De um cotidiano, uma visão de mundo. De uma observação, possibilidades infinitas e reflexões sobre o humano e suas idiossincrasias. Das reflexões, o entendimento. Do entendimento, o compartilhamento do leitor com a obra e a apreensão da crítica, da ironia e da estética machadianas.

Machado de Assis é homem de um tempo e localização atemporal, ainda que inserido numa época. Ler Machado é penetrar na viga mestra da sua obra: a sua estética. Uma estética que repousa numa linguagem repleta de silêncios, elaborada através do seu olhar irônico e crítico ante um mundo de convenções. Uma estética em que "no fundo da calma superfície da despreocupação aparente, esconde-se o aguilhão de uma lucidez desesperada", como o professor, romancista e crítico literário Flávio Aguiar tão agudamente analisou, em seu artigo intitulado "Murmúrios no espelho".

No conto "A chinela turca", o silêncio da linguagem e a lucidez do contista disfarçam-se na verdade estética que funciona a serviço de um jogo seu, antecipado sutilmente no próprio título que ele escolhe. Machado surge como um pregador. De peças. Mestre de um jogo que estabelece entre seus personagens, a trama que tece e o leitor, ele esconde a carta triunfal, o coringa responsável em manter acesa a curiosidade de quem tenta desvendá-lo do baralho do seu texto — um drama que envolve a personagem principal, o bacharel Duarte, um homem apaixonado prestes a ter um encontro com a amada, na leitura de "uma peça do gênero ultra-romântico" escrita pelo Major, o visitante inesperado e "um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo".

Dramas à parte, o autor também nos premia com o seu domínio sobre o tempo em que a narrativa se estrutura. Horas longas e curtas, vagarosas e rápidas surgem paralelamente aos fatos apresentados e reforçam ora a monotonia, o desalento, o espanto, ora a surpresa das personagens. E as peças não se encaixam. E o jogo fica mais duro. E Machado continua. Apostando, confiando e pedindo a participação do leitor, afinal, "há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias".

Mas, como dizia Afrânio Coutinho, em seu estudo crítico "Machado de Assis na Literatura Brasileira", "a realidade, o meio, para ele, constituíam apenas a base, a matéria-prima que, à imagem de todos os grandes artistas, ele transfigurava e transformava em arte. Para ele, a verdade histórica existia para ser transmutada em verdade estética". O conto "A chinela turca" é um ótimo exemplo da criatividade ilimitada de Machado. O real da ficção se mistura ao imaginário do personagem Duarte — que vive sua fantasia ao fugir, através de sua imaginação, da leitura do drama do Major. Uma história dentro de outra história que leva o leitor a ser um viajante duplo do imaginário.

E, de peça em peça, como num jogo de xadrez, de atos em atos, como numa peça de teatro, como um drama, o leitor encontra o grand finale na figura de "Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil", que não disponibiliza nunca totalmente a resposta. Prova, ao contrário, uma grave lição: a de que "o melhor drama está no espectador e não no palco".  

No conto "A chinela turca", Machado mostra que a literatura é muito mais um jogo de cena do que as palavras expostas. Sempre vai depender de quem o domina como escritor ou leitor no palco das letras. E vencedor sempre será aquele que souber calçar devidamente a sua "chinela turca". Mesmo sem ter nenhuma amada ao seu lado. 

 

 

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Conto "A chinela turca", Coleção: Papéis avulsos, Biblioteca Luso-Brasileira:

Machado de Assis - Obra Completa - Volume II

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junho, 2008

 

 

 

 

 

Rosane Villela (Rio de Janeiro-RJ, 1953). Formada em Letras pela PUC-Rio. Publicou Navalha no verso pela 7Letras em 2000 e foi selecionada para a seção Quatro Poetas da Revista Literária Livro Aberto, Junho/Julho 2000. Em 2001, compartilhou com Fábio Rocha e Helena de Sousa Freitas o primeiro lugar no Concurso de Poesia online promovido pela Poemas Azuis, cujo único jurado foi Affonso Romano de Sant'Anna e, em 2002, participou com um poema e um conto, selecionados por João Silvério Trevisan, do Balaio de Textos do SESCSP ON LINE. Ainda em 2002, o jornalista e escritor Antonio Mariano, em sua coluna do Jornal da União, de João Pessoa, escreveu um artigo sobre a sua poesia. Em maio de 2003 foram publicados alguns poemas, como também dois contos no Correio das Artes, suplemento literário do Jornal da União, do editor Linaldo Guedes. Em 2004, proferiu palestra na Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, intitulada Poesia e Criação, a convite de Marco Lucchesi. É membro e uma das fundadoras do blogue Letra Falante, criado em 2007, de discussão de literatura infantil, do grupo do curso avançado de Ninfa Parreira, na Estação das Letras, de Suzana Vargas, onde fez também vários outros cursos. Na Casa da Leitura, cursou "O Mal na Literatura Infanto-Juvenil", com Dilma Lacerda, e na PUC, o curso de extensão intitulado A Magia da Palavra. É autora do ensaio "Bartolomeu e o Caminho do Meio", sobre o livro O olho de vidro de meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Revista Zunái, em 2008. Neste mesmo ano, sua obra infantil e juvenil Apanhando a lua... será publicada pela Editora Paulinas.
 
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