Muito embora o primitivismo de nosso meio literário (falando, naturalmente, em termos gerais) não comporte facilmente figuras como a crítica da crítica, não é difícil perceber que não existe cultura sem diálogo. Diálogo que significa, principalmente, discordância. Pois se o reconhecimento e o apoio são fundamentais, sempre e quando apoio e reconhecimento forem pertinentes, é na discordância que os argumentos são postos a nu — que mostram, portanto, sua força ou sua fraqueza. E demonstrar a verdadeira força ou a real fraqueza dos argumentos é sine qua non para a vitalidade do diálogo.

         Na abertura de um artigo recente (e que rima com excelente), Felipe Fortuna aborda a questão de forma direta:

 

"A crítica contemporânea está realmente aparelhada de forma também contemporânea?" A pergunta, feita ao poeta Manoel Ricardo de Lima na revista Modo de Usar & Co., reflete uma incompreensão da função da crítica: afinal, esta é mesmo contemporânea quando surge no instante subseqüente ao da obra sobre a qual discorre. O exemplo da crítica de Mario Faustino é aqui lapidar: no momento exato em que analisou a obra de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo, a maioria desses poetas estava viva e exercia notável influência no seu entorno literário. (Jornal do Brasil, Idéias & Livros, 2 de fevereiro de 2008) [grifo nosso]

 

         De fato, contemporâneo significa "do mesmo tempo". Portanto, a crítica contemporânea só pode ser contemporânea, isto é, do momento mesmo (ou do mesmo momento) da obra, ficando para a crítica futura a função de cristalizar (ou negar) sua inserção histórica. Como a crítica contemporânea não pode, por sua própria natureza, ser histórica (enquanto a crítica histórica não pode ser contemporânea), ou ela exerce seu papel intransferível de abordar a obra no calor da hora, ou não tem papel algum. E se a crítica contemporânea não tiver nenhum papel a exercer, é porque, ou não há criação contemporânea que mereça, sob qualquer aspecto, ser abordada, ou não existe capacidade de fazê-lo. Nas duas hipóteses, a cultura em questão está morta ou moribunda.

O que vale para a crítica de poesia em particular e de arte em geral vale também para a própria crítica. É neste sentido que me disponho a discutir a crítica de André Dick à obra de Arnaldo Antunes ("O olhar primitivo de Arnaldo Antunes", recém-publicada no Cronópios).

         A crítica de poesia que eu mesmo pratico se apóia, como regra, em dois pilares: a análise cerrada do poema, levando ao limite a abordagem do close reading, e a inserção dessa análise na moldura de uma síntese também cerrada (por simples necessidade espacial) do contexto da obra. Crítica de poesia sem análise (e não paráfrase prosaica, como é habitual) do poema não é crítica de poesia, e crítica de poesia sem contexto é formalismo (nada contra o formalismo como método, mesmo porque não existe arte imaterial; apenas que meu interesse pessoal não prescinde da explicitação do contexto do objeto analisado). Aqui, porém, deixarei de lado a análise da poesia para me centrar naquilo que a crítica criticada vê como característica principal, ou unificadora, dessa poesia, o "primitivismo".

Assim, se a primeira metade do texto é utilizada para discutir e descrever as variações que muitos poemas do autor sofreram em diferentes edições, sua segunda metade é dedicada àquilo que o crítico acredita ser, acertadamente, a principal constante de uma obra inconstante, o "primitivismo" — que se manifesta tanto na temática quanto na sintaxe quanto, por fim, no vocabulário.

 

[Sua] faceta talvez mais interessante: a do poeta que lida com a palavra que se sustenta no papel e se utiliza de imagens desintegradas, de lugares-comuns, de uma linguagem pseudo-infantil, sob um olhar desautomatizado, que nos leva a um certo primitivismo, do qual trataremos ao longo deste ensaio.

 

Também nós aqui o faremos, ainda que por um viés diverso.

