Resumo: Neste ensaio analisamos, em comparação, os romances Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Amar-te a ti nem sei se com carícias, de Wilson Bueno, tendo por percepção a dúvida que os narradores instauram nos referidos textos, levando o leitor / o analista de literatura também a esse percurso duvidoso.

 

Palavras-chave: dúvida, memória, intertexto, literatura brasileira

 

 

Gostaria também de dizer algo sobre Dom Quixote. Foi um dos primeiros livros que li de cabo a rabo. Recordo até as gravuras. A pessoa sabe tão pouco sobre si mesma que, quando li o Dom Quixote, pensei que o fazia por causa do prazer que tirava do estilo arcaico e das aventuras do cavaleiro e do escudeiro. Agora acho que meu prazer estava em outra parte - que ele vinha do personagem do cavaleiro. Já não tenho mais certeza se acredito nas aventuras ou nas conversas entre o cavaleiro e o escudeiro; mas sei que acredito no personagem do cavaleiro, e imagino que as aventuras foram inventadas por Cervantes a fim de nos mostrar o personagem do herói (Jorge Luis Borges).

 

 

         Vulgarmente, quando se pretende ler / analisar / compreender um texto literário, pergunta-se "o que o autor quis dizer?". Segundo Paul Valéry, o autor não quer dizer nada, pois ele já o disse na consecução de sua obra. Cabe ao leitor perguntar-se o que a coerência interna / as relações de verossimilhança estabelecidas na teia textual lhe revelam ou lhe escondem, e o que o seu próprio horizonte de expectativas pode lhe propiciar descobrir. Parece-nos óbvio que uma leitura de superfície, uma leitura de entendimento não pode possibilitar o tipo de apreensão sugerido, mas já é um começo.

         Teçamos uma breve distinção entre entender e compreender. O entendimento se dá quando se apreendem os elementos estruturais de um texto. Por exemplo, num romance: passamos a entendê-lo a partir do momento em que divisamos as personagens e como elas se enredam no decorrer da trama. No que se refere à compreensão, recorremos a Bakhtin quando ele assevera que, para compreender, é necessário que se estabeleçam relações para além da superfície textual. No caso da leitura literária, é preciso que o leitor esteja disposto e disponível para confrontar-se permanentemente com outros textos (literários ou não; verbais ou não-verbais) que rompam com os limites de leituras cristalizadas pela tradição e catalogadas por estereótipos analíticos.

         Assim, segundo Haquira Osakabe no ensaio Ensino de Gramática e Ensino de Literatura (2004), a leitura literária e, por conseguinte, o ensino de literatura passaria a ser uma "experiência transformadora" e, acrescentamos às falas de Osakabe, cambiente, capaz de mobilizar um universo de trocas, criadoras de espaços de tensão e de dúvidas que colocariam em xeque a mera assimilação de modelos e de informações. É preciso que leiamos para nos formar e não somente nos informar. Ler também é saber escutar aos outros e a si próprio, aprendendo a suscitar o inaudito e o inaugural, uma vez que cada leitura é a primeira.

         Foi com base nessa percepção compreensiva de uma leitura relacional, cambiante, enfim, dialógica, que Julia Kristeva passou a ler os textos literários / artísticos para além de uma possível carga de influências (aqui a expressão influência está sendo lida como uma espécie de tributo aos antecessores, no mais das vezes, melhores do que os "influenciados"), numa perspectiva intertextual. Kristeva concebeu a intertextualidade tendo por norte a observação de que "Qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação dum outro texto" (1974: 64). Portanto, podemos pensar no escritor como um "reescritor", posto que ele (o escritor) põe em cena a reescrita de toda uma tradição literária e artística.

         Eliane F. Cunha Ferreira, em seu livro Para traduzir o século XIX: Machado de Assis (2004), especialmente no capítulo IV, intitulado Dom Casmurro: 'Retratos que valem por originais', destaca como o escritor brasileiro teria agido, no caso da escrita do Casmurro, segundo o que Haroldo de Campos chamou de "plagiotropia", ou seja, como Machado teria se apropriado (devidamente) da tragédia Otelo, de William Shakespeare, sendo Casmurro uma espécie de Otelo à brasileira. Além disso, Ferreira chama-nos atenção para outros "Shakespeares" presentes em Dom Casmurro, como, por exemplo, o tenso e duvidoso Hamlet.

