Rodrigo Leão - Você se considera um poeta de invenção?

 

Márcio-André - Não. Poeta de invenção é aquele que inventa — e, geralmente, moda. Eu não posso inventar nada. A mim interessa apenas captar o peso e o sonhar das coisas, largadas em instâncias pré-coisas, fora do arrematado das instituições. E para isso me estipulo estado de antena em freqüência aberta. Não tenho culpa se o resultado desta "captura", permeado por parâmetros que são misteriosos até para mim, não possa ser decodificado pelas tabelinhas classificatórias, seja da crítica, seja da para-crítica (aquela que ataca a crítica "oficial", mas vive criando paradigmas). Aliás, como qualquer terminologia, "poeta de invenção" não diz nada de real sobre a poesia ela mesma. Criada por Pound e popularizada através dos irmãos Campos, ela acabou por fundar mais uma ditadura em prol do sistema das canonizações, bem ao contrário do que desejava o poeta americano. Quando ele formulou esses conceitos (inventores, mestres, diluidores, etc) sua preocupação era afastar o fantasma da empedernida tradição literária inglesa, propondo uma dinâmica de movimentação baseada na criação constante de "paideumas", nos quais seriam incluídas as novas gerações. Para isso, amparou-se na máxima do make it new, que é um fragmento de sua tradução para o verso de Confúcio: 新日日新 (na integra: "As the sun makes it new/ day by day make it new/ yet again make it new"). Em conversa com o amigo e mestre Manuel Antônio de Castro, concluímos que essa não passava de uma tradução relativamente tendenciosa, sobretudo por conta do sentido dicionarizado do ideograma xin () como "novo" ou "renovar". Uma interpretação por demais modernista dos dizeres de Confúcio, evocando certo processo de superação, próprio da ciência ocidental e em nada próximo do confucionismo. Segundo a edição de 1965 do Chinese Characters, de Leon Wieger, a etimologia da palavra remete a reunião de três ideogramas simples ( "machado", "árvore", e "ereto", "de pé", por extensão "começo"), sugerindo uma árvore que se ergue após o corte, sentido bem diverso ao que habitualmente compreendemos por "novo" — pois não há um aniquilamento ideológico do "velho", mas o pleno vigor de emersão do que se ausenta. O poema, portanto, demora-se na leve imagem do "nascer do sol" (新日), cujo sentido de reatualização enquanto ritualização se confirmaria com a repetição invertida da mesma frase (日新): "no sol que nasce". A diferença desta para a versão do Pound pode parecer sutil, mas muito significativa: o sol nascente oculta (ou revela), naquele instante, a possibilidade e ação imutável de nascer sempre — enquanto no make it new, o foco está na renovação, como se esta desse conta de todo o processo. Assim, ao basear sua esteira classificatória nessa constância das superações, Pound acabava por deter-se no aspecto meramente formal das obras, tirando delas a sua responsabilidade e jogando-a num suposto processo de superação estética. Ainda que tivesse boa intenção, vemos mais uma vez o emparedamento da crítica, dessa vez baseada na secção de vala para delimitação dos inovadores e não-inovadores. Ele esquecia também a regra básica de que toda classificação por si só é burra, um atalho para as conclusões rápidas, e uma desculpa para não se pensar a obra por dentro dela mesma. O termo "invenção" — para o bem ou para o mal —, assim como o termo "experimentalismo", serve para, em poucas palavras, jogar num mesmo saco qualquer poética um pouco desviante no que tange as regras estabelecidas, sem precisar de fato compreendê-la. Acusar ou assumir-se como poeta de invenção é ser ingênuo o suficiente para compactuar com as instituições e a burocratização da literatura. As instituições resistem como amarras do pensamento e do corpo — e o que quero para minha escrita é justamente a libertação de todos os sentidos.

 

 

RL - Como foi recitar poemas em Chernobyl?