O primitivismo (senso lato) tem uma longa história na cultura ocidental. Na verdade, o primitivismo, como uma das figuras possíveis de inserção de uma cultura alheia, é congênito à própria cultura ocidental. Pois esta, originada no Mediterrâneo Oriental e desenvolvida no Mediterrâneo Ocidental (antes de migrar para o interior do continente europeu), é uma cultura de contato. O Mediterrâneo Oriental é o grande centro de confluência da Europa, da Ásia e da África. A história da Antigüidade é, portanto, a história dos contatos entre povos e culturas dos três continentes, como egípcios, gregos, assírios, fenícios, judeus, persas, e, através da Rota da Seda, indianos e chineses (para não falar dos povos das estepes, como hunos e mongóis). Daí a relação com o "outro" ser, desde o início, uma questão central. Os gregos, por exemplo, povo sem unidade geopolítica, que tinha então na língua o fator principal de pertencimento, definiriam o estrangeiro como aquele que não falava grego. Daí a palavra bárbaro, na origem uma onomatopéia imitativa de um balbuciar (algo como "bá-bá-ô"), denotando que, para um grego, quem não falava sua língua não falava absolutamente, mas balbuciava.

Embora a maior parte da humanidade sempre tenha estado em contato, de forma mais ou menos intensa, com outras partes, isto nem sempre foi verdade, como o atestam os aborígines australianos, os inuits (esquimós) e os habitantes das ilhas do Pacífico. Em todo caso, a regra foi o contato, ainda que a intensidade e a qualidade (diversidade das culturas envolvidas) variassem, enquanto a regra do contato foi o comércio, seguido pela guerra.

A cultura ocidental, porém, com o advento do Império Romano, migrou, primeiro, para o Mediterrâneo Ocidental, depois, com o fim do Império e a subseqüente tomada do Mediterrâneo pelo islã, para o interior e o norte do continente europeu. Seu grande período de (relativo) isolamento, que vai, grosso modo, dos séculos V ao XV, é conhecido como Idade Média. Foi com o fim da Idade Média, que é o fim do (relativo) isolamento europeu, que este seria trocado pela mais intensa e sistemática cultura de contato da história, iniciada na (e iniciando a) Idade Moderna. A Idade Moderna é a era da expansão, na verdade, do espalhamento, dos europeus pelo mundo. Como na origem mediterrâneo-oriental da cultura ocidental, mais uma vez a presença do "outro" torna-se central. E mais uma vez, como na imensa maioria dos casos de contato da história, eu sou o civilizado, o outro é o bárbaro.

Antes que os antiocidentalistas de plantão se animem, é bom explicitar que a dicotomia eu = civilizado x outro = selvagem ou primitivo não é nem uma criação nem uma exclusividade ocidental. Em japonês, há apenas uma palavra para designar tanto "estrangeiro" quanto "bárbaro". Para os chineses, igualmente não sutis, todo estrangeiro é, necessariamente, um bárbaro (a grande exceção histórica ficou por conta dos proselitistas indianos que lograram levar o budismo à China, cultura tradicionalmente avessa a tudo o que é alheio — a ocidentalização, ocorrida a partir o fim do século 19, não serve aqui de exemplo por ter sido incontornável). Em língua ianomâmi, a palavra ianomâmi significa "os homens", assim como a palavra inuit em língua inuit (ou esquimó). E se os ianomâmis são os (verdadeiros) homens, os outros são, bem, os outros.

O civilizado e o bárbaro, ou o humano e o não-humano — quando a cultura em questão não desenvolveu uma civilização na acepção da palavra. Ou, no contraste entre uma cultura urbana e uma tribal, o educado e o selvagem, ou ainda, privilegiando a complexidade de uma e a simplicidade de outra, o sofisticado e o primitivo.

