©pacheco menezes, 1877
 
 
 
 
 

 

 

Assim como Machado de Assis, Arthur Azevedo também morreu no ano de 1908, a  22 de outubro. Multicriador de contos, crônicas, poesias, traduções, revistas, comédias, paródias e críticas, não há como deixar de ser considerado como um dos maiores escritores brasileiros, não pela quantidade, mas pela qualidade, com textos plenos de humor e ironia, escritos em estilo simples, despojado e fluente, a  revelar o cotidiano carioca do final do século XIX e, em especial, retratar uma cidade e uma sociedade em plena mutação.

 

Nascido  em São Luís, Maranhão, em 7 de julho de 1855, vindo para o Rio de Janeiro em 1873, fez-se jornalista, cronista, poeta, teatrólogo — a partir do grande êxito obtido por sua primeira peça teatral "Amor por anexins", escrita aos 15 anos — e contista, dos melhores da literatura brasileira. No jornalismo, projetou-se  como um prodigioso criador literário: fundou publicações literárias como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum; colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis, e no jornal Novidades, junto com Alcindo Guanabara, Moreira Sampaio, Olavo Bilac e Coelho Neto; a partir de 1879, dirigiu, com Lopes Cardoso, a Revista do Teatro. Foi um dos grandes defensores da abolição da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de peças dramáticas como "O liberato" e "A família Salazar", esta última proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o título de O Escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artísticos, principalmente sobre teatro, nas seções que manteve em O País ("A Palestra"), no Diário de Notícias ("De Palanque"), em A Notícia (o folhetim "O Teatro"). Multiplicava-se em pseudônimos: Elói, o herói; Gavroche; Petrônio; Cosimo; Juvenal; Dorante; Frivolino; Batista, o trocista; e outros. O teatro de Arthur Azevedo — cerca de uma centena de peças de vários gêneros e  mais de 30 traduções e adaptações livres de peças francesas, encenadas em palcos nacionais e portugueses — fixou como nenhum outro a vida e a sociedade cariocas, constituindo-se suas peças como verdadeiros documentários sobre a evolução da então capital brasileira. Como poeta, foi um dos representantes do Parnasianismo, na verdade, apenas por questão de cronologia, por pertencer à geração de Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, pois era um poeta lírico, sentimental, com  sonetos perfeitamente dentro da tradição romântica.

 

Importante assinalar o quanto Arthur Azevedo, assim como Machado, pressentiu e colocou em suas obras, quer contísticas, quer teatrais, quer croniquescas, as incisivas transformações pelas quais passava a sociedade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX — transformações políticas, econômicas, urbanas —, manifestas, inclusive, nos comportamentos sociais e na própria literatura, na qual a 'ideologia' romântica, característica do Romantismo expresso, sobretudo, por Macedo e Alencar, dava sinais de esgotamento, o eixo da vida social e mesmo conjugal deslocando-se para fora do lar, a rua tornando-se o ambiente primordial da narrativa e da temática, quer ficcional, quer não-ficcional. Tais mutações foram exemplarmente entrevistas e assimiladas por Arthur Azevedo em suas peças, suas crônicas e especificamente em seus contos, impondo em todos os textos, em maior ou menor grau, a transformação da perspectiva romântica em realista — no caso de Azevedo, condimentada por irresistíveis doses de humor, ironia e sátira.

 

Incansável 'hiperativo', Arthur Azevedo constituiu-se no tradutor perfeito de uma cidade não apenas em acelerada transformação, mas em vertiginosa ebulição. E tem ele no leitor um interlocutor que também freqüenta as ruas e conhece o cenário, as ocorrências, os personagens, os enredos — e dessa interação origina-se, nasce, forma-se, consolida-se e sedimenta-se sua obra. Nela, o habitante da cidade é retratado em toda sua dimensão humana, inclusive, em sua  perplexidade e confusão ante os novos tempos e espaços que se abrem e se transmutam, ante as novas relações sociais e comportamentais que se estabelecem com a República.