 

M-A - A Zona de Exclusão — região evacuada após o acidente — poderia muito bem chamar-se Zona de Inexistência, tamanha é a nossa sensação de, dentro dela, deixar de existir. E isso é muito estranho. Basta imaginar como deve ser para o governo da Ucrânia administrar um anti-lugar (ocupa pelo menos 1/6 do território do país) que não produzirá absolutamente nada por milhares de anos. A solidão assombra a ponto de se ficar tomado por um desejo inexplicável de viver ali, no meio daquela cidade fantasma. É como se os pensamentos também se contaminassem e você começa a se perguntar qual deus bizarro colocou aqueles edifícios ali.

 

Um dos meus interesses em ir a Chernobyl, era justamente observar como a poesia se comporta sob tais níveis de radiação. E ao ler os poemas no meio daquela praça monumental, observei meu idioma, alheio a qualquer história de guerra fria, condensar no estrôncio e resvalar pesado nas arestas daquele mausoléu comunista. O poema parecia ter outra densidade e brilhava de césio ao ser pronunciado — o poema que acorda entre antenas e me faz ver os outros que me habitam. E aí compreendi que não há, em instância alguma, legítima separação entre sonho e realidade — mundo e palavra não são senão a mesma coisa. Esse é o legado de Chernobyl, o legado do fim e do princípio do mundo — fim e princípio partem da mesma energia —, ali onde se guarda a fonte da matéria dos pensamentos, paradeiro último dos sonhos perdidos antes do despertar.

 

 

RL - O que é mais difícil: ser editor ou escritor?

 

M-A - São dificuldades distintas — e por vezes antagônicas. Ser escritor é investimento a longo prazo, caminho por vezes declinado à renúncia e ao isolamento, ao passo que o ofício de editor te joga no olho do furacão. Se a responsabilidade do editor é imediata — demanda rapidez nas decisões e obriga a ser prático com a coisa menos prática do mundo, que é a literatura —, a do escritor, está justamente em exumar qualquer praticidade e exsudar ao limite da antiprática da escrita. O mais difícil, na verdade, é a conciliação harmoniosa entre ambos. Em certa medida até ajuda, pois, na escrita, é possível ter uma dimensão maior da coisa quando for editada, e ao editor possibilita uma ética com os textos que talvez ignorasse, caso não escrevesse. Mas na maioria dos casos, leva a conflitos sérios, beirando à incompatibilidade. Por exemplo, como isolar-se para concluir um livro, se a todo instante é preciso ler textos alheios e resolver "pra ontem" questões práticas da revista e da editora, que vão da revisão de uma tradução à aprovação de uma capa? Ou pior, como desligar-se do universo do seu texto e entrar na rotina da editora? As angústias também são diferentes. Um editor angustia-se com algum evento, com os prazos, com orçamento. A exigência de comprometimento com a "máquina" é enorme e por vezes frustrante para quem não tem muito sangue frio, como eu. O drama do escritor reside na necessidade da criação de possibilidades outras de dinâmica do mundo, fundamentando novos éthos, novos caminhos, novos questionamentos. Apesar de poder isolar-se de tudo, precisa, ainda que distante, estar atento para não deixar o mundo escapar-lhe das mãos. E não só isso, precisa retribuir-lhe à altura — uma responsabilidade colossal. Nesse sentido, o trabalho de editor pode ser até mais fácil, mas te tira todo o tempo para ser escritor e se eu pudesse escolher, claro, seria somente escritor. Apesar do prazer enorme que é publicar um bom texto de algum autor — e esse é talvez o único prazer que tem o editor —, para mim, nada se compara a dedicar corpo e pensamento à consumação de uma obra criada com as próprias mãos.

 

 

RL - Como vê a influência da internet na literatura atual?

