Rodrigo Leão - Beatriz, você sabe que o espaço para a música é bem maior que o da poesia. A cantora tem mais projeção do que a poeta? Qual o por quê disso? Isso importa para a cantora? E para a poeta? Como vê esta dicotomia?

 

Beatriz Azevedo - Depende da música que se faz. No caso da música de criação, de invenção, o espaço de divulgação é quase o mesmo da poesia. Eu não me divido: a poeta escreve, fala, canta, atua, compõe, vive.

 

 

RL - Existe uma velha questão que não é tão velha. Trata-se de letra de música x poesia. Como encara a questão? Letra de música é poesia?

 

 

BA - Antes do estabelecimento da palavra escrita, a poesia já existia e circulava oralmente, musicalmente. Existe toda a linhagem que vai dos aedos gregos, passa pelos trovadores medievais, chega aos repentistas nordestinos, aos "cantautores", aos poetas e cantores. Por que separar, exilar, fragmentar aquilo que na espécie humana nasceu integrado? Basta ler um pouco da Teogonia de Hesíodo para acabar com esta bobagem elitista e sectária de querer hierarquizar poesia e letra de música.

 

 

RL - Conversando com o Tavinho Paes, ele me disse que o livro mais vendido na França, atualmente, é um livro de poesia. O que é necessário para valorizar mais a poesia no Brasil?

 

BA - Uma complexa rede de ações que inclui educação, alfabetização, reformulação total do conteúdo e modelo de ensino nas escolas e universidades, criação de bibliotecas, programas de rádio, TV e internet com poetas, revisão da legislação com incentivo para a criação e ampliação drástica da divulgação de arte ao invés de lixo e banalidades, enfim: uma revolução cultural!

 

 

RL - Seu novo CD foi lançado pela gravadora Biscoito Fino. Como foi esse trabalho?

 

BA - O CD Alegria é o meu melhor trabalho até agora.  São composições originais, tocadas pelos melhores músicos brasileiros como Bocato, Cristóvão Bastos, Jorge Hélder e por talentos da cena de jazz de Nova York como Anat Cohen, Jamie e Michael Leonhart. Fora isso eu ainda tive o luxo de contar com a amizade e participação especial de Tom Zé. Outro amigo e parceiro que canta comigo no CD é o Vinicius Cantuária, que mora há 20 anos em NY. 

 

Em meio à crise total do CD, à pirataria e aos downloads, eu resolvi trabalhar muito para realizar um CD essencial, que vai ficar, e que precisa sim comprar, não basta copiar em mp3 e ouvir no fone de ouvido.  Porque senão o cara vai perder o livro que vem junto com CD, com o projeto gráfico do Gringo Cardia, vai perder o video do making of das gravações, vai perder todas as letras que compõem o trabalho, poemas meus, de Oswald de Andrade, de Raul Bopp, citação de poema da Hilda Hilst, etc.

 

Fora todo o tempo de criação, de estudo, de morar vários anos fora do Brasil e realizar grande intercâmbio multicultural, de viver aqui no Brasil e absorver toda a riqueza da nossa música e poesia, depois disso eu ganhei um prêmio da Petrobras e pude me dedicar um ano inteiro à realização do CD. A Biscoito Fino também entrou na parceria, então pude ter tempo, espaço e condições especiais para realizar esse projeto artístico. Por tudo isso, convido os amantes da poesia a entrar no site da Biscoito Fino e comprar o CD.

 

 

RL - Você utiliza de diversas mídias para mostrar o seu talento: seja ele literário ou musical. Qual a importância da internet para a divulgação do seu trabalho?

 

BA - A internet agilizou muito e multiplicou as possibilidades de divulgação. Hoje dá para ler / ver / ouvir poesia e música em qualquer lugar, a qualquer hora. Meu trabalho, por exemplo, pode ser visto e ouvido no Youtube, no My Space e no meu site oficial.

 

 

RL - O que deve ter um poema ou uma música para ser considerada de sua autoria? Qual a marca que quer deixar no ouvinte/leitor? Qual é a sua marca? É a do Zorro, ou melhor, da Zorra?

 

BA - Poesia Viva.

 

 

RL - As questões literárias e as questões musicais pertencem à mesma área: a das artes. O que difere uma da outra? Como anda a cena poética e a cena musical? O que tem lhe agradado ler e ouvir?