 

Os textos ficcionais e não-ficcionais de Arthur Azevedo, na verdade, constituem um significativo painel da própria sociedade brasileira de seu tempo, envolvendo  diversos gêneros e criando novas possibilidades de criação literária; forneceu a matriz para uma espécie de contística carioca — os contos eram até mais populares que os de Machado de Assis na mesma época — pois a caracterização dos personagens é sempre de forma a construir o perfil do habitante e da cidade: de suas páginas sai uma completa galeria dos tipos urbanos pitorescos. Seus contos são considerados os introdutores das classes médias na literatura nacional; a  oralidade tem papel preponderante nas narrativas — todos seus escritos, a rigor, se aproximam da representação de uma comédia, muitos dos contos são piadas transcritas ("Sou um contador de histórias e tenho que inventar um conto por semana"). Namoros, os casamentos arranjados por conveniência, os desentendimentos  conjugais, as relações de família ou de amizade, as cerimônias festivas ou fúnebres, tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias.

 

Embora escrevendo contos desde 1871, só em 1889, animou-se a reunir alguns deles no inaugural Contos possíveis, dedicado a Machado de Assis, que então era seu companheiro no Ministério da Viação (e um de seus mais severos, embora amigáveis, críticos). Seu bibliográfico contístico reúne Contos possíveis (1889); Contos fora da moda (1894); Contos efêmeros (1897); Contos em verso (1898); e postumamente Contos cariocas (1928); Vida alheia (1929); Histórias brejeiras (1962).

 

Contos efêmeros é a última coletânea de Arthur Azevedo publicada em vida —originalmente, em 1897 [Typographia C.R.C.] — e a única entre elas não reeditada. Mais de um século depois, a coletânea será publicada por Edições Loyola/ ditora PUC-Rio, no início do ano de 2009, com organização, estudo crítico e notas de minha lavra. Contos efêmeros é considerado o mais emblematicamente representativo conjunto de contos de Arthur Azevedo e de sua verve ficcional carregada de humor, sátira e crítica: abriga 32 contos, alguns deles tão populares como o celebrado "O plebiscito" (que faz parte de Contos fora da moda): caso de "A dívida", "O númbaro" [ambos em apêndice], "Sabina", "A sorte grande", "Confissão de uma noiva", "No bonde", "O Gomes", "Vi-tó-zé-mé", e outras, dentre as saborosas histórias que o fecundo e bem-humorado Azevedo criou para a posteridade.

 

Sobre Contos efêmeros, assim se pronunciou Raul Pompéia, em O Farol, 1897: "(...) variam os gêneros, sim, varia a maior ou menor importância ligada ao assunto em momento de escrever; mas, apesar disso, apesar das diferentes épocas a que são atribuídos, os contos, o processo comum da frase, a preferência dos assuntos, o capricho da surpresa final, o pensamento humorístico encerrado como moralidade da fábula, adotadas as atenções convenientes ao assunto, ora grave, ora alegre, ora rasgadamente burlesco, constituem, do princípio ao fim do livro, uma demonstração indiscutível de unidade genésica. [...] O que fica fora de dúvida é que os Contos efêmeros fazem um livro de primeira ordem, a mais interessante das leituras e um dos mais belos títulos de orgulho da atualidade literária".

 

 

 

 

 

Eu descia descuidosamente a rua do Ouvidor, quando uma voz argentina cantou aos meus ouvidos:

 

— Fale com os pobres.

 

Voltei-me. Era a minha espirituosa amiga dona Henriqueta, que me estendeu a mão corretamente enluvada.

 

— Que está fazendo?

 

— Trocando as pernas.

 

— Nesse caso, tenha a bondade de ajudar-me a levar estes embrulhos até o bonde, no largo da Carioca.

 

— Oh, pois não, minha senhora!

 

Chegados que fomos ao bonde, ela disse-me:

 

— Se tem algum dos seus contos debaixo da língua, sente-se aqui ao meu lado, acompanhe-me até Botafogo, e impinja-m'o durante a viagem.

 

— Não tenho nenhum conto debaixo da língua, mas... não resisto ao prazer de acompanhá-la.