         Na esteira das considerações acima feitas, pretendemos ler um romance contemporâneo brasileiro, Amar-te a ti nem sei se com carícias1, de Wilson Bueno, e as dúvidas que o relacionam ao Dom Casmurro. O diálogo de Bueno com o século XIX já se inicia no título que, se considerado como um verso, é um decassílabo, o verso por excelência da tradição clássica.

         Quando lemos o Amar-te..., vemos, além da presença de Machado de Assis, Shakespeare, Lawrence Sterne, Camilo Castelo Branco, entre outros. Portanto, o leitor dessa obra de Wilson Bueno poderá explorar os vários intertextos presentes no texto do escritor paranaense. No entanto, todos eles não comprometerão o texto do próprio Bueno, posto que o romance está perpassado por referências mais ou menos explícitas em conformidade com as expectativas e a capacidade relacional de cada leitor. Aqueles que quiserem ler a obra sem quaisquer referências poderão fruí-la de modo tão aprazível quanto possível.

         Centraremos, pois, nossa leitura / compreensão no intertexto machadiano do Dom Casmurro encontrado em Amar-te... No entanto, não deixaremos de lado outros intertextos, sejam eles do próprio Machado, sejam eles de outros escritores.

         Comecemos com Machado: ao menos três romances nos parecem flagrantes nas linhas de Amar-te...: o já mencionado Casmurro, o Memorial de Aires e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Do segundo livro, notamos o parentesco das elocubrações do narrador de Bueno com as do Conselheiro Aires, velho e já cansado de guerra. Da terceira obra, pode-se falar na liberdade que o narrador - o defunto-autor - assume diante dos fatos narrador, aliás, procedimento já utilizado (o da liberdade narrativa), para ficarmos na literatura de língua portuguesa, por Almeida Garrett em seu Viagens na minha Terra. Entre os três romances machadianos, como já referimos, selecionamos como matriz comparativa o Dom Casmurro.

         Por que selecionamos o Casmurro? Tanto nessa obra quanto em Amar-te..., vislumbramos juízos de valores construídos com base na dúvida, ou melhor, na tensão entre a verdade e a dúvida. Antes de iniciar a análise das obras de Machado e de Bueno, discorramos sobre o que chamamos, no título deste ensaio, de "o credo da dúvida" ou "do amadorismo da memória".

         Partamos da concepção de dúvida estabelecida pelo filósofo Vilém Flusser:

 

 

A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé,ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, ser vista como 'ceticismo', isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento. Em dose excessiva paralisa toda atividade mental. A dúvida, como exercício intelectual, proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experiência moral ela é uma tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa, portanto de todo conhecimento sistemático. Em estado destilado, no entanto, mata toda curiosidade e é o fim de todo conhecimento (1999, p. 17).

 

         Logo, a dúvida acaba com a "boa fé", podendo, em hipótese, estabelecer uma nova e melhor fé, no entanto pondo a perder (talvez para sempre) a bondade, a inocência e a aparente autenticidade que cada um acredita haver em si e em suas descobertas. Por outro lado, a dúvida age como força propulsora, como força intelectual a serviço do homem. Contudo, a dúvida excessiva faz-nos pensar que somos como Sísifo2.

         O motor da dúvida está posto desde o início do Dom Casmurro quanto do Amar-te.... Vejamos alguns pontos relevantes dessa dúvida na relação entre ambos.

         A epígrafe ao Amar-te... - "O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado" - é de Machado de Assis. A que pecado refere-se Machado: ao pecado de cada um? Ao pecado da escritura? Ao pecado de dar a público a escritura? Qual é / foi o pecado do Amar-te...? E as perguntas sobre esse pecado podem ser as mesmas quanto ao pecado como referido por Machado?

