©marta s
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

A tempestade cavou o buraco. Vivia na rua perfeita, no bairro perfeito, no casamento perfeito.

Ligou imediatamente para a prefeitura, era sua obrigação. O buraco atrapalharia o marido na hora de estacionar o carro bem no meio do caminho.

Na prefeitura a instruíram a ligar para o Departamento de Águas e Esgotos. De lá a encaminharam para a companhia de gás. Na companhia de gás, já ia a manhã pelo meio, indagaram se isso não era lá com a prefeitura.

Estava andando em círculos. Logo os filhos estariam em casa, não podia atrasar o almoço.

Círculos, um abutre no céu desenhava círculos perfeitos sobre o lago que sempre imaginou que existia no fim da rua mas não estava lá. O bairro não era tão perfeito assim.

E mais esse buraco. Aberto no meio da rua feito risada maliciosa.

Antes de engravidar tivera aulas de bordado, economia doméstica e poesia, "Tinha um buraco no meio do meu caminho", será que era o caso?

Só havia uma coisa a fazer, ela sabia que esse dia chegaria. Ela sabia onde o marido escondia a chave junto das fotos daquela mulher nua. Tão linda, a sua idade e nenhuma celulite. Outra hora resolveria este mistério. Ela sabia de tudo naquela casa.

Agora, a urgência, o buraco rindo no meio do mundo, a garganta seca, a tarja preta, a chave nas mãos.

Blended & Bottled by... Ah, o armário de bebidas. Tão chique essa garrafa de whisky. Doze anos envelhecida, doze anos.

 

 

 

 

 

 

 

Encontraram-se por acaso, nos corredores da vida. Lembrança vai, conversa vem. A mulher entrou no assunto que tanto a afligia.

— Eu confio no senhor. Eu não agüento mais a minha artrose!

O doutor, já com seus setenta anos, ele mesmo paciente de artrose de algum outro doutor, parecia satisfeito com a inesperada declaração.

Porém, havia mais. No silêncio jazia o indizível. Jamais ficou claro se era ele quem esperava ouvir nas entrelinhas, ou se era ela quem sussurrava através do tempo, "Me dá uma drágea, uma dose. Me dá logo o beijo que eu espero há cinqüenta anos!".

— Se o senhor visse os remédios que tenho tomado... Tão fortes e não resolvem nada!

"Sua mulher ainda era viva, meu marido era brocha, no dia em que o senhor me fez o primeiro exame de toque. Por favor se troque (pausa dramática), ali atrás do biombo. Eu sentia os seus olhos arderem pelas frestas".

— Eu não estou querendo ir, mas tenho medo. Estes remédios têm me dado taquicardia.

"Beija logo! Eu não estou querendo ir, mas já não sou mais uma criança!".

— Eu confio no senhor. Preciso de algo que uma pessoa possa tomar todo dia, sem tréguas. Que faça efeito, que afaste essa dor. Eu não agüento mais!

O doutorzinho, franzino, magrinho, encolhido pelo tempo, parecia se contorcer em seus sapatos lustrosos.

"Beija logo esse beijo de cinqüenta anos! Que eu não agüento mais".

— Taquicardia é perigoso. O coração tem que bater assim: “tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum...". Se ele estiver assim: tum, tum-tum, tum-tum.tum, tum... Isso é perigoso".

 

 

 

 

 

 

 

— A vida tem cara de jumento amarrado!

— Ô, menina! Quantas vezes tenho que lhe dizer? Pára de falar essas bobajadas! Se teu pai te pega de novo, é surra na vara de marmelo!

— Vou dizer o quê? Que a vida tem cara de muriçoca abestalhada?

— Não diz nada! Vida não tem cara! Vida não é bicho! Vida é vida!

A menina fazia um muxoxo e ia pra janela olhar o sítio. A paisagem morta no meio mormaço do dia. A moscaria rondando, o jumento c’uma preguiça que só vendo.

Pegava a boneca, os cabelos ralos de tanto pentear, o vestidinho amarelado, e se trancava no quarto onde dormia no meio do pai e da mãe. Mas a essa hora, a mãe lavando a roupa, a louça, varrendo o terreiro, regando a horta, cuidando das galinhas, a essa hora a cama era só sua.

Se esparramava e dizia pra boneca, "A vida tem cara de jumarra amarrento!". A boneca ria e respondia, "De paçoca abestocada!".

A menina não sabia de nada. Era tudo brincadeira. O pai, com o enorme peso do mundo nas costas, por via das dúvidas, descia a  tareia.

Quando entrou na escola, escrevia as brincadeiras escondida, pra professora não ver. Certa vez escrevera, "Joãozinho tem cara de melancia quadrada". Não era nada, era só brincadeira. Mas a professora não quis saber, pra ajustar a menina, botou de joelho no milho.

E lá ela ficou pensando uma fiada de idéias, "O joelho, o milho, a cara da vida. O jumento do pai comendo farelo, a jumenta da vida pastando amarela, a jumenta da vida com cara de milho". Ara, se não era poesia!

Cresceu, mudou pra cidade, foi ser professora. Hoje dá aulas pra uma menina igualzinha. Quando ela diz, "A vida tem cara de joaninha sem bolinha", sente saudades da mãe.

Vai à janela da sala, olha pro céu, e faz uma birra, "Tá vendo? Eu não te disse? A vida tem cara de jacaré com chulé!".

 

 

 

março, 2008

 

 
 
 
 
Paulo D'Auria (São Paulo-SP, 1966). Poeta, contista, bacharel em História pela USP. Participou das antologias Crônicas, São Paulo 450 anos, e Ficção científica brasileira — panorama 2006/2007. É coordenador de literatura do Projeto Macabéa/Revista Trapiches. Mantém o blogue literário http://paulodauria.zip.net.
 
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