 

M-A - A internet não pode ser mais ignorada nos grandes centros. Não é mais uma ferramenta opcional, mas um substrato básico para a concepção da escrita e do escritor. Sua presença tem possibilitado uma transformação irradiadora a todas as instâncias, e talvez esteja levando a uma mudança tão radical na veiculação do conhecimento, quanto foi a da invenção da imprensa — é importante frisar, entretanto, que isso não representa nenhum tipo de vantagem ou desvantagem, apenas a mudança de parâmetros. Mas acho que a maior influência não tem sido propriamente em relação à escrita dos escritores, apesar de algumas experiências tímidas e sim, à circulação do material produzido e do acesso aos autores. Hoje em dia é muito mais fácil um jovem autor ser conhecido que há alguns anos atrás. É muito mais fácil fazer circular um livro, podendo-se, inclusive, disponibilizar sua leitura online. E isso é algo irreversível — pelo menos até o degelo. Mas é ainda o princípio. Uma mudança mais profunda, que alcance a escrita, está para surgir, mais cedo ou mais tarde. Os códices aguardaram algum tempo até aparecer um Mallarmé que utilizasse a própria tecnologia do livro como dimensão de sua obra.

 

 

RL - A poesia necessita da metáfora? Com quantas metáforas se faz um poema?

 

M-A - Essa não é uma questão simples. Existem muitas formas de se compreender o que é metáfora e seria preciso no mínimo dois tomos de mil páginas para discuti-la. Um deles seria dedicado apenas ao levantamento das interpretações no decorrer da história, de Aristóteles a Borges. No que gosto de compreender como metáfora, prefiro mantê-la distante da minha poesia. Isso porque meu interesse está justamente em achar uma alternativa ao caminho trilhado pela tradição, buscando nos rituais e nas incorporações, o que abstraímos ao corpo. E a metáfora seria justamente isso: a exclusão do corpo do espaço do poético. Se a metáfora é elemento viciado e viciante da tradição, a imagem tem a força e frescor para dizer a coisa pela primeira vez, ainda uma vez, renomeando-a e levando-a ao patamar outro de estado de coisa. Estado bruto do pensamento, a imagem seria um pensar por dentro da coisa até chegar ao seu não e tornar-se, em sua negatividade, a coisa, ainda mesma e outra. Redizer a coisa, por exemplo, é possibilitar ao mictório ser escultura, alforriando-o da função única para a qual foi determinado. Já a metáfora parece perder-se em tentativa burlesca de levar a coisa para universo alheio a ela mesma. Impregnada na e da língua da comunicação, em última instância, tende a anular as possibilidades em aberto da coisa — e subjugada a uma subjetividade, a coisa não tem outra alternativa a não ser vigorar como instrumento de quem escreve, permanecendo presa em certa verdade conceitual e caindo no moralismo ideológico. É aí, fechada em conceito, que a coisa deixa de ser uma possibilidade em aberto, permitindo ser interpretada somente a partir deste conceito. É nesse processo que a poesia corre o risco de tornar-se máquina de metaforizar, fundando os "clichês" nos quais a tradição ocidental se sustenta. Com isso não quero dizer que a metáfora deva ser combatida (aliás, alguns diriam que isso que chamo de imagem é na verdade a metáfora de qualidade. Que seja! Gosto apenas de distinguir), mas somente apontar uma escala de compreensão das conseqüências que ela conceitualmente permite ou permitiu, em contraste ao fértil terreno da imagem que, anterior mesmo à metáfora, continua a vigorar com a força dos gritos primais. Por exemplo, podemos pegar este verso de Roberto Juarroz: "Sólo en un templo totalmente vacío, puede habitar el espacio de un templo". Essa imagem simples e rude, não precisa de intermediários, evoca por ela mesma uma cosmogonia — uma origem no ato da originação. A imagem não possibilita leituras espistemológicas (qualquer epistemologia seria já um esgotamento da imagem), ela é sempre renovadora, podendo ser relida sob o foco de uma nova perspectiva e cada perspectiva pode fundar novas imagens. Justamente porque recusa ser conceitualizada. Ao trabalhar com imagens, meu desejo é, portanto, ritualizar o poema no papel e fazê-lo desfolhar quando posto contra a luz.

 

 

RL -  A poesia brasileira está dividida em feudos? Você poderia fazer uma panorâmica do que está sendo feito hoje em dia, no Brasil?