Bárbaro, selvagem e primitivo que têm, naturalmente, conotação negativa, ficando a positividade com seus opostos complementares. Ocorre que a cultura moderna nasceu sob o signo da crítica. E o objeto central da crítica moderna foi a própria cultura ocidental. Se a cultura moderna foi a cultura do orgulho e da arrogância ocidentais, também foi, desde sempre, a cultura da crítica à própria cultura ocidental. Tal crítica é, portanto, tradicional, não tendo, assim, nada de verdadeiramente novo (muito menos de revolucionário). O que é verdadeiramente novo neste caso é o fato de a autocrítica ser uma invenção (e uma exclusividade) ocidental. Assim, se não há qualquer registro de que um membro do establishment clerical-imperial asteca tenha jamais criticado o império asteca pelo modo brutal como tratava os povos dominados, há o famoso registro de Bartolomé de las Casas criticando, no calor (e no sangue) do momento, o modo brutal como o império espanhol tratou os astecas. O que não foi, absolutamente, um caso isolado. Na verdade, a crítica feroz a aspectos centrais da cultura ocidental, como o cristianismo, seria uma das marcas fundamentais (e fundantes) da modernidade. É neste contexto que se inscreve parte importante da obra de Rousseau, o filósofo (não o pintor — coincidentemente — naïf), citado reiteradamente por André Dick como suporte ou referência à visão "primitivista" da poesia de Arnaldo Antunes.

Jean-Jacques Rousseau é o autor da famosa afirmação segundo a qual o homem nasce "bom" e a sociedade o corrompe — invertendo, portanto, as conotações: o civilizado passa a ser o "mau", o corrompido, enquanto o não-civilizado, o selvagem, o primitivo, passa a ser o "bom", tudo devidamente sintetizado na famosa expressão "o bom selvagem". Deixemos de lado o fato de que a colocação de Rousseau é uma secularização do mito cristão do pecado original, segundo o qual o homem foi criado "bom" no Éden e depois corrompido pela história (mito aliás adotado diretamente por Arnaldo Antunes, através do uso reiterado da palavra-síntese Babel). O que importa é que tal colocação rousseauniana baseia-se na ignorância. O mito (pois não passa disto) do "bom selvagem" não resiste aos fatos. Mesmo excluindo casos exemplares como o da ilha da Páscoa, em que a cultura local foi responsável tanto pela devastação ambiental brutal quanto por uma guerra de extermínio interna, de tal forma que, quando os europeus ali aportaram, no século 19, além das famosas estátuas, tudo que encontraram foi uma terra devastada e uns poucos sobreviventes desolados, ou o dos maias, cujas guerras empreendidas para a caça de vítimas humanas para o sacrifico ritual minou as forças de sua cultura até a auto-extinção, para ficar apenas num exemplo, a escravidão é um fato corriqueiro da história tribal, praticada na América pré-colombiana assim como na África — para não falar do Oriente, a começar pelos árabes. Mas não apenas a escravidão. Normalmente, culturas tribais são extremamente sensíveis a qualquer mudança ambiental, em função de sua dependência direta dos recursos naturais. E também normalmente, enfrentam situações de grande dificuldade ou de calamidade, como fomes prolongadas causadas por secas sazonais, de modo extremamente irracional. Na Ilíada há a famosa (e infame) passagem do sacrifício de Ifigênia, quando Agamêmnon, o chefe grego, oferece a vida de sua filha a Ártemis, como forma de aplacar a ira da deusa e assim possibilitar a partida da frota. Tal passagem remete a uma época antiga — e primitiva, diríamos — da cultura grega, quando os sacrifícios humanos eram um dos recursos para tentar seduzir ou acalmar os "deuses", isto é, as condições adversas — ou, numa palavra, a adversidade. Adversidade que a cultura moderna enfrenta com a razão e a técnica.

