outras maneiras, mais astutas.

 

O cinema, o que fez? Já nos acostumou a um mundo horrível, e, tão acostumados, nem notamos o quanto o tornamos mais horrível a cada momento, autorizando-nos a sentirmo-nos bem com essas coisas. E aí, as pessoas ficam assustadas com o grau de violência inaceitável nas ruas, nos noticiários. E não percebem o quanto já a engoliram cinicamente, e com exaltação, ao vê-la nos filmes. Essa violência social toda tem um liame muito direto com a alma dos "bons cidadãos".

 

 

A VIOLÊNCIA CONDENADA

 

Ao assistir velhos filmes, no entanto, a gente se surpreende percebendo que o cinema comercial não foi sempre assim, e tinha mesmo, em outros tempos, preocupações morais bem menos duvidosas. Ver a produção No silêncio da noite, do diretor Nicholas Ray (talentoso, mas superestimado pela crítica francesa), deveria ser imperioso para quem está entupido da dieta de violência de hoje em dia. Mas, claro, os espectadores comuns evitam filmes antigos (alguns sob a alegação de que são em preto e branco, como se as cores fossem tudo, banindo obras-primas como Cidadão Kane de seu cardápio) e evitam, sobretudo, filmes em que os heróis têm dúvidas, inconvicções, hesitações, incertezas, e por vezes estão em posição indefensável, humanos demais para fazer a importante e covarde catarse que os espectadores de cinema necessitam. Donde entra o Dixon Steele interpretado por Humphrey Bogart nesse filme.

 

Revestido da forma de "thriller noir", com os clichês de noite, sombras, um assassinato não esclarecido, personagens cínicos, No silêncio da noite é, na verdade, menos que um thriller, um estudo de caráter. A produção foi bancada em parte por Bogart, que na certa queria o papel, mesmo que antipático. (E deve ter sido, porque pouca gente lembra do filme). O Dixon Steele que o ator compõe é um violento, um colérico e, ainda que coberto de boas razões, seu rancor vai ao limite do homicídio. Pára aí, no entanto, e ele é acusado de um crime que realmente não cometeu. Mas que poderia ter cometido, num de seus acessos de cólera. E é nesse meio-tom cambaleante que o filme seguirá.

 

O que é extraordinário, no filme, é que ele seria impensável, para o público de hoje em dia: as hesitações de um colérico seriam estranhas — haveria uma tendência quase unânime a apoiar as suas brigas, seus rancores, seus extravasamentos bárbaros (afinal, seria Bogart matando gente por nós, e why not?). Mas entra a sensibilidade, a delicadeza do diretor, e vemos nesse filme coisas que nunca vemos em outros: a violência como coisa totalmente inaceitável e condenável, absurda, ferindo indiscriminadamente gente que a merece e gente que não a merece (o soco que Dixon dá em seu melhor amigo, velhinho, quebrando seus óculos, é terrível). E há uma mulher (Gloria Grahame) que, ao contrário de esposas de Scarfaces e Frank Lucas (o Washington de O gângster), odeia o fato de ter se casado com um homem que é um assassino em potencial. É dilacerante, mas o final do filme — exemplar de fato — não seria aceito de modo algum hoje em dia. Somos, hoje em dia, coniventes com a violência de modo muito mais profundo e alarmante. Tropa de elite foi, a meu ver, um filme particularmente asqueroso, nesse aspecto.

 

Há aí, na certa, abismos de gerações, épocas, visões de mundo — cinqüenta e oito anos se passaram, e isso não é brincadeira. Mas que o mundo atual perdeu a capacidade de notar o quanto é horrível, perdeu. E o cinema, aproveitando-se disso ou não, só tem feito dar testemunhos dessa queda.

 

 

 

julho, 2008