 

M-A - Gosto muito dessa palavra — feudo — para descrever o comportamento de alguns grupos — não todos — formados em torno da poesia atual. E essa correlação é tão verdadeira quanto a sensação que nos leva a correlacioná-los: gupos pequenos, corporativistas, belicosos e fechados em si. Mas, antes de culparmos cada um deles, é importante perceber que, como na alta Idade Média, os feudos se formaram justamente para se proteger da "barbárie" cultural dominante — um problema maior que cada um deles. Isso, claro, não os exclui da responsabilidade (não esqueçamos que em primeira instância os feudos se protegiam um dos outros): o poeta não pode se dar ao luxo de ser ingênuo e se deixar levar pelos valores mais rasos, caso contrário, sua competência como poeta estará em risco. Veja bem, poeta não é somente aquele que faz versos tecnicamente corretos e com temas bacanas, mas aquele que, nesses versos, transpire toda insatisfação e profundeza éticas que por si só já revele sua condição e risco humanos. Todo poeta deve ser, portanto, um político, não o político pequeno, das politicagens (senão, caímos na literatura engajada), mas o da política verdadeira e essencial, aquela anterior aos palanques e partidarismos. Mas essa atitude tem sido rara entre os artistas e intelectuais e o que vemos é a atestação arbitrária e irresponsável de obras vazias e sem importância alguma, alimentando ainda mais esse estado de "barbárie cultural". Mas não é só isso. O poeta precisa compreender que a formação desses feudos não é algo tão ingênuo assim e que possui uma gravidade muito maior do que se costuma imaginar. Não se trata de mera questão de oportunismo ou adequação ao "jogo", mas de um pensamento que está intimamente ligado à configuração do Brasil corrupto, oligárquico e elitista. Eticamente, não há diferença entre a política mesquinha de reserva dos meios, utilizando influência nos canais públicos e privados, praticada por intelectuais atrelados às instituições e cadernos culturais, e o jogo sujo dos políticos e banqueiros que por meio de tráfico de influência e outras práticas ilegais, vêm fazendo a manutenção de seus interesses há gerações.

 

Eu não acho necessário fazer essa panorâmica que você me pediu — todo mundo tem noção de quais são e como se comportam esses feudos, além do fato de ser mais construtivo atentar para aqueles que resistem fora deles ou para os grupos íntegros e que buscam sempre o diálogo. Nem podemos, também, confundi-los com as vertentes estéticas atuais. Estes feudos estão organizados segundo critérios totalmente externos ao texto, normalmente focados nas dinâmicas de articulação, onde o grupo mesmo se concebe como ferramenta de autopromoção. E, claro, a maior concentração está na região sudeste, sobretudo Rio e São Paulo, que ficam se debatendo pela soberania das bananas. Pois no fim é isso que disputam: bananas. Os EUA, apesar de seu imperialismo alucinado, conseguiu desenvolver centros comercias e culturais em par de igualdade em todos os estados, ainda que Nova York tenha extrapolado todos eles. No Brasil, as cidades foram sendo "aniquiladas" conforme perderam seus privilégios: Salvador > Ouro Preto > Rio de Janeiro > São Paulo. Esse panorama geopolítico da centralização pela exclusão reflete-se na configuração também dos grupos literários e artísticos. São os macacos de 2001 lutando pela poça d'água barrenta. Não é de se admirar que a divulgação da literatura brasileira seja quase nula no resto do mundo. Nada ajuda combater um ao outro, isolando-se na ilusão da autocanonização. A literatura é mais do que isso. É preciso que os grupos se ajustem e se reúnam para acabar com o problema maior que os coloca uns contra os outros e empareda o movimento da escrita. Só teremos alguma chance quando fizermos como Maomé e juntar as tribos do deserto, fundando uma grande religião islâmica da literatura — aí talvez possamos invadir o mundo civilizado e deixar nossa marca.

 

 

RL - Como encara a tese de Harold Bloom que criou a angústia da influência como teoria?