 

E sentei-me ao lado da minha espirituosa amiga dona Henriqueta.

 

— Sabe que estou profundamente contrariado?

 

— Sim?... Por quê?

 

— Imagine que acabo de receber uma carta anônima...

 

E tirei do bolso uma carta.

 

— ... em que me passam uma descompostura tremenda.

 

— Deveras? Deixe ver. Nunca vi uma carta anônima. Deve ser curioso.

 

— Perdão; está escrita em termos tais, que não pode ser lida por uma senhora.

 

— Não sei a que ideal confuso se socorre um homem para justificar-se a seus próprios olhos de escrever insultos e não os assinar. Essa é a ultima expressão da covardia. Mas o senhor, um homem tão habituado a produzir para o público, ainda se deixa contrariar por essas coisas?

 

— O que me contraria, minha senhora, não é a descompostura... mas imagine que o meu agressor encontrou um erro de gramática, um erro terrível no meu último conto: escrevi um lhe por um a; cometi, por descuido, um brasileirismo em que aliás incorreram já escritores de mais autoridade. Antes de receber a carta, já eu tinha notado e mentalmente retificado o engano. Achava- me na doce persuasão de que ninguém daria por ele, quando esta maldita carta...

 

— Não esteja contrariado: o crime não é tamanho...

 

— Ah, sim... esse não foi o meu primeiro erro de gramática e provavelmente não será o último... Mas que quer, dona Henriqueta? Quem escreve para o público tem obrigação de pôr o maior cuidado no que faz... Contrariou-me ter escrito aquela asneira, e ainda mais me contrariou saber que a descobriram.

 

— Ora! os erros de sintaxe jamais causaram dano aos amores.

 

— Tem toda a razão; nem os de sintaxe nem os de ortografia. Houve mesmo um poeta que disse à namorada:

 

                  São mais lindos que as estrelas

                  Teus erros de ortografia

 

mas quando se trata de namoro não se trata de literatura.

 

— Entretanto, se a namorada do seu agressor lhe escrevesse uma carta cheia de erros...

 

— O meu agressor continuaria a estimá-la como se ela escrevesse que nem o padre Antonio Vieira. Eu tive na minha terra uma namorada que escrevia "Meu Artur". Um dia pedi-lhe que restituísse o h a que tinha direito a dignidade ortográfica do meu nome, e ela de então em diante escreveu: "Meu Hartur". Creia que por isso não desmereceu a moça no meu conceito; quem acabou o namoro foi ela e não eu...

 

— Pois, sim, mas a prosódia...

 

— Ah! isso é outra coisa. O homem instruído perdoa todas as asneiras que a mulher amada escreva, mas não suporta que ela fale mal.

 

— É uma desilusão.

 

— A esse propósito, dona Henriqueta, contar- lhe-ei uma pequena história...

 

— Ah, bom! sempre  tinha um conto debaixo da língua... Como se intitula?

 

— Pode intitular-se o númbaro.

 

O númbaro?... que quer isso dizer?...

 

— Verá. Prepare o leque para as situações escabrosas.

 

— Sou toda ouvidos.

 

— Há dez anos, pouco mais ou menos, apareceu nesta capital uma rapariga portuguesa, que se chamava Florinda. Era uma formosa morena, alta, delgada, com uns olhos lânguidos capazes de tirar o juízo a um santo, um nariz petulantemente arrebitado, e uma boca para a qual não encontro neste instante o adjetivo correspondente. Creio mesmo que este adjetivo não existe nos dicionários.

 

— Bom; uma mulher bonita na extensão da palavra.

 

— Florinda era livre como os pássaros. Vinha ao Rio de Janeiro atraída pela fama, que esta cidade goza lá fora, de ser o Eldorado das pecadoras. Um jornalista muito inteligente, que a viu no momento do desembarque, logo se sentiu atraído pelo deslumbramento da sua formosura; mas quando se resolveu a queimar os primeiros cartuchos para a conquista, que se lhe afigurava difícil, soube que Florinda havia sido monopolizada por um sujeito abastado, que imediatamente lhe deu palacete e carruagem.