 

BA - Eu procuro criar exatamente nesta intersecção entre as artes, buscando mais o amálgama, o que une; do que aquilo que separa.  Eu quero cruzar as fronteiras, sem passaporte. Por exemplo, para mim poesia é som, é ritmo, pulsação. Não vejo e não pratico a poesia como uma linguagem apenas do intelecto, do mental. Poesia é corpo para mim, como música e teatro, poesia é imagem, como cinema. Agora, é claro, na prática, você pode escrever poesia se tem um lápis e papel, ou computador, ou spray e um muro. Já para atuar, cantar, tocar instrumentos, você precisa estudar essas linguagens, desenvolver técnicas, preparar seu corpo, sua voz, seus dedos, todos os músculos, incluindo o coração e a psique, o que pode levar décadas e provavelmente a sua vida inteira. Tem uma expressão que diz que o ator é o atleta do coração. Neste sentido, de atleta, não dá para você estar sentado com a bunda na cadeira num dia, e no outro saltar 30 metros com vara nas Olimpíadas. Você vai dar um espetáculo deprimente! Da mesma forma, é patético ver alguns escritores com "complexo de Cazuza" que acham que vai "colar" subir num palco e sair "atuando" e "cantando" seus poemas de uma hora para outra. Eu já vi muitos canastrões assim em cena, ganhando dinheiro, sem o menor preparo ou talento, utilizando-se apenas das suas máfias de contatos. O palco exige talento, talvez até maior do que a escrita. Eu pratico e estudo artes cênicas desde a minha adolescência, paralelamente à poesia e à música. Na Unicamp me formei em teatro, depois fui estudar em Barcelona, e depois estudei música em Nova York.  São duas décadas de dedicação integral às artes, e mesmo assim, eu sei que não sei de nada. 

 

 

RL - Quem é o escritor brasileiro? Como vive? Quais suas aspirações? Quem é o músico brasileiro?

 

BA - Sou eu, é você, e provavelmente quem vai ler esta entrevista, porque vivemos num gueto. Vivemos delirando e ralando, ralando e delirando. O músico brasileiro idem, só que ainda mais: precisa comprar instrumentos caros, pagar impostos de importação, etc...  Escritor brasileiro, basicamente, é aquele que não nasceu na Suíça; músico brasileiro, via de regra, é aquele que não nasceu no Nepal!!!

 

 

RL - Qual o espaço destinado à invenção na sua poesia?

 

BA - Total.

 

 

RL - Pode-se dizer que o Brasil é uma grande potência na música e um país de quarto mundo na literatura?

 

BA - Guimarães Rosa, 4º mundo? Hilda Hilst, 4º mundo? Grande potência é Ivete Sangalo e Bruno & Marrone, é isso?!?!?

 

 

RL - Rótulos são chatos, mas necessários? Você faz MPB ou é adepta da denominação World Music?

 

BA - Eu faço música antropofágica brasileira.  Ou "b.u.m", brazilian universal music.

 

 

RL - A busca pela poesia no seu trabalho é uma constante. Ela traz algo de ruim para você ou são só flores?

 

BA - Poesia é vital. Flores e espinhos.

 

 

RL - Você considera que ser musicista pode atrapalhar ou complementar à relação com a literatura?

 

BA - Pode complementar, a música apura o sentido da audição, intensifica a percepção do ritmo e da fluência, elementos essenciais à literatura.

 

 

RL - Com quantas metáforas se faz um poema?

 

BA - Um poema se desfaz metamorfose afora fogo queimando por dentro: fósforo.

 

 

RL - Tem algum mote? Fale sobre ele.

 

BA - Amor, humor.

 

 

RL - Qual o papel do artista na sociedade?

 

BA - Papel crepom, papel higiênico, papel moeda, papel ofício, papel principal, papel coadjuvante, papel jornal, papier mache, papel colorido, papel de embrulhar o pão, papel picado, papel rasgado, papel almaço, papel pautado, papel reciclado: árvore.

 

 
julho, 2008
 
 
 
 
 
 

Beatriz Azevedo é poeta, cantora e compositora. Graduada em Artes Cênicas pela Unicamp, fez especialização em dramaturgia na Sala Beckett (Barcelona, Espanha), e em música, no Mannes College of Music e no Jazz and Contemporary Music Program de Nova York. Recebeu a Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura. Apresentou-se em diversos festivais Internacionais: Dunya Festival (Rotterdam, Holanda), Copa da Cultura (Berlim, Alemanha), "Premiere Brazil!" MoMA (Museum of Modern Art), Verizon Music Festival (Nova York, EUA), Art-Anthropohagie-Aujourd'hui (Paris, França), Flip (Festa Literária Internacional de Parati), e outros. A Editora Iluminuras publicou seus livros Idade da Pedra e Peripatético. A Natasha Records lançou seu primeiro CD, com participação especial de Adriana Calcanhotto e Zé Celso Martinez Correa. Seu novo CD, Alegria, lançamento da gravadora Biscoito Fino, conta com as participações especiais de Tom Zé e Vinicius Cantuária.

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái - Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.