©anajanka
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

As lembranças vêm para mostrar que na cabeça nada nunca morre.

É só de noite ao colocar a cabeça no travesseiro que o dia realmente termina, que as ilusões que sustentavam o andar se desvanecem para o início de longas noites. É ao final de cada dia que constato o desaparecimento atemporal, total. No silêncio não há estímulos além daqueles abafados durante o dia pelas esperanças. E, neste silêncio do mundo, está a realidade que faz com que as noites se tornem indesejadas. Choros ao acordar, lamentações ao dormir (coisa que demora a chegar), nada que já não tenha acontecido antes com muitos outros, nada que não continuará a acontecer também com muitos outros.

Seus atos eram plenos de experiência e tudo que dela restou foi seu cheiro em um papel higiênico.

Essas coisas não deveriam acontecer (ou somente com os outros pois é só quando acontecem com os outros é que se sabe delas, coisas que quando acontecem com a gente tudo que se sabe é que não deveriam ter acontecido).

Tudo que restou foi o doce cheiro de seu ânus em um longo pedaço de papel higiênico.

"Por que as pessoas se vão?". Essa é uma pergunta tola. "Por que as pessoas se vão e nos deixam sozinhas?". Essa pergunta também é tola. "Por que as pessoas se vão, nos deixam sozinhas, restando-nos nada mais a fazer do que perguntas tolas?". De pergunta tola em pergunta tola onde pensas que chegarás, ó caranguejo das patas vermelhas? — Respondeu-me o demiurgo.

Tudo que restou foi o doce cheiro de sua vagina em um longo pedaço de papel higiênico.

As pessoas quando não estão mais perto de nós nos deixam sem um monte de coisas para fazer, como, por exemplo, marejar os olhos enquanto dizemos que ela é a única a quem realmente queremos tão bem e imploramos que volte para nosso lado. Coisas assim não precisam mais ser feitas e longos olhares e bocas fechadas em ternos sorrisos também não. Mas estas são apenas as partes, digamos, "clássicas", o mais conhecido, o que todo mundo faz.

Tudo que restou foram os doces cheiros que só ela tinha, guardados agora em papel higiênico que dobro com muito mais cuidado do que uso em cuidar de minha própria existência (blusas no frio e roupas claras no calor, disso não lembro; passar semáforos vermelhos e aguardar o semáforo abrir em ruas ermas durante a madrugada são agora rotinas). E ela sempre me dizia para respirar, porém sem distrair, ao dirigir. Porque distrair-se pode ser coisa muito perigosa.

Por isso é que, sem distração, a cada vez que fecho a caixa do meu tesouro, tomo com carinho um novo pedaço de papel higiênico, imaculadamente limpo (e nunca perfumado) e embalo bem para manter conscritos os restos dos quais me alimento hoje em dia.

A existência era como uma sossegada alameda residencial antes da chegada dos prédios residenciais e comerciais: calmaria de pouco trânsito sem pressa. Hoje, após a turbulência dos dias, é nas longas noites em companhia de umas poucas moléculas de odor que a hora do rush termina. Como eram felizes e calmas aquelas ruas antes que o faro dos automóveis as descobrissem como caminhos mais rápidos, caminhos alternativos, entre as grandes avenidas, antes que os automóveis as mudassem de classe, gênero, número e grau.

Gostava dos seus odores tanto quanto do tom caramelo de sua pele e de seus lábios carnudos e quando um dia me disse que não tinha conhecido alguém de que dissesse gostar de cheiro de vagina, fiquei enciumado ao pensar com quantos tivera que transar para poder fundamentar tal proposição. Mas não foram tantos assim. Era mais uma daqueles repetições de opiniões alheias.

Como não estar com as lembranças? Como não achar conforto naquilo que pisa no hoje e represa o amanhã? Os registros exigem, senhoriais, sempre máxima atenção, enquanto deles não quero mais do que sempre estarem presentes. É nesse dar de mãos que vai o tempo e é preenchido o espaço com restos doces de odores presos para sempre (eu espero!) em um papel higiênico.