 

— O jornalista não poude lutar...

 

— Não tentou fazê-lo porque era pobre; a luta seria impossível. Florinda, que era de um natural modesto, meteu-se em casa e durante cinco anos guardou absoluta fidelidade ao seu magnífico protetor, vivendo com ele numa harmonia e num conchego que causavam inveja a muitos casais legalmente constituídos.

 

— E o jornalista?

 

— O jornalista durante os dois primeiros anos tentou, mas debalde, aproximar-se dela; e como o bom comportamento da moça avolumasse naturalmente a impressão que lhe ficara, passou os outros três anos a amá-la platonicamente, como outrora os pajens amavam as castelãs.

 

— Confesso-lhe que o conto vai me interessando.

 

— Acabados esses cincos anos, Florinda passou pelo desgosto de perder o seu protetor, e de ficar paupérrima: o homem morreu endividado e os credores apoderaram-se de tudo quanto ele deixou.

 

— Tocou a vez ao jornalista, já sei.

 

— Tocar-lhe-ia se ele estivesse na capital; mas infelizmente, ou felizmente (como quiser), achava-se em Caxambu no momento da catástrofe. Quando voltou das águas, encontrou Florinda... estabelecida por sua própria conta, recebendo ignóbeis visitas...

 

— Pobre rapaz! nunca mais quis saber dela...

 

— Engana-se, dona Henriqueta: foi visita-la também; entrou em casa dela com o entusiasmo de um noivo, e julgou-se o ludibrio de um sonho quando a viu nos seus braços.

 

Dona Henriqueta abriu precipitadamente o leque.

 

— Mas no momento decisivo, na ocasião precisa em que ele ia dar o combate preparado havia cinco anos, Florinda passou-lhe o braço em volta do pescoço, e disse-lhe, curvando a formosíssima boca num sorriso ideal:

 

— Veja agora se esquece do númbaro da porta.

 

— Oh!...

 

— O... entusiasmo do jornalista baixou imediatamente, a tal ponto que não houve combate nem nada.

 

— Pudera!

 

— Ele saiu de casa de Florinda para nunca mais lá voltar. Aquele númbaro separou-o dela como uma parede mestra.

 

 

 

 

 

I

 

Montenegro e Veloso formaram-se no mesmo dia, na Faculdade de Direito de São Paulo. Depois da cerimônia da colação do grau, foram ambos enterrar a vida acadêmica num restaurante, em companhia de outros colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que, havia dois anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de São José. Aí se entregaram à recordação da sua vida escolástica, e se enterneceram defronte um do outro, vendo aproximar-se a hora em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro era de Santa Catarina e Veloso do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria para Santos e este para a capital do Império. As malas estavam feitas.

 

— Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo dá tantas voltas!

 

— Não creio, respondeu Veloso. Vais para a tua província, casas-te, e era uma vez o Montenegro.

 

— Caso-me?! Aí vens tu! Bem conheces as minhas idéias a respeito do casamento, idéias que são, aliás, as mesmas que tu professas. Afianço-te que hei de morrer solteiro.

 

— Isso dizem todos...

 

— Veloso, tu conheces-me há muito tempo: já deves estar farto de saber que eu quando digo, digo.

 

— Pois sim, mas há de ser difícil que em Santa Catarina te possas livrar do conjugo vobis. Na província ninguém toma a sério um advogado solteiro.

 

— Enganas-te. Os médicos, sim; os médicos é que devem ser casados.

 

— Não me engano tal. Na província o homem solteiro, seja qual for a posição que ocupe, só é bem recebido nas casas em que haja moças casadeiras.

 

— Quem te meteu essa caraminhola na cabeça?

 

— Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te casasses; mas vais para o Desterro: estás aqui estás com uma ninhada de filhos. Queres fazer uma aposta?

 

— Como assim?

 

— O primeiro de nós que se casar pagará ao outro... Quanto?

 

— Vê tu lá.

 

— Deve ser uma quantia gorda.

 

— Um conto de réis.