         No entrecho inicial do Amar-te..., intitulado À maneira de prólogo, fala-se no encontro de manuscritos em uma casa aristocrática recém-demolida no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, e que teriam se tornado o Amar-te... Eis o fragmento com que começa o prólogo:

 

 

Na recente demolição de aristocrática caso no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, os manuscritos deste Amar-te a ti nem sei se com carícias (note-se - um decassílabo perfeito...), protegido por uma capa de couro, gravada com as entrelaçadas iniciais L.P., que faz supor seja o monograma de Leocádio Prata, mas também o de Lavínia Prata ou mesmo, cruel coincidência, não se descarte, o de Licurgo Pontes, vieram dar às mãos deste vosso escriba, conhecido cultor da prosa antiga (BUENO, 2004: II. Grifo nosso).

 

         As dúvidas: quem é L.P.? Leocádio, Lavínia ou Licurgo? Quem transcreveu ou reescreveu os manuscritos assina como W.B. Quem é W. B.? Wilson Bueno? Notemos a expressão "entrelaçadas", por nós grifada na citação anterior, utilizada quando se fala nas iniciais L.P.: elas estão de tal modo cruzadas / envolvidas que seria praticamente impossível atribuí-las a um único autor.

         No capítulo II da Estética da Criação Verbal, Bakhtin escreve:

 

 

Tomemos o caso de Édipo. Nenhum momento de sua vida, uma vez que ele mesmo a vivencia, carece para ele de significação concreta no contexto semântico-axiológico dessa vida; sua diretriz volitivo-emocional, em cada momento dado, encontra sua expressão no ato (ato-ação e ato-palavra), reflete a si mesma na confissão e no arrependimento; no seu íntimo ele não é trágico no sentido rigorosamente estético dessa palavra; o sofrimento, vivido concretamente de dentro do próprio sofredor, para ele mesmo não é trágico [...] Se apenas vivenciamos empaticamente com Édipo (admitindo a possibilidade desse vivenciamento empático puro), vemos com os olhos dele, ouvimos com os ouvidos dele, ocorre a imediata desintegração de sua expressividade externa, de seu corpo, de sua série de valores plástico-picturais que lhe revestiam a vida e lhe davam acabamento para nós: após servirem de transmissores do vivenciamento empático não podem adentrar o empaticamente vivenciado, porque no mundo de Édipo, na forma como ele o vivencia, não há seu próprio corpo exterior, não há a face picturial-individual como valor, não há as posições plasticamente significativas ocupadas pelo seu corpo nesse ou naquele momento da vida; (2003, p. 64-65. Grifos do autor).

 

 

         Assim, analogamente, mesmo o W.B., que poderia ser Wilson Bueno, não o é, uma vez que a vivência do sujeito descobridor dos manuscritos e autor do prólogo que o abre o Amar-te... instaura-se no interior de um universo estético, de uma realidade, como Bakhtin chama, "plástico-picturial", e em um mundo vivenciado factualmente. Portanto, no corpo do texto, em sua realidade picturial, quem são W.B., L.P., Leocádio, Lavínia e Licurgo? De quem são as memórias narradas em Amar-te...? Lembremo-nos de que as memórias são construídas com base no que seletivamente se guarda do passado e das impressões que ele nos legou. A memória oferece ao memorialista a possibilidade de auto-reabilitação, de autocomiseração, de autopunição ou de voltar todas as suas mazelas contra outrem.

         No capítulo primeiro do Casmurro, o narrador-protagonista nos dá notícia de seu malfadado encontro com um rapaz do bairro, conhecido "de vista e de chapéu", que se põe a ler seus versos durante uma viagem de trem. O protagonista fecha os olhos por algumas vezes durante a declamação. Após o incidente, o versejador passa a dizer mal de seu fatigado (a se crer nas falas do narrador) ouvinte. Entre as alcunhas que lhe dá, está a de "Dom Casmurro", que passa a acompanhar Bentinho em seu percurso como autor e titula sua narrativa. Leiamos:

 

 

Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livro que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto (MACHADO DE ASSIS, 1992, p. 13).

 

 

         No segundo capítulo, intitulado Do livro, o narrador-protagonista oferta ao leitor a seguinte proposição sobre vida e memória:

 

 

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga parece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira (MACHADO DE ASSIS, 1992, p. 15. Grifo nosso).

 

 

         Como compreender os meandros da memória alheia e da nossa própria? As aparências das reminiscências são essencialmente imagens, ou melhor, miragens3.