Num episódio pouco conhecido, mas muito significativo, um dos membros do grupo Titãs certa vez foi obrigado a apelar para a polícia em função de ter sido vítima de um crime. Alguns dos policiais chamados não perderam a oportunidade de lhe cantarolar, ironicamente, a melodia de "Polícia para quem precisa de polícia", sucesso do grupo à época. Isto não significa que não se deva jamais criticar a polícia em ação — mas significa que não se deve jamais criticar a polícia em si. Pois a polícia é necessária à vida urbana, em que as relações pessoais tribais diretas e parentais, assim como a cultura homogênea e comum, foram substituídas pelas relações impessoais e a heterogeneidade cultural. Não há civilização sem polícia (isto é, sem Estado, a quem a sociedade delega o uso da força como instrumento da justiça, também delegada), assim como sem cidade. A própria palavra civilização vem de civitas, que está igualmente na origem de cidade, civil, etc., enquanto polícia tem a mesma origem de política, ou seja, a palavra grega pólis: mais uma vez, cidade. Cidade, civilização, civilidade, polícia, política, pólis. Há coisas que são inevitáveis. Daí não ser inteligente descartá-las. Uma delas é a razão.

Não perderei tempo demonstrando como a razão e a técnica estão na origem de algumas das maiores belezas jamais criadas, das imagens do telescópio Hubble à pintura renascentista ("Pintar é uma coisa mental", disse Da Vinci), passando pela música de Bach e a poesia de Dante (pois não importa que a criação de ambos verse sobre temas religiosos, mas sim que seja produto da racionalidade moderna — daí usarem formas regulares e permutáveis —, assim como as elucubrações de Shakespeare), para não falar das obras de Darwin e Einstein, mais imaginativas, no que têm de radicalmente contra-intuitivas (e revolucionárias), do que qualquer criação artística (de qualquer cultura). Se, como a polícia, a razão e a técnica (assim como a medicina) devem ser sempre criticadas quando em ação, para que possam melhorar sua ação, e porque nada do que é humano é infenso a críticas (incluindo o primitivismo, seja o primitivismo relativo de povos não-ocidentais, no que tenha de criticável, seja o primitivismo ideológico de indivíduos ocidentais — que, porém, ao se transformar em ideologia, põe-se acima da crítica), a técnica e a razão não deveriam, jamais, ser criticadas em si, pelo simples motivo de que não se vive sem razão e sem técnica, ao menos se se for ocidental. Pode-se ter um filho por parto "natural", mas não se pode criar tal filho em estado "natural" (seja lá isso o que for). Em suma, a crítica ingênua à razão, à técnica, à ciência, etc., não passa de crítica ingênua. Razão para quem precisa de razão... Melhor perguntar quem não precisa, isto é, quem dela prescinde, ao menos no mundo ocidental. Pode-se militar na crença ou no mito de que a vida pré-urbana, pré-civilização, pré-política e pré-polícia, assim como pré-racional (no sentido de pré-filosófica, sendo a filosofia a razão consciente de si mesma), era "boa", como o era a vida no Paraíso, ou na ingenuidade selvagem ou primitiva. Mas não é, digamos, muito racional confundir crenças e mitos com fatos.

Voltando, agora, ao início, o infantil como pré-racional e o primitivo como pré-civilizado são as bases do referido "primitivismo" de Arnaldo Antunes. "Primitivismo" que se insere numa velha tradição modernista (e se realimenta, contemporaneamente, do multiculturalismo como ideologia).