 

— Upa! Um conto de réis não é dinheiro. É preciso que a aposta seja de vinte contos, pelo menos.

 

— Ó Veloso, tu estás doido? Onde vamos nós arranjar vinte contos de réis?

 

— O diabo nos leve se aqueles canudos não nos enriquecerem.

 

— Está dito! Aceito! Mas olha que é sério!

 

— Muito sério. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar duas estampilhas.

 

— Sim, senhor! Quero o preto no branco! Há de ser uma obrigação recíproca, passada com todos os efes e erres!

 

Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas.

 

— Senta-te e escreve o que te vou ditar.

 

Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e disse:

 

— Pronto.

 

Eis o que o outro ditou e ele escreveu:

 

"Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de réis, que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse pagamento, além da presente declaração, a minha palavra de honra".

 

— Agora eu! disse Veloso, sentando-se:

 

"Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte contos de réis... etc.".

 

As declarações foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando cada um com a sua.

 

No dia seguinte Montenegro embarcava em Santos e seguia para o Sul, enquanto Veloso, arrebatado pelo trem de ferro, se aproximava da Corte.

 

 

II

 

Montenegro ficou apenas três anos em Santa Catarina, que lhe pareceu um campo demasiado estreito para as suas aspirações: foi também para a Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado, amigo da família dele, paternalmente se ofereceu para encaminhá-lo, oferecendo-lhe um lugar no seu escritório.

 

Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu companheiro de estudos, e não encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento que esperava. Veloso estava outro: em três anos transformara-se completamente. Montenegro veio achá-lo satisfeito e feliz, com muitas relações no comércio, encarregado de causas importantes, morando numa bela casa, freqüentando a alta sociedade, gastando à larga.

 

O catarinense, que tinha uma alma grande, sinceramente estimou que a sorte com tanta liberalidade houvesse favorecido o seu amigo; ficou, porém, deveras magoado pela maneira fria e pelo mal disfarçado ar de proteção com que foi recebido.

 

Veloso não se demorou muito em falar-lhe da aposta de São Paulo.

 

— Olha que aquilo está de pé!

 

— Certamente. A nossa palavra de honra está empenhada.

 

— Se te casas, não te perdôo a dívida.

 

— Nem eu a ti.

 

Os dois bacharéis separaram-se friamente. Veloso não pagou a visita a Montenegro, e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se às vezes, fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros, e Veloso perguntava infalivelmente a Montenegro:

 

— Então? ainda não és noivo?

 

— Não.

 

— Que diabo! estou morto por entrar naqueles vinte contos...

 

 

III

 

Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do Conselheiro Brito. Não podia faltar, porque fazia anos o seu venerando protetor, mestre e amigo. Lá foi, e encontrou a casa cheia de gente.

 

Passeando os olhos pelas pessoas que se achavam na sala, causou-lhe rápida e agradabilíssima impressão uma bonita moça que, pela elegância do vestuário e pela vivacidade da fisionomia, se destacava num grupo de senhoras.

 

Era a primeira vez que Montenegro descobria no mundo real um físico de mulher correspondendo pouco mais ou menos ao ideal que formara.

 

Não há mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares interessados de um homem. A moça imediatamente percebeu a impressão que produzira, e, ou fosse que por seu turno simpatizasse com Montenegro, ou fosse pelo desejo vaidoso de transformar em labareda a fagulha que faiscaram seus olhos, o caso é que se deixou vencer pela insistência com que o bacharel a encarava, e esboçou um desses indefiníveis sorrisos que nas batalhas do amor eqüivalem a uma capitulação. O acordo tácito e imprevisto daquelas duas simpatias foi celebrado com tanta rapidez, que Montenegro, completamente hóspede na arte de namorar, chegou a perguntar a si mesmo se não era tudo aquilo o efeito de uma alucinação.

 

O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que entrou na sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo:

 

— Vamos jantar.

 

À mesa, por uma coincidência que não qualificarei de notável, colocaram Montenegro ao lado da moça.

 

Escusado é dizer que ainda não tinham acabado a sopa, e já os dois namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem. Na altura do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida e completa, da sua fascinadora vizinha.