Nunca me disse que não conhecera alguém que gostasse do cheiro do seu ânus; não, creio, por que tivesse grande experiência, mas por que isto aconteceu depois de descobrir, por mim, o quanto sua vagina era cheirosa. Mas talvez nem tanto depois, pois deve ter percebido meu nariz, logo da primeira, se esfregando em seu ânus. Provável verdade sim, pois logo percebeu que, tanto a sujeira das fezes não era apreciada, quanto a perfeita limpeza artificialmente perfumada do pós-banho, não produziam apreço. Logo descobriu que seus convites, feitos logo ao acordar, quando suor não fora excessivo, nem diminuto, eram sempre aceitos com entusiasmo.  

Logo descobrimos duas coisas fundamentais: o momento e o tempero. O certo e o correto. O momento estava contido entre os dez e oito dias anteriores ao início de sua menstruação. O momento do seu cio. Sendo o tempero urinar e deixar que a urina escorrida pelas nádegas não fosse secada, que se a deixasse secar ao contato com a calcinha. Bastavam umas poucas gotas naquela região para o prato estar pronto. Nosso segredo nossa descoberta. Seu tempo fértil enchia sua urina de substâncias (nem sabíamos os nomes) que durante a evaporação davam o sabor. Vagina e ânus, pelo perfume, coisa única. Única coisa. Os meses nos quais tais dias eram dez, e não apenas sete ou oito, estes afortunados meses, nos pareciam ser os de tempo mais frio. Talvez porque no calor a evaporação fosse mais rápida, talvez porque tais substâncias, tão sensíveis às mudanças de pressão e temperatura, tivessem sua volatilidade alterada. Mas não tivemos os anos necessários para confirmar esse padrão. De ambos a possibilidade dessa descoberta científica nos foi tirada.

De um lado a marca do odor doce, fresco, quase gelado, parecido com leite não muito açucarado; de outro, a marca mais escura, do qual desapareceram os odores mais acres com o envelhecimento, restando um suave odor de decomposição, que a princípio o nariz quer rejeitar, mas no qual a memória encontra paralelo irresistível. Por isso é que sonho, horas de pensamentos mirabolantes, com o dia em que haverá uma dessa maravilhas tecnológicas que registrará e nos permitirá reproduzir perpetuamente os odores que quisermos. Já ouvi falar de aparelhos de identificam as coisas pelos restos de cheiro que deixam no local de onde são retiradas. Este é um avanço da ciência que muito me interessa, sem dúvida. O odor de um segundo, minuto, hora, dia, mês, ano, década, vida, o odor de um bom tempero. Como já conseguiram fazer com os pensamentos, as imagens, os sons, talvez um dia para os cheiros, os gostos, as sensações, para todas essas coisas boas que não mais ficariam sujeitas aos entraves e os humores da memória. Porque esses sábios com seus subsídios governamentais demoram tanto em progredir nessa área?

Só neste momento, quando me percebo no que chamo de "cercanias do desespero", é que vejo o quanto já estive dentro dessa cidade de saídas invisíveis. Agora já vejo caminhos possíveis, alguns bastante úteis; e talvez mesmo bons (segundo me parece). Apenas não escolho um deles talvez por não conseguir fazer do desapego uma profissão; talvez por medo de achar algo melhor e então não haverá lixeira suficientemente grande para tudo que será descartado; talvez por ressentida raiva em saber, ainda que mal-e-mal, que o dia do desapego está cada vez mais próximo, raiva por não poder fazer o quer que seja para evitá-lo, raiva das coisas terem acontecido de forma a fazer com que este dia chegasse cada vez mais rápido. Medo, raiva, paralisia, desencanto, uma dessas coisas bem pode ser a causa. Ou talvez todas juntas, aqui e agora. E pensar que tudo está junto, seja em medida equilibrada ou não, faz mal para minhas teorias de causalidade. Melhor seria ter apenas um inimigo, o mais forte que seja, para enfrentar. Mas talvez isso também de nada adiantaria, já que, a cada minuto de pensamento, sobrevêm horas de lembranças a nocautear as teorias.