 

M-A - Eu tenho concepções radicalmente distintas das do Sr. Bloom no que tange à relação entre história, literatura e homem. A "angústia da influência" aborda essas questões supostamente incômodas para qualquer escritor de nossa época, que são a originalidade e a busca pela canonização, mas até onde seriam essas questões verdadeiras da literatura? Há, de fato, nesta altura da história, um caminho do qual não se pode tangenciar, um caminho onde não há lugar para o escritor ingênuo, incapaz de dimensionar seu papel e mensurar onde terminam e começam suas influências e conseqüências. Por outro lado, será que a mera epistemologia literária poderá nos salvar? Será que a consciência ou não dos parâmetros, para além de fundamentar uma técnica da canonização, consolida a possibilidade de uma literatura transformadora? Ora, tais crendices já deveriam ter sido varridas desde que se colocou um fim no "positivismo histórico". Não só a angústia da influência, mas todo o pensamento do Sr. Bloom consolida-se na tentativa de retomar preceitos "superados" do pensamento ocidental, com fins de permitir a manutenção do que eu, se fosse filósofo, chamaria de "princípio ocidentalizador". Apesar de compartilhar algumas de suas "angústias" pessoais — por exemplo, a consciência de que muita coisa ruim adquiriu importância somente por sua condição marginal, a partir da crítica politicamente correta —, e compreender o seu desejo autêntico por outros parâmetros que não os do mercado, me questiono se a literatura precisa de outro parâmetro além do leitor. Ao arrematar seu pensamento com a fundação de um cânone pessoal, através de suas famosas listas, ele cai no mesmo erro de centralização e erradicação das singularidades praticados pelo ocidente desde sua fundação, onde determinadas obras, por seu caráter a um só tempo exemplar e inimitável, seriam fundamentais a todos os povos. Sua teoria aceita a história oficial como delimitador qualitativo para as obras merecedoras da "eternidade", compactuando com uma dinâmica, onde escritores fortes fundam uma série, enquanto os fracos são descartados pela história. Ora, independentemente das porcarias que passaram ao largo da permanência, maior é a quantidade de injustiças cometidas, obras descartadas por questões alheias a elas. E isso, se nos detivermos no ocidente, pois, para além dele, há toda uma história não contada, daqueles que foram e são sumariamente descartados por falta de interesse político. O próprio Bloom, herança humana dessa lógica, ao definir para a humanidade quais seriam esses gênios, ainda que inclua autores brasileiros, só pode fazê-lo por ser americano, lecionando em uma universidade americana. E somente por isso suas posições são debatidas, ainda que consideradas polêmicas. Fosse brasileiro ou angolano, não seria nem ao menos considerado — inclusive pelos próprios brasileiros.

 

O mais interessante é que, observada com mais atenção, sua proposta retorna à raiz filosófica que fundamenta a própria lógica do mercado: a metafísica das instituições — na verdade, um recorte transversal de um dado momento do processo. Quando eu disse acima que a literatura não precisa de outro parâmetro que o leitor, me referia a um leitor "inteiro", não contaminado pelo sistema de influências e canonizações, logo, um que não vá ler um livro só porque a grande maioria está lendo ou porque é o mais vendido. A lógica do mais vendido, a grosso modo, respeita a mesma lógica que concebe o gênio, pois ambos se fundamentam num princípio de pré-atestação centralizadora a partir de noções abstratas. Ainda que para o Sr. Bloom o gênio seja aquele que consiga romper a estática do processo e não se submeta às leis de seus predecessores, enquanto para o mercado, a mudança só é permitida superficialmente, no fundo, o que ele faz é trocar o úmido pelo molhado. O "escolhido para ser mais vendido" é, em outra escala, "o escolhido para ser o mais genial", ou seja, ainda que se re-introduza conceitos pela erudição, o processo de canonização permanece irreversível em prol do mercado, não dos eruditos.

 

Nesse sentido, ao também me posicionar contra o mercado, gosto de imaginar alternativas bem distantes destas retomadas conservadoras, isso porque é preciso sair da escala do mesmo e considerar um destino outro. Em 2007, quando voltei de Chernobyl, fui convidado a falar na abertura da Flap aqui no Rio, e o tema do evento naquele ano, coincidentemente, foi "Contaminações". Por conta dessa deixa do acaso, proferi uma palestra propondo a "contaminação" como princípio de indeterminação entre obra e homem. Até então, uma idéia embrionária, este