 

Chamava-se Laurentina, mas todas as pessoas do seu conhecimento a tratavam por Lalá, gracioso diminutivo com que desde pequenina lhe haviam desfigurado o nome. Era órfã de pai e mãe. Vivia com uma irmã de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores. Os pais não lhe deixaram absolutamente nada, além da esmeradíssima educação que lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu em sua casa, tinha, graças a Deus, alguma coisa, pouca, o necessário para viverem ambas sem recorrer ao auxilio de estranhos nem de parentes. Para não ser muito pesada à tia, Lalá ganhava algum dinheiro dando lições de piano e canto em casas particulares; eram os seus alfinetes.

 

— Fui educada um pouco à americana, acrescentou; saio sozinha à rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem lá de casa. Quando é preciso, vou eu mesma tratar dos negócios de minha tia.

 

E elevando a voz:

 

— Não é assim, titia?

 

— É, minha filha, respondeu do lado oposto a velha, embora sem saber de que se tratava.

 

Lalá era suficientemente instruída, e tinha algum espírito mais que o comum das senhoras brasileiras. Essas qualidades, realmente apreciáveis, tomaram proporções exageradas na imaginação de Montenegro.

 

Este disse também a Lalá quem era, e contou-lhe os fatos mais interessantes da sua vida, exceção feita, já se sabe, da famosa aposta de São Paulo.

 

E tão entretidos estavam Montenegro e Lalá nas mútuas confidências que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atenção prestaram aos incidentes da mesa, inclusive os brindes, que não foram poucos.

 

Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se. Lalá cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma expressão, e a Montenegro pareceu aquilo o non plus ultra da cantoria. Dançou com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as mãos com uma força equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade.

 

Ele sentia-se absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da moça num último aperto de mão.

 

Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que era quase marido. Estava na igreja, de braço dado a Lalá, deslumbrante nas suas vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu na figura do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega Veloso, credor de vinte contos de réis.

 

 

IV

 

Nesse mesmo dia Montenegro estava sozinho no escritório, e trabalhava, quando entrou o Conselheiro Brito.

 

— Bom dia, Gustavo.

 

— Bom dia, conselheiro.

 

O velho advogado sentou-se e pôs-se a desfolhar distraidamente uns autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar os olhos:

 

— Gustavo, aquilo não te serve.

 

— Aquilo quê?

 

— Faze-te de novas! A Lalá.

 

— Mas...

 

— Não negues. Toda a gente viu. Vocês estiveram escandalosos. Se tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto é tempo. Tu conhece-la?

 

— Não, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para formar dela o melhor conceito.

 

— Lá por isso, não, meu rapaz! Eu não fumo, mas não me importa que fumem perto de mim.

 

— Então ela...?

 

— Não digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educação muito livre, saracoteia sozinha por toda a cidade e não tem podido, por conseguinte, escapar á implacável maledicência dos fluminenses. Demais, está habituada ao luxo, ao luxo da rua, que é o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus como. Não é mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas começas e não tens ainda onde cair morto. Enfim, és um homem: faze o que bem te parecer.

 

Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos autorizada, calaram no ânimo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho amigo de seu pai o dissuadisse de requestar a moça, — não pelas conseqüências morais do casamento, mas pela obrigação, que este lhe impunha, de satisfazer uma dívida de vinte contos de réis, quando, apesar de todos os seus esforços, não conseguira até então pôr de parte nem o terço daquela quantia.

 

Mas o amor contrariado cresce com inaudita violência. Por mais conselhos que pedisse à razão, por mais que procurasse iludir-se a si próprio, Montenegro não conseguia libertar-se da impressão que lhe causara a moça. O seu coração estava inteiramente subjugado. Ainda assim, lograria, talvez, vencer-se, se, vinte dias depois do seu encontro com Lalá, esta não lhe escrevesse um bilhete que neutralizou todos os seus elementos de reação.