O "primivitismo" contemporâneo advém, primariamente, do dadá, surgido no contexto da grande barbárie da I Guerra, como manifestação de recusa radical da cultura que a gerara (e plenamente inserido, portanto, em certa tradição moderna, tendo como precursor direto o famoso silêncio voluntário de Rimbaud). A destruição da cultura contra a cultura da destruição. O problema é que não se pode eliminar a própria cultura mais do que se pode eliminar o próprio cérebro. A alternativa é o suicídio (não por acaso transformado por Camus na grande questão filosófica contemporânea). Assim, por mais que o dadá anunciasse o fim da cultura ocidental como até então conhecida, secundado pelo irracionalismo onírico surrealista e seguido pelo interdito de Adorno à criação poética pós-Auschwitz, tais manifestações de recusa radical estão fadadas ao fracasso — talvez seja covardia lembrar aqui de um seu fraco filhote tardio e prontamente mercantilizado, o movimento punk. Pois é preciso encarar a própria cultura assim como o rosto no espelho de manhã: não importa quão desolador, não há outro rosto. Não bastasse o fracasso anunciado, a recusa de Arnaldo Antunes é fraca e maneirista. A opção "primitivista" que informa a obra de Antunes é, enfim, um último resquício anêmico do antiocidentalismo modernista. Reduziu a estilo o que era crítica, transformou em indigitação esperta o que era grito agudo de recusa. Do dadá e seu primitivismo infantilizado e áspero ao infantilismo primitivista e sofisticado de Arnaldo Antunes, a já velha história do antiocidentalismo ocidental percorre o caminho que vai da história à sua repetição como farsa.

Infinitamente distante da desafiadora discussão do suicídio por Camus, a recusa "primitivista" e "infantilista" de Arnaldo Antunes é vazada em clave sedutora, vício, talvez, da militância do autor na cultura pop, cujo lema inconfessado é "seduza ou pereça". Infinitamente distante da discussão de Camus e sequer perto o bastante do punk, para não falar do dadá. A começar do título da antologia que serve de ponto de partida ao texto de André Dick, Como é que chama o nome disso (SP, Publifolha, 2006). Enfim, trata-se de uma recusa mais "infantilista" do que propriamente "primitivista".

 

Posicionado, na verdade, como homem natural, Arnaldo parece desconfiar da ciência, como Rousseau, apesar de se referir a ela: seus poemas com menção a esse campo são básicos, infantis.

 

Nas palavras do próprio Antunes,

 

 "A manifestação do que chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades — significante e significado". (citado por André Dick)

 

Sendo esta uma colocação "teórica", defendida pelo poeta num artigo, e não num poema (ainda que informe diretamente a temática de muitos poemas), cabe aqui uma refutação direta. Trata-se, em suma, de uma bobagem. Pois a afirmação remete a um estado idílico, paradisíaco ou ideal de "infância da linguagem", que então viveria "umbilicalmente" unida à realidade, até que a "representação" "rompeu" a unidade, "gerando essas duas metades — significante e significado". Porém jamais existiu — ao menos segundo a história, a lingüística, a antropologia, a biologia, a paleontologia, etc. — esse estado ideal da linguagem. Tal "infância possível" da linguagem não merece, portanto, esse adjetivo, mas sim outro: improvável. Na verdade, a provável origem remota da linguagem humana se deu na forma de uma seqüência de estalidos, que serviam de avisos, mais ou menos como, hoje, soldados em campo de batalha trocam sinais gestuais para indicar a presença de um inimigo ou indicar o caminho subseqüente da ação. É difícil imaginar de que forma um conjunto de estalidos, que muito mais tarde evoluiriam para sinais sonoros mais complexos, possa ter alguma coisa a ver com “o que chamamos de poesia hoje”. Para o articulista, "tal reflexão encaminha Arnaldo para o que ele considera 'algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo'". Para mim, direciona-o diretamente às suas crenças pessoais, que pouco tem a ver com qualquer passado real.

 

O objetivo de Arnaldo é a taba do tribalismo, a antropofagia oswaldiana, com seu "homem natural tecnizado", embora com predileção pelo homem natural, de Rousseau, como queria Oswald em seu manifesto, e não pelo homem civilizado.