         Para rematar nossa segunda dúvida, não nos esqueçamos de O nome da rosa, de Umberto Eco. Quantos leitores não inquiriram o escritor sobre os tais manuscritos encontrados em Buenos Aires e que teriam dado azo ao engenho de Eco? No ensaio Ironia Intertextual e Níveis de Leitura, o próprio autor nos adverte sobre o topos literário do manuscrito:

 

[...] o título da página [de O nome da rosa] em que se fala do manuscrito é 'Naturalmente um manuscrito'. Este 'naturalmente' tem várias espessuras, pois de um lado pretende sublinhar que se está recorrendo a um topos literário e, de outro, desnuda uma 'angústia da influência', dado que a remissão pretende dirigir-se (pelo menos para o leitor italiano) a Manzoni [...] (ECO, 2003, p. 203).

 

 

         No Amar-te..., no capítulo intitulado Prosa de Amador, o narrador propõe uma adivinha subliminar ao leitor: o amador o é por falta de traquejo com a escrita ou o amador o é por que ama algo ou alguém? Ou ambas as coisas? Leiamos trecho do capítulo em questão:

 

Não sou nem nunca fui homem de Letras. Ainda que tenha me encaminhado para o Direito em razão de um gosto precoce pelas palavras, não fui homem de cometer versos, mesmo na juventude, quando todo candidato a bacharel, antes de graduar-se, nem sempre escapa ao álcool, aos amores abismais e aos sonetos - estes dous últimos, aos menos indissociáveis.

 

Daí o nenhum compromisso com o estilo - visível na caligrafia correta, e quase sem rasura, com que, sem mais delonga, intento compor as memórias tristes daquele 1870 que intenso ficou-me na alma como o ano em que a vida parece se me partiu em dous. Os olhos. Impossível não guardar, secreto no coração, o faiscar azul dos olhos quando extasiavam (BUENO, 2004, p. 37-38).

 

 

         No Dom Casmurro, Bentinho também era um amador, tanto de Capitu quanto em suas (in) certezas sobre o caminhar da narrativa, dirigindo-se constantemente ao leitor sobre suas impressões.

Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...? [...]

 

Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por um célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo (MACHADO DE ASSIS, 1992, p. 15).

 

         Voltando ao Amar-te..., no capítulo A Caça e o Caçador, quem é a caça e quem é o caçador? Quais são as base de fato da questionável e conflituosa relação entre Leocádio e Licurgo? Terá sido Lavínia o entrave, seja para uma relação de amor entre Licurgo e ela própria, seja para uma relação amorosa entre Licurgo e Leocádio? No capítulo referido, Licurgo chega à casa de Leocádio molhado do banho de mar. Passa então ao quarto de banhos, escoltado por Elvira, irmã de Leocádio, e por este. Seu banho e seus movimentos de limpeza corporal serão acompanhados pelo amigo, que está sentado em um canapé ao lado da banheira:

 

 

Daqui de novo pude ver: a pele de menino, os modos de menino, ainda que sofridamente maduros, sob as turvas sobrancelhas, lhe cintilassem dous olhos marinhos. Estes mesmos que agora vigiavam o jardim do Flamengo, insuspeitíssimos do que tramava o vegetal paraíso, eles próprios miméticos do céu da tarde, olhando e sendo olhados, num jogo que enervava e atazanava, condenava e fazia sofrer. Sei que eu era, neste momento de glória, o caçador, e ele, o caçado. Desconheço quanto durou a vigência nítida de ambos os papéis, mas agarrei-me à indeclinante lascívia de domar paisagem e caça. Entre mim e Licurgo, todos os ruídos e os silêncios da tarde. [...]

 

Até que não suportando mais, ele que todo o tempo contara com o retorno de Elvira à sala, disse manso, quase submisso:

 

- Creio já sabes, que entupiu a banheira dos hóspedes...

 

Fingi - diga lá, lancinante memória -, que ainda não sabia, que sempre me aborreceram as miúdas cousas chinfrins do dia a dia, o que ficava bem acordo de mim, sobremaneira agora em que era eu o caçador e ele, Licurgo, o caçado (BUENO, 2004, p. 31).