Por que as pessoas morrem sem nos dar tempo suficiente para ficarmos preparados para dizer adeus? Assim é: acordar, beijo de bom dia, café-da-manhã, beijo de despedida e um acidente no metrô com 31 mortos. Eis a realidade. Manhã inesquecível pelo que aconteceu. Manhã que não será esquecida pelo que dela restou. Sabia ela o que aconteceria e por isso deixara uma seleção especial, uma reserva de, digamos, algo como um Mouton Rotschild lendário? Se assim foi, então encarou seu destino, mas sem esquecer de mim, como poderia eu esquecê-la? Ela, que me civilizou, fosse ao ensinar-me a escolher o talher correto, a harmonizar sapatos, cinto e gravata, fosse a prestar mais e melhor atenção às variações múltiplas de seus gemidos e sussurros.

Não leio mais. Não converso mais. Se vejo e ouço é por que tais faculdades estão além do meu controle. Não quero mais o mundo, pois tudo que o mundo me dirá, apontará, sinalizará, é que devo me livrar das partes mortas dentro de mim mesmo. Não que isso seja impossível, mas seria concomitante ao descarte dos papéis que ainda guardo. E isso, isso é impossível. Pois, quando digo que ela se foi, percebo-me ofendendo-a e isso é errado. É muito mais correto dizer que ela foi levada. Não concebo que ela assim desejasse. Eu, plena certeza, não desejei. Mas aconteceu assim mesmo. Por isso os descartes são impossíveis: se isso acontecer, quantos deverei matar para saciar minha vingança? Luto é coisa tão particular que não há palavras suficientes para mostrar aos outros o quanto ardem esse detalhes que são centro.

E eu aqui, por assim dizer, eterno, nesta minha monogamia arrevesada.

 

 

 

 

Lucy é uma Australopithecus Afarensis.

Ela não sabe disso. Não sabe que esse é nome de sua espécie. E nem que há um nome pelo qual os outros membros de seu bando poderiam chamá-la e que significa "luz" (mais ou menos, porque tais questões são bastante complexas). Ela nem sabe o que é um "nome". Mas, ela sabe muito bem qual é sua situação de momento.

O macho, seu companheiro (de momento também, pois ela já teve outros; todos mortos), que sabia, como ela, apenas as regras fundamentais da sobrevivência, distraiu-se por uns breves momentos, há duas semanas, e foi devorado por um bando de leoas. Por isso, por ele não ter voltado com as frutas que saíra para colher, Lucy afastou-se algumas centenas de metros do local onde o bando costumava ficar, porque as regras do bando (não muitas, é verdade) se resumem numa só: cada um (ou cada casal, ou sub-grupo) que se vire para achar alimento.

Os tempos são duros. Tanto quanto foram quando seus antepassados se encaminharam para esta região, a Depressão de Afar, na Etiópia, ao longo do Grande Vale do Rift (o berço da humanidade, segundo alguns), que é resultante do encontro/afastamento entre as placas tectônicas Arábica e Africana (mas, Lucy não sabe nada disso). Tempos duros, tanto quanto serão para seus descendentes na próxima Era Glacial daqui a uns cem ou duzentos milênios.

Por isso ela se aproxima demais do Rio Awash e das árvores altas e de muitos galhos altos que o circundam nesta manhã que espera forte chuva para logo. Os leopardos adoram estas árvores que lhes servem de restaurante e hotel. Preferem fazer tais atividades à noite, mas, para um inexperiente leopardo algumas noites terminam em fome matinal. Lucy sabe do perigo, tanto quanto aprendeu com os velhos do bando que, pelas manhãs, normalmente os leopardos dormem.