 

O antiocidentalismo — e, não por acaso, o anticientificismo — torna(m)-se afinal explícito(s) nesta passagem:

 

A ciência é uma ameaça ou é um campo à parte da realidade que quer oferecer: da pessoa que observa as coisas pela primeira vez, com um "simples olhar" primitivo, mas não um olhar menos provido por ser contrário à ciência e sim como uma idéia de mundo. A sociedade, com isso, não deixa de ser uma ameaça, como em Rousseau. Ela representa um perigo para o poeta que pretende dar ao leitor a visão de um mundo utópico, em que o homem continua bom porque é bom por natureza (a canção "saiba" é exemplar nesse aspecto). Rousseau não admirava os avanços tecnológicos, e pode ser estranho classificar um poeta que lida com o computador na realização de muitos de seus poemas alguém que possui aspectos que se direcionam para tal filosofia. O computador, na obra de Arnaldo, no entanto, está a serviço de uma tipologia também primitiva (ou direcionada a um "primitipo", para lembrar o título de uma obra de Marcelo Tápia), tanto que é comum que se diga que seu trabalho pouco acrescenta à experimentação de Augusto de Campos e Décio Pignatari.

 

De fato, o trabalho de Antunes pouco acrescenta à linguagem dos concretistas. Nada tem, porém, com a parte visual-experimental da obra de Marcelo Tápia (de que é exemplo o — excelente — livro citado), muito mais elaborada (e, portanto, muito mais racional). Voltando, porém, ao que aqui nos interessa, a colocação do articulista torna-se questionável à luz da obra de um Alberto Caeiro, merecedor de fato da afirmação de que "observa as coisas pela primeira vez". Ou melhor, de que tenta radicalmente assim observá-las, ainda que sua tentativa acabe sendo, não por acaso, a tematização do fracasso de fazê-lo: "pensar é estar doente dos olhos". Não por acaso, pois Fernando Pessoa era inteligente demais para não ser, sempre, um cético. Não é este o caso de Arnaldo Antunes (que crê na própria crença sobre a linguagem poética). Enfim, que a sociedade seja "um perigo para o poeta que pretende dar ao leitor a visão de um mundo utópico, em que o homem continua bom porque é bom por natureza" não é, absolutamente, algo ruim, pois, neste caso, a sociedade cumpriria o papel fundamental de defensora da lucidez. Trata-se, em todo caso, de um sofisma. Algo que exista "por natureza" nada tem a ver com o que seja utópico, pois utopia, etimologicamente, o não-lugar, é o lugar por excelência do que não existe. Logo, a "visão" de que "o homem continua bom porque é bom por natureza" ou não pode ser utópica ou não pode ser uma "visão". Se for uma "visão", isto é, uma interpretação das coisas que são, nada tem de utopia; se for uma utopia, nada tem de interpretação. Enfim, não se trata de utopia nem de interpretação, mas sim de mito e de crença.

 

Arnaldo entende que há uma complexidade nesse pensamento primitivo que desenvolve em sua obra. Arnaldo reproduz a reflexão de Bakhtin: "O homem pré-histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o baixo, a terra e o céu, o bem e o mal etc". Para o poeta, tais usos "são estranhos à linguagem referencial, mas bastante comuns à poesia".

 

         Conclui-se, então, que na visão de Antunes o homem "pré-histórico" não usava a linguagem de modo referencial, isto é, representativo. Afirmação pela qual nossos ancestrais não têm qualquer responsabilidade, pois não eram nem autistas, nem idiotas, nem... poetas. As línguas do tronco tupi-guarani não possuíam palavras para os algarismos superiores a 4. Acima de 4, tudo era invariavelmente "muitos". Ora, isto não significa que os índios dessa etnia fossem imbecis incapazes de contar além de 4, mas sim que sua cultura estava organizada de tal forma que não necessitava de precisão aritmética envolvendo quantidades médias e grandes, mas apenas pequenas. Arnaldo Antunes não crê que nossos ancestrais fossem autistas ou idiotas, mas crê, com igual arbitrariedade, que eram artistas. E que artistas.

 

Ele acredita num regresso ao tempo em que "os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito" e "música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência, ser conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras", na tentativa de alcançar a "infância da linguagem".

