©silvan
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

«Gloire et louange à toi, Satan, dans les hauteurs

Du Ciel, où tu régnas, et dans les profondeurs

De l'Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!

Fais que mon âme un jour, sous l'Arbre de Science,

Près de toi se repose, à l'heure où sur ton front,

Comme un Temple nouveau ses rameaux s'épandront!»

(Prière, Les litanies de Satan, Les fleurs du mal, C. Baudelaire)

 

 

Um verão inteiro dentro de uma montanha-russa desgovernada. Assim foi aquele verão de Henrique no Rio de Janeiro, depois que Rosário foi embora. Deborah, uma ex-stripper de Copacabana, que o largou na véspera do réveillon. Maíra, uma ex-caso que só aparecia quando bem entendesse. Lia, uma escritora treze anos mais nova que, para se livrar de Henrique, apresentou uma amiga, Julieta, uma das mulheres mais divertidas desse mundo, mas que preferiu se divertir no Carnaval sem dar muita trela para Henrique. Uma noite de ménage à quatre com três vadias que ele sequer sabe o nome. Um encontro marcado e desmarcado com outra. Uma quarta-feira-de-cinzas de ressaca moral. Difícil seria convencer as pessoas que Henrique gostaria muito de arrumar uma namorada gente boa e ter sossego. Difícil convencer-se de que não é um incorrigível filho-da-puta, um cafajeste, um canalha mentiroso que só quer saber de putaria. O problema de Henrique, no final das contas, nunca foi o coração, e sim a mente perversa que sabota a sua vida de merda.

 

Estou cansado. Não quero falar com ninguém. Não quero ver ninguém. Não quero saber de ninguém. Eu poderia ter amado todas elas. Mentira, não todas. Duas, certamente. E ser acusado de mentiroso, e com razão. Mas poderia, sim. Esqueci de falar de Diana, que amo há algum tempo, mas ela não está aqui. Estou cansado. Noutros tempos, seria este o momento de pensar no estrago de uma bala perfurando o crânio e transformando o cérebro numa pasta de atum. Eu comeria meu cérebro se pudesse. Eu tenho fome. É a fome insaciável dos psicóticos. É um mundo estranho o nosso que ainda permite que alguém assim não esteja usando uma camisa-de-força. Embora seja do meu feitio construir personagens chocantes para eu vestir. Tenho uma ex-paixão, hoje grande amiga, e algumas semanas atrás, ainda dentro da montanha-russa desgovernada, beijos trocados e o apaziguamento definitivo de que nada mais existe entre nós do que uma inabalável amizade, que me disse: não entra num jogo que você sabe que não conseguirá jogar. Ela é sábia. E me conhece do avesso. Mas errou, pelo menos dessa vez. Eu só queria ter jogado mais. Ter apostado mais. E foda-se se perdesse mais. Sou um jogador, daqueles viciados. Eu não quero sair dessa vida. Eu não quero parar. Sinto falta até de uma boa briga. Sinto falta de sangue. Eu não sou um homem de paz. Adoro guerra. Adoro violência. Quero ver corpos humanos destroçados. Quero o cheiro da carne apodrecendo. Eu tenho muita fome. E já matei muita gente. Sacrifiquei crianças, porque sou um xamã. Destruí exércitos, porque sou um soberano. Condenei almas aos infernos, porque sou Satã. E toda noite rezo para a Virgem Maria, minha mãe santa. Apenas ela me daria o perdão, caso, evidentemente, eu me arrependesse de algum feito. Meu pai está morto. Morto pelas minhas mãos, porque é sempre assim que um pai tirano deve morrer, pelas mãos do filho, aquele que tomará o seu lugar. Minha mãe é perdão. E eu fodendo todas as filhas de Eva, todas as nossas mães. E bebendo o sangue menstrual, doce. Tantos amores abortados. Tantos desperdícios. E nem sinto saudades. Sinto falta, muita falta. No dia seguinte, ou no mesmo dia. Estou sozinho. É bom estar sozinho. Só é bom estar acompanhado se trepado em alguém. Aí o Carnaval acaba e eu continuo. Porque eu sou o espírito abutre do mundo. Eu sou a peste no apocalipse do mundo. E não consigo parar. Não consigo fazer com que ela acredite que tenho um bom coração, que até seria capaz de amá-la. É uma quarta-feira-de-cinzas e, sem ressaca moral, uma mente perversa sabota a vida.