Lucy recolhe rapidamente do chão algumas frutas; quer ir embora logo, as nuvens estão muito escuras e muitos relâmpagos já podem ser vistos, embora o som dos trovões ainda esteja longe e abafado; enquanto o sol começa a nascer para além das colinas onde está o mar que um dia será Vermelho. Lucy percebe a aproximação da claridade e da luz que tenta atravessar as nuvens e pára por uns instantes para olhar o todo do panorama, o confronto entre a luz nascente e escuridão da água dentro das nuvens (ela não sabe que e vapor d'água). Em sua mente primitiva (ela não sabe que é — nem o que é — primitiva) algo se move, junta sons e explode: M'illumino d'immenso.

Um segundo depois o inexperiente e faminto jovem leopardo salta sobre ela; seu peso a empurra para o chão enquanto tenta abocanhar-lhe o pescoço para asfixiá-la. Lucy grita de medo e grita mais ainda de dor quando o inexperiente leopardo erra o pescoço e crava os dentes na sua clavícula direita, esmigalhando-a e lacerando uma importante artéria. Em seguida, o felino consegue abocanhar-lhe o pescoço e inicia a pressão terminal. Neste momento, um relâmpago destroça e incendeia a árvore mais próxima. Um galho em fogo cai sobre a pata traseira esquerda do felino, que, inexperiente, e agora assustado salta de lado e foge para a outra árvore. 

Lucy tenta fugir, mas o estrago foi grande. Um dos dentes lacerou seu pescoço e ela sangra também por ali. Mas ela se levanta e cambaleia enquanto desaba a mais forte tempestade dos últimos dois mil e quinhentos anos e dos próximos cinco e trezentos. Lucy consegue andar vinte metros em direção á savana onde está seu bando antes da sua visão começar a turvar. Ela inverte o caminho sem saber e volta em direção ao rio e dez metros adiante cai de joelhos. Deita de frente enquanto a forte chuva cai sobre seus olhos fechados. O leopardo, recuperado do susto e mais faminto ainda, desce da árvore para buscar sua presa. 

No pequeno cérebro de Lucy (um pouco maior do que o de um chimpanzé, mas ainda muito menor do que o de um humano) ainda pululam aqueles sons, que são agradáveis de ouvir, mas cujo significado é totalmente obscuro para ela.

Antes que o leopardo chegue para puxá-la para o alto da árvore o rio transborda devido à queda de algumas pedras há duzentos metros de distância  no ponto onde o rio faz uma acentuada curva. A torrente de água cheia de sedimentos ribomba tão forte quanto o mais próximo trovão. O leopardo empina a cabeça e vê sua refeição ser engolfada pela lama. E ficar encoberta por cerca de três milhões e duzentos mil anos, pois a chuva dura dias que fazem o pequeno Awash se parecer com o Nilo na época das cheias.

Lucy está morta. Ela nunca soube nada dessas coisas. Nem saberá que seus parentes são os antepassados da espécie que resgatará seu esqueleto quase completo e que lhe dará um nome que a iluminará por toda a imensidão deste pequeno planetinha, graças a uma chuva torrencial, umas frutas caídas no chão e um incompetente leopardo.

 

 

 

 

 

 

Em um final de manhã de fim de inverno, Vassily espreitava em um daqueles becos mal iluminados de uma daquelas ruazinhas que existem na parte de trás do lado oeste do Kremlin moscovita quando uma mão forte de homem (deduziu que assim fosse pois não apenas foi colocada em seu ombro esquerdo mas também exerceu uma notável pressão que fez com que seu ombro ficasse mais abaixado ainda do que o normal).

— O que faz por aqui, camarada? — Ouviu a voz estrondosa (seria um baixo? devia ter prestado mais atenção nas aulas de música, pensou) lhe perguntar. De soslaio, pois virava a cabeça lentamente, viu que a voz e mão fortes não traíam seu proprietário, um homem de quase dois metros de altura e que com o sobretudo e o gorro (indispensáveis naquele dia frio) parecia muito maior ainda.

— Então? O que tem a dizer, camarada? — Repetiu a voz forte.