 

"Doutor. — Sinto que o nosso romance o enfastiasse tanto, que o senhor não quisesse ir além do primeiro capítulo. Entretanto, não imagina como sofro por não saber os motivos que atuaram no seu espírito para interromper tão bruscamente... a leitura. Diga-me alguma coisa, dê-me uma explicação que me tranqüilize ou me desengane. Esta incerteza mata-me. Escreva-me sem receio, porque só eu abro as minhas cartas. — Lalá".

 

A primeira idéia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se esquecer por ela; refletiu, porém, que não poderia justificar o seu procedimento, se recusasse a explicação com tanta delicadeza solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lalá com um desengano categórico e formal, e mandou-lhe esta pílula dourada:

 

"Lalá. — Deus sabe quanto eu a amo e que sacrifício me imponho para renunciar à ventura e á glória de pertencer-lhe; mas um motivo imperioso existe, que se opõe inexoravelmente á nossa união. Não me pergunte que motivo é esse; se eu lho revelasse, a senhora achar-me-ia ridículo. Basta dizer-lhe que a objeção não parte de nenhuma circunstância a que esteja ligada a sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza. Adeus, Lalá; creia que, ao escrever-lhe estas linhas, sinto a pena pesada como se estivessem fundidos nela todos os meus tormentos. —G. M.".

 

— Que conselho me dá vossemecê? perguntou Lalá à sua tia, depois de ler para ela ouvir a carta de Montenegro.

 

— O conselho que te dou é tratares de arranjar quanto antes uma entrevista com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas não vale nada. Ele que te diga francamente qual é o tal motivo... e talvez possamos remover todas as dificuldades. Não percas esse marido, minha filha. O Doutor Montenegro é um advogado de muito futuro; pode fazer a tua felicidade.

 

No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas:

 

"Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, tomarei um bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma lição na Rua do Senador Vergueiro. Esteja ali por acaso, e por acaso tome o mesmo bonde que eu e sente-se ao pé de mim. Recebi a sua carta; é preciso que nos entendamos de viva voz. — Lalá."

 

O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria ter sido escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, à hora aprazada o bacharel achou-se no Largo da Lapa. Recuar seria mostrar uma pusilanimidade moral, que o envergonharia eternamente. Depois, como ele possuía todas as fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provável delícia dessa viagem de bonde. Quando o veículo parou no Largo do Machado, Lalá sabia já qual o motivo pecuniário que se opunha ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissão de Montenegro.

 

— O motivo é grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra de honra, e o senhor não pode mudar de estado sem dispor de uma soma relativamente considerável; mas... eu sou mulher e talvez consiga...

 

— O quê? perguntou Montenegro sobressaltado.

 

— Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer ação que nos fique mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei.

 

Lalá estendeu a mão enluvada que Montenegro apertou, desta vez sem lhe magoar os dedos.

 

Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a cidade.

 

— Já está pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe quis dar um níquel.

 

O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu com os olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se:

 

— Foi por conta daqueles vinte, — sabes?

 

— Reza-lhes por alma! bradou Montenegro, rindo-se também.

 

 

V

 

Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro voltara desencantado do seu passeio de bonde. Lalá parecera-lhe outra, mais desenvolta, mais americana, completamente despida do melindroso recato que é o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se convencer de que a moça, depois de ouvir a exposição franca e leal das suas condições de insolvabilidade, desistira mentalmente de considerá-lo um noivo possível, dizendo por dizer aquelas palavras "talvez eu consiga", palavras à-toa, trazidas ali apenas para fornecer o ponto final a um diálogo que se ia tornando penoso e ridículo.

 

Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que lhe deu parabéns, e dai por diante só se lembrou de Lalá como de uma bonita mulher de quem faria com muito prazer sua amante mas nunca sua esposa. Desaparecera completamente aquele doce enlevo causado pela primeira impressão. O "reza-lhes por alma" saiu-lhe dos lábios com a impetuosidade de um grito da consciência. A desilusão foi tão pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha.