 

 

 

 

 

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Conto em parceria com Diana, pseudônimo de P.

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Semanas atrás Diana me disse que aprendera a amar mais de um homem. Ela ama o seu marido, Yuri, e ultimamente se descobriu mergulhada em um amor platônico pelo seu vizinho, Jean, cerca de trinta anos mais velho. Diana tem trinta e um anos e nos amamos há uma década. Eu pensei em dizer para ela, na ocasião, que ela era a única mulher que eu tinha a capacidade de amar com suavidade, e a suavidade neste caso não representa falta de suor, saliva e outras secreções, representa, sim, liberdade. Não existem cobranças nem brigas entre nós. Nunca existiram. Amamos outras pessoas e, mesmo assim, não deixamos de nos amar. Eu já fui apaixonado por ela, certa vez, antes de ela ir embora para a França, mas eu não disse nada quando ela me abraçou, depois de uma noite de sexo, e me pediu cuida de mim. Eu deixei que ela fosse embora. Ela se casou e, recentemente, esteve no Brasil por um breve período. Passamos uma noite juntos e como bichos nos entregamos um ao outro. Foi o melhor sexo da nossa década de amantes incondicionais. E novamente ela foi embora. Hoje recebi uma carta sua. Escreveu-me sobre a sua noite de réveillon em Lodève. Yuri convidara Jean e sua mulher para passarem com eles a data. Diana ficara perturbada. Suas emoções já vinham afligindo sua mente há algum tempo e a idéia de estarem os quatro juntos... Acordou cedo e foi às compras. Queria preparar um belo jantar. Ao voltar, Yuri diz que encontrou por acaso a filha de Jean e que eles não iriam mais passar a noite de réveillon juntos. Nenhum aviso, nada. Diana morre. Que tipo de pessoa faria isso? E logo ele? Logo ele? E ficou imersa em emoções antagônicas durante as últimas horas do ano velho. Até que se lembrou de ter ouvido falar de uma festa em uma caverna perdida em um lugar ermo entre a floresta e a montanha. Insistiu com Yuri que fossem. Ele não queria. Mas a persistência de uma mulher é capaz de levar um homem à glória ou à infâmia. Eles foram. Orgulhosa de minha capacidade, eu me vejo então diante de um novo mundo. Agora é arrumar tudo e achar o caminho da caverna. Mochilas, água, cerveja, luvas, lenha... Uma verdadeira expedição. Entramos no carro. Em minhas mãos, um pequeno mapa, simples e malfeito, de como chegar ao destino. Começamos a subir uma colina. O asfalto virou terra, árvores, rochas, fumaça. Meia noite! E nós ainda no carro. Degusto uma uva, do cacho que trouxe em meu colo. Estamos perdidos. Tenho vontade de chorar. O carro não tem muito combustível. Céus! E como uma miragem confundida com o cenário da colina, balões coloridos aparecem e nos guiam à direção certa. A festa. No outro dia, impossível era mexer os olhos chumbados... Mas realmente, meu amado, apesar dos pesares, eu ainda tenho trinta e um e muita coisa para viver. PS.: Envio algumas imagens que fiz, louca, desse encontro na caverna. Até breve. Amor, sua Diana. 

 

 

março, 2008

 

 
 
 
 
Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro-RJ, 1976). Cursou as Faculdades de Filosofia (UFRJ) e Comunicação (FACHA). Além de escritor e poeta, é artista plástico. Autor do livro-blogue Vórtice famigerado.
 
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