Vassily sabia muito que este não era o tipo de homem (e local e situação) ao qual poderia responder impertinentemente com um "quem quer saber", ou um "desde quando isso passou a ser da sua conta", ou, pior ainda, "nuntinteressa". Não, de forma alguma, pois agentes da KGB não apreciam, nem um pouquinho que seja, tal tipo de respostas.

— Um instante, senhor, que já lhe mostro meus documentos. — Foi o que mal-e-mal conseguiu balbuciar. E moveu o braço direito para pegar os papéis no bolso interno do paletó. Mas o nervosismo o traiu.

— Ah! Mas não tão rápido, camarada! — Vassily se movimentou rápido demais e o agente interceptou seu braço no meio do movimento, puxou-o para baixo com muito vigor usando a força de seu braço direito enquanto movimentava rapidamente as pernas para ficar no flanco direito de Vassily, lado este que ficara desprotegido quando este teve seu braço direito puxado fortemente para baixo. O agente já fizera tal movimentação centenas de vezes, entre treinamento e realidades, por isso assumiu uma extremamente vantajosa posição antes mesmo que Vassily pudesse notar. Com o flanco aberto, era agora uma presa fácil. Poderia ter suas costelas quebradas com uma joelhada de baixo para cima ou com uma joelhada em movimento semicircular poderia ter seu estômago ou fígado atingidos severamente. Isto, é claro, se o agente resolvesse usar o joelho direito. Se fosse o esquerdo, seria o rim ou, em um ataque fatal, a coluna lombar. Poderia também ser desequilibrado por uma rasteira ou receber socos na lateral do pescoço ou na nuca. Seja como for, é claramente uma situação em que homem algum deve se deixar ser colocado. Em frações ínfimas de segundo, Vassily imaginou o pior dos destinos (e também um que era pior que o pior!) e a borsch e a vodka matinais começaram a forçar caminho esôfago acima.

Mas o agente apenas o circundou para colocar-se atrás dele. Passou o braço esquerdo em volta do seu pescoço apoiando a mão esquerda espalmada no lado direito de sua mandíbula inferior e, com um forte movimento do pulso, forçou seu pescoço para o lado esquerdo, enquanto em sua mão direita a pistola negra, 9 mm, já apontava para a têmpora direita de Vassily, que nem se preocupou em inquirir-se mentalmente como a arma chegara tão rápido no local onde agora estava.

— Quem é você, camarada? Responda logo, seu tempo é curto!

O tom de voz não permitia respostas inconclusivas.

— Sou Vassily Rosemblumenthalovich de Kiev trabalho no escritório da Mikhoyan-Gurevitch perto da estação Paveletskaya! — Falou muito rapidamente, mas não disse o endereço, pois sabia muito bem o quanto era exigido e reafirmado que nunca, nunca!!, em hipótese alguma um camarada deveria dizer o endereço de seu trabalho, mesmo às autoridades, pois se estas fossem mesmo autoridades respeitáveis, então, saberiam onde era cada escritório administrativo, e este, certamente, era um desses casos; assim, diante de tanta autoridade, Vassily sabia que sua situação poderia se complicar ainda mais).

— Então, Vassily Rosemblumenthalovich... de Kiev... com muita calma... sem movimentos bruscos... e se lembrando que há uma arma na sua cabeça... — A voz era dura, com pausas bem medidas e calculadas entre cada frase e forte (como fora desde o início).

Durante alguns segundos nada aconteceu. E então foi empurrado para a frente, jogado a mais ou menos uns dois metros. Não caiu, embora tropeçasse. Não tropeçou a ponto de cair, sua mente lhe explicou tudo naquela fração de segundo, pois ficar a dois metros era exatamente o que o agente desejava, por isso não havia exagerado na força.

— Não se mexa! — Trovejou a voz. — Agora, vire-se! Devagar! Bem devagar...

A pistola semi-automática estava apontada para a cabeça de Vassily.

— Então, camarada, o que está fazendo aqui? Responda!

— Eu... — Balbuciou. — Eu... — Pensou que agora era tarde demais para invenções. Eu... estou perpetrando um ato pequeno-burguês, camarada... — Disse, baixando a cabeça em sinal de vergonha.