 

 

 

VI

 

Entretanto, mal sabia Montenegro que Lalá concebera um plano extravagante e o punha em prática enquanto ele, tranqüilo e despreocupado, imaginava que ela o houvesse posto à margem. Depois de aconselhar-se com a tia, que não primava pelo bom senso, a professora de piano e canto encheu-se de decisão e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no seu escritório e disse-lhe que desejava dar-lhe duas palavras em particular.

 

A beleza de Lalá deslumbrou o advogado, e, como este era extremamente vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva.

 

— Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora.

 

Lalá entrou, sentou-se num divã, e contou ao Doutor Veloso toda a sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro durante o jantar do Conselheiro Brito.

 

Admirado de tanta loquacidade e de tanto espírito, Veloso perguntou-lhe, terminada a história, em que poderia servi-la.

 

— Sou amada por um homem que é digno de mim, e o nosso casamento depende exclusivamente do doutor.

 

— De mim?

 

— A minha ventura está nas suas mãos. Custa-lhe apenas vinte contos de réis. Não quero crer que o doutor se negue a pagar por essa miserável quantia a felicidade... de uma órfã.

 

— Não compreendo.

 

— Compreenderá quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada é o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro.

 

— Ah! ah!...

 

— Escusado é dizer que ele ignora absolutamente a resolução, que tomei, de vir falar-lhe.

 

— Acredito.

 

— Qual é a sua resposta?

 

— Minha senhora, balbuciou Veloso, sorrindo; eu tenho algum dinheiro, tenho... mas perder assim vinte contos de réis...

 

— Recusa?

 

— Não, não recuso; mas peço algum tempo para refletir. Depois de amanhã venha buscar a resposta.

 

A conversação continuou por algum tempo, e Veloso começou a sentir pela moça a mesmíssima impressão que ela causara a Montenegro.

 

Lalá notou o efeito que produzia, e pôs em distribuição todos os seus diabólicos artifícios de mulher astuta e avisada.

 

— Feliz Gustavo!

 

— Feliz... por quê?

 

— É amado!

 

— Oh! não vá agora supor que ele me inspirasse uma paixão desenfreada!

— Ah!

 

— É um marido que me convém, isso é; mas se o doutor não abrir mão da dívida, e ele não se puder casar, não creia que eu me suicide!

 

Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois dias depois, quando Lalá foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas palavras:

 

— Não!... Se eu abrisse mão dos vinte contos, ele seria seu marido, e...

 

— E...?

 

— E eu... tenho ciúmes.

 

No dia seguinte ele era apresentado à tia, manejo aconselhado pela própria velha.

 

— Este é mais rico, mais bonito e até mais inteligente que o outro... Não o deixes escapar, minha filha!

 

A verdade é que Veloso não se introduziu em casa de Lalá com boas intenções; mas a esperteza da moça e as indiscrições do advogado determinaram em breve uma situação de que ele não pôde recuar.

 

Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o casamento de Lalá com o seu colega, e a indignação que dele se apoderou quando por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que fora ajustado esse consórcio imprevisto.

 

 

VII

 

No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritório, quando recebeu um cheque de vinte contos de réis, enviado pelo marido de Lalá.

 

— Não acha que devo devolver este dinheiro? perguntou ele ao Conselheiro Guedes.

 

— Não; mas não o gastes; afianço-te que terás ocasião mais oportuna para devolvê-lo.

 

E assim foi.

 

A lua-de-mel não durou dois meses. Os dois esposos desavieram-se e logo se separaram judicialmente. Ele voltou à vida de solteiro e ela tornou para casa da tia.

 

Um dia Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e tais coisas lhe disse a moça, tais protestos fez e tão arrependida se mostrou de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente em casa dele.

 

Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida nos seguintes termos:

 

"Doutor Veloso. — Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de vinte contos de réis, porque a divida que ele representa é uma estudantada imoral, sem nenhum valor jurídico. — Gustavo Montenegro".

 

    

 

novembro, 2008

 

 

 

 

 

Mauro Rosso. Professor, pesquisador de literatura brasileira, ensaísta, escritor, é autor, entre outras obras, de Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 2008).

 

Mais Mauro Rosso em Germina

> Contos de Machado