 

Eu ainda poderia aceitar essa salada pseudo-antropológica se aí não estivesse presente o item "utilidades práticas". Pois falar em "experiências integrais" (seja lá isso o que for) para tais "utilidades práticas" é especialmente duro de engolir. Certa vez assisti a um documentário sobre a vida num mosteiro zen-budista no Nepal. Um dos monges ironizava a visão ocidental de seres míticos que quase flutuam no ar, ou que, em todo caso, passam o tempo ocupados em caminhar de modo tão delicado que não ameace a existência do mais ínfimo micróbio. Na verdade, um dos maiores interesses dos alunos do templo era, naqueles dias, a Copa do Mundo de Futebol — futebol, aliás, praticado pelos monges de modo muito semelhante ao ocidental. Monges zen têm intestinos e produzem fezes, é bom que se lembre. E os homens "primitivos" não eram artistas performáticos em tempo integral. Por acaso, tive recentemente a oportunidade de conviver, ainda que circunstancialmente, com vários representantes de tribos brasileiras, mais e menos aculturados. Nenhum deles é nada além (e nada aquém) de um homem como todos os homens (prefiro, por isso, Protágoras a Rousseau: "Sou humano, nada do que é humano me é estranho").

 

Esse primitivismo incorre no que Oswald dizia da poesia Pau-Brasil, baseada na filosofia de Rousseau: "Ágil e cândida. Como uma criança". Arnaldo quer, como Oswald (e não é por acaso que este é figura recorrente na entrevista com Arnaldo ao fim da antologia) e Rousseau, atingir uma ordem "sentimental, intelectual, irônica, ingênua", uma "volta ao sentido puro", visando a um "estado de inocência". Nesse estado, o homem ainda é puro e descobre coisas que, com mais idade, passam a ser óbvias ou mesmo desimportantes.

 

A poesia de Arnaldo Antunes parece, assim, basear-se na máxima do Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry: "As pessoas crescidas nunca compreendem nada sozinhas; é cansativo para as crianças ficarem sempre dando explicações". A mesma visão informa a obra de J. M. Barrie, criador de Peter Pan, e tem relação direta com o juvenilismo militante dos anos 60: "Não confie em ninguém com mais de 30 anos".

 

Lado a lado com o olhar primitivo, o melhor, na poesia de Arnaldo, seria uma possibilidade de renascimento — idéia que não seria estranha a Rousseau —, para começar tudo de novo, a partir do zero e da nomeação original, como no poema "nome". A sociedade, nesse caso, é dispensada — pois não comporta a idéia de pureza ilimitada.

 

O que lembra fortemente, além do irracionalismo militante da contracultura, também as experiências mais radicais do maoísmo (não por acaso idolatrado pelos contraculturalistas), como a Revolução Cultural do "Grande Timoneiro", ou o governo do Khmer Vermelho no Camboja. Como a sociedade burguesa não comporta "a idéia da pureza ilimitada" preconizada pelas formas mais radicais de socialismo, tal sociedade deve ser "dispensada". Para que se possa, então, "começar tudo de novo, a partir do zero". Stálin apontou explicitamente nessa direção com sua reforma agrária, ao instituir a eliminação física dos pequenos proprietários, os kulaks, depois de fracassar em eliminar neles a idéia "impura" da propriedade privada. Mao ensaiou os primeiros passos nessa direção com seus campos de "reeducação", chegando afinal à mesma conclusão inevitável da eliminação física, que o Khmer, mais eficiente, adotaria desde o início. O "primitivismo", a desconfiança da razão, etc., sempre trazem no bojo a ameaça do fascismo. Seja de esquerda ou de direita, pois este também adorava o "tribalismo" das multidões entoando cânticos hipnóticos de louvação ao líder em noites iluminadas por tochas — em que, portanto, "música, pensamento [discurso], imagem, cheiro, se conjugavam em experiências integrais associadas a práticas guerreiras" (Goebbels assinaria tranqüilamente embaixo).