— ?

— Sim. É um procedimento completamente... totalmente pequeno-burguês... Não há como negar... — Disse, diante do olhar interrogativo do agente.

Nisso, do outro lado da rua, a figura esguia, de longos e belos cabelos negros, nos quais o sol aparece em reflexos azulados, de pernas longas e elegantes e olhar distante, sai do prédio logo em frente.

Vassily vira os olhos para aquela direção. Mas não move a cabeça e nada do corpo: sabe que é muito arriscado fazer isso sob a mira de uma arma.

O agente percebe o movimento dos olhos de Vassily. Rapidamente, mas sem ser brusco, vira corpo e cabeça de modo a, usando sua privilegiada visão periférica, observar sua presa e aquilo que os olhos de sua presa buscavam. A arma continua apontando direto para a boca de Vassily.

— Tá vendo?... — Vassily disse quase choramingando. — Tá lá o motivo do meu crime pequeno-burguês... É Anya... Minha noiva...

— ? — O agente jamais diria que não havia entendido nada: agentes da KGB nunca, nunca!!, fazem isso. Mesmo que não entendam o que quer que seja, ainda assim fazem cara de entendidos, enquanto forçam os neurônios para tentar compreender o que quer que esteja acontecendo.

— Anya... Acho que está me traindo... — Pequenas lágrimas rolaram de seus olhos.

— Entendo... — Conseguiu dizer o agente após alguns segundos enquanto se recuperava da surpresa. Quer dizer então que nada de grande prisão hoje..., pensou.

— Eu a adoro desde que éramos crianças... — Um pouco mais de pequenas lágrimas rolaram de seus olhos.

— Realmente... é...  um... ato de pequena-burguesia. — Disse o agente. — Mas, não é um crime. — Completou.

Sabia que não era um crime. Tinha total convicção disso. Mas a situação era tão bizarra que precisava ganhar tempo para pensar. Seria possível que quase matara um camarada apenas por que este desconfiava que era um... corno?

— Por que você acha disso?... Quer dizer, por que acha que ela está te traindo? — Ganhado tempo.

Vassily exeu a boca em algo que poderia ser chamado de sorriso, embora, na verdade, fosse um meio, ou sorriso tortuoso, na melhor das hipóteses.

— Você sabe como é... São aquelas coisinhas que não batem... Sabe? Aquelas histórias... "Vou pra tal lugar...". E depois a gente descobre que esse lugar, um teatro que não encena Tchekov há mais de dez anos... Ora, posso não ter nascido em Moscou, mas isso é demais, não é?... "Vou buscar vodka...". E a gente descobre que o apartamento tem tanta vodka lá que daria, nos velhos tempos, para dar banho em todos os Romanoff vivos... e nos que tinham morrido também!... Essas coisas, entende?...

Claro que o agente entendia dessa coisas. Mas ainda não estava convencido.

— Ei, onde pensa que vai? — Disse quando Vassily começou a se movimentar em direção à grande avenida e, mais precisamente, para o mesmo sentido que aqueles lindos cabelos, olhos e pernas se dirigiam.

Vassily ainda tinha os  braços erguidos e as pequenas lágrimas nos olhos

— Ela me disse que iria tentar arranjar lugares para vermos o Kirov... — Disse enquanto olhava nos olhos do agente e parecendo não se importar para onde quer que a arma estivesse apontada. — Mas o escritório que cuida disso fica do lado leste do Kremlin...

O agente sabia disso. No dia anterior havia trocado noventa e seis horas de trabalho de vigilância noturna no lado sul do Kremlin (o lado mais frio) por um único lugar para o Kirov.

— Tem algo errado aqui, não é?... — Disse Vassily. — Eu preciso saber, entende? Eu preciso saber...

O agente nada disse.

— Mesmo sendo uma miséria pequeno-burguesa, eu tenho que saber! — Asseverou Vassily.

Sim, ele precisava saber.