 

         A troca de papéis - caçador e caça - percorrerá toda a trama do Amar-te..., especialmente quando em cena estão Leocádio e Licurgo. Nesses momentos, a impressão é a de que Lavínia não conta, isto é, sua ausência não é presentificada como elemento perturbador. A perturbação instaura-se na tensão dos olhares e dos silêncios que permeiam o trato entre Leocádio e Licurgo.

         Em Dom Casmurro, se Capitulo é figura, desde o início de sua aparição, tratada como uma presença dramatizada e matizada por suas marcações no palco da vida, capaz de ingressar nos "papéis" adequados para cada ato, o capítulo CXXIII, Olhos de ressaca, é apresentado ao leitor como o gran finale da farsa de Capitu:

 

No meio [da confusão] Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

 

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a tinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã (MACHADO DE ASSIS, 1992, p. 160-161).

 

         Depois dessa cena tudo o mais entre Casmurro e Capitu são silêncios, olhares, interditos e não-ditos, até o capítulo CXXXVIII, quando o narrador-protagonista diz à esposa sobre Ezequiel: "- O quê? perguntou ela como se ouvira mal. - Que não é meu filho" (MACHADO DE ASSIS, 1992: 174). É o rompimento das relações de aparente cordialidade entre o casal e, a nosso ver, o recrudescimento da dúvida que perseguirá o leitor até as páginas finais da narrativa machadiana.

         No capítulo Cousas que o tempo esvaece (com apenas uma página) do Amar-te..., a memória e a ação do tempo sobre ela, seja quem for o narrador do romance, é explicitamente referida:

Como os eventos de um tempo, por mais dramáticos, logo desvanecem? Inda ontem, nem dez anos, este mesmo Districto Federal parece ia pôr-se abaixo com o que nos pareceu uma quase guerra civil. [...]

 

Consola-me que as coisas assim sejam - dissolutas no tempo, por maior importância que lhes tenhamos conferido, no momento nada são - dissipam-se, esvaem, esbatem-se no nada que é o natural do passado, muito embora nevróticos como eu tentem ainda uma vez recapturá-las baixo quase insuportável solidão (BUENO, 2004, p. 174).

 

         Se o narrador de Amar-te... é explícito quanto aos seus esforços rememorativos, Casmurro não o é. No último capítulo - É bem, e o resto? - o narrador-protagonista machadiano tenta desviar o olhar do leitor de sobre o seu próprio olhar para com o enigma de Capitu:

 

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. [...]

 

É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à Historia dos Subúrbios (MACHADO DE ASSIS, 1992, p. 183-184).

 

 

         Sabemos que este é um breve levantamento das possíveis dúvidas e suas referências dialógicas no Amar-te... Assim, buscamos ver em Wilson Bueno, mais do que um escritor, um reescritor e um experimentador de toda uma tradição, posta em cena na literatura universal, no caso especifico deste ensaio, por Machado de Assis em Dom Casmurro.

 

Experimentar ou apenas narrar? Cada novo narrar, e isto é tudo!, não escapará nunca de se estabelecer como 'continuísmo' e profanação, obediência e rebeldia, tumultos iconoclastas e exercícios de admiração frente aos modelos que lhe são, queira ou não queira, fundadores. Contar ou experimentar? Para lembrar Clarice Lispector, a propósito de escrever, 'mais vale um cachorro vivo'... (BUENO, [s.d.], p. 37).

 

 

         Valendo-nos desse trecho do próprio Wilson Bueno, enfeixamos nossos argumentos neste ensaio com a seguinte questão: experimentar, narrar ou ambos - esta é a dúvida.

 

 

Doubt's Credo or Memory's Amateur

 

Abstract: In this paper we analyze aspects of Dom Casmurro, by Machado de Assis, and Amar-te a ti nem sei se com carícias, by Wilson Bueno. In both cases, there are representations that demonstrate different manipulations by lecturer's doubt and this to interests us.

 

Keywords: doubt, memory, intertext, brazilian literature

 

 

 

Notas e Referências 

 

 

 

julho, 2008

 
 
 
 

Rosana Cristina Zanelatto Santos. Professora do Departamento de Letras do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS - Campo Grande - Mato Grosso do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.