Não obstante, Arnaldo Antunes não é, naturalmente, fascista. Ele é apenas "tribalista", "primitivista", "infantilista" (e encerre-se a lista):

 

Em Como é que chama o nome disso, de qualquer modo, fica claro que o artesanal, mesmo se alimentando da tecnologia, continua com aspecto artesanal, o que é coerente com uma dicção bastante primitiva, por vezes protegida do mundo em seu "estado de inocência", no silêncio do útero, à espera da descoberta da linguagem e da separação do cordão umbilical — que, para o poeta, entretanto, nunca acontecerá.

 

Está aí, provavelmente, a explicação para o relativo fracasso da obra de Arnaldo Antunes. Pois ele possui talento poético para criar poemas que falem tanto ao intelecto quanto aos sentidos (caso de suas melhores criações), mas abdicou deliberadamente de falar ao intelecto. Algo semelhante aconteceu com Paulo Leminski, cuja poesia sofre a influência de certa "esperteza" advinda da contracultura e da cultura pop (Leminski, no entanto, em seus momentos mais altos, transcende as próprias influências, e cria, então, verdadeiras pequenas obras-primas da poesia em língua portuguesa — ver, a respeito, meu ensaio "Paulo Bruno Leminski Tolentino", em Cronópios, em que a obra de Leminski é lida à luz da pessoa do poeta, segundo minhas próprias recordações pessoais deste). Se isso for afinal verdade, todo este longo excurso por primitivismos e infantilismos terá tido, enfim, algum sentido, ao apontar os possíveis motivos pelos quais uma obra conhecida e reconhecida é, não obstante, menor do que talvez pudesse ser.  

 

 

 

 

março, 2008

 

 

 

 

 

Luis Dolhnikoff é um poeta adultista. Estudou medicina e letras clássicas na USP (1980-1985). Publicou Pânico (SP, Expressão, 1986, apresentação de Paulo Leminski), Impressões digitais (SP, Olavobrás, 1990), Microcosmo (SP, Olavobrás, 1991) e Os homens de ferro (SP, Olavobrás, 1992, contos), e, como tradutor, Fragmentos de Arquíloco (seleção, organização, introdução e tradução direta do grego, SP, Expressão, 1987), Poemas de Joyce, em colaboração com Marcelo Tápia, (SP, Olavobrás, 1992), In memory of W. B. Yeats III de W. H. Auden (Mais!, Folha de S. Paulo, 06/07/2003), "O le falta al amor conocimiento", de Miguel de Cervantes, em colaboração com Josely V. Baptista (Mais!, Folha de S. Paulo, 14/11/2004), além de poemas de W. B. Yeats (revista Etc, Curitiba, jan. 2006). É co-fundador, com Marcelo Tápia, da editora Olavobrás, pela qual deu a público, entre outros, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Josely V. Baptista, Glauco Mattoso e Régis Bonvicino. Entre 1991 e 1994 co-organizou, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday de SP. Participou, em 2003, da exposição de poesia visual "A palavra extrapolada" (SP, SESC Pompéia, curadoria de Inês Raphaelian), e em 2005 da mostra "Desenhos", ao lado do artista plástico Francisco Faria e da poeta Josely V. Baptista (Museu Oscar Niemeyer de Curitiba [março] e Instituto Tomie Otahke de SP [setembro-dezembro]). Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae para concluir um estudo crítico-histórico sobre a obra de Pedro Xisto (ReVisão de Pedro Xisto, averbado para a editora da Unicamp). É colaborador, na área de política internacional, da Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de SP. Colabora ou colaborou com as principais revistas literárias e jornais do país. Publicou poemas nas principais revistas literárias brasileiras, assim como em várias publicações no exterior. Seu próximo livro de poemas (não infantilistas, mas infantis), As conversas de Luis e Elvira, encontra-se em fase de produção pela editora Mirabilia.
 
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