— Vá. Pode ir. — O agente abaixou a pistola, mas não a guardou. O treinamento dizia para jamais fazer isso na frente de um inimigo em potencial, mesmo que o potencial fosse baixíssimo como no caso de Vassily. Pelo menos era assim que pensava.

E Vassily, com um olhar que era de grande agradecimento, mesmo sem dizer nada, se foi para a frente do beco para espreitar Anya a desfilar pela avenida fria.

 

Três dias depois, e cinco antes da apresentação do Kirov, o agente da KGB distraidamente lendo os relatórios da polícia viu que um deles relatava que o corpo de uma mulher fora encontrado no margem leste do rio. Seu nome: Anya Diakonova. O rosto estava desfigurado, mas os cabelos não permitiam dúvidas. O relatório do legista apontava sinais inequívocos de tortura e as descrições das lesões não permitia, conforme sua experiência, outra conclusão além de que a mulher sofrera sevícias durante, no mínimo, vinte e quatro horas. Mas eram lesões diferentes das que se vê no relatório final de uma sessão de interrogatório típica de uma agência de informações. Ou seja, Anya não sofrera porque seu(s) algoz(es) considerasse(m) que ela tivesse uma importante informação que deveria ser obtida a qualquer custo. Não, as lesões não eram desse tipo.

Os papéis! Por que não lhe exigi os documentos?!!! Ele disse que ia pegá-los...  — pensou o agente. Um erro imperdoável, sem dúvida. Não seria necessário ser um especialista (o que, de fato, era) nos estímulos específicos que levam inapelavelmente ás reações pavlovianas para concluir porque cometera ato tão pequeno-burguês como apiedar-se daquele Vassily Rosemblumenthalovich. Todos os cursos e treinamentos, que ministrara na agência, sobre as reações incontroláveis (por parte do sujeito) e totalmente previsíveis (por parte do estudioso) agora faziam mais sentido do que nunca.

Vassily dissera "Eu preciso saber, entende?...", e é claro que a palavra "entende" não necessariamente era uma pergunta, porém muito mais uma daqueles termos/expressões que se coloca ao final das frases para conseguir mais atenção do interlocutor. Mas, nesse caso, ela cumpriu seu papel de atrativo com perfeição. Sim, ele entendera. Ele também tivera sua Anya em um desses passados distantes, mas que, infelizmente, sempre retornam quando menos deles se necessita. Por isso é que, como dizia seu antigo supervisor, entrara sem se aperceber nesse "decadente drama pequeno-burguês".

 

Foi assim que Piotr Ilitch Poliulianov entendeu a alma humana (talvez todas em geral; talvez só a russa, em particular) e se tornou um agente muito melhor do que jamais fora e que qualquer outra que houvesse na divisão moscovita.

Uma grande promoção o esperava. Leningrado São Petersburgo, talvez. Paris, não. Paris exigia muito mais. Mas São Petersburgo estava bom por enquanto (e nem se preocupou em pensar nesta cidade dos novos sonhos por seu antigo nome, pois era assim que todos pensavam, agentes da KGB ou não, embora ninguém, principalmente agentes da KGB ousasse falar outro nome além de Leningrado).

Mas apenas, claro, se o encontrasse antes que todos os outros.

E apenas e tão-somente se existir mesmo um Vassily Rosemblumenthalovich, vindo de Kiev, no escritório da Mikhoyan-Gurevitch perto da estação Paveletskaya.

 

 
 
julho, 2008
 
 
 
 

 

Gildo Staquicini Jr. Paulistano desde os 7 anos, psicólogo desde os 29, já fez um monte coisas (todas honestas, é bom ressalvar), mas agora cansou de fazê-las do mesmo jeito de sempre e resolveu fazer outras coisas das quais a honestidade é duvidosa ou, no mínimo, fingida: nada de novo, apenas um velho gosto. Tem publicações na web, na Diversos Afins, no Anjos de Prata e no blogue que edita, o Dragon Blues. E ainda mantém o sonho de enriquecer escrevendo (sem gargalhadas, por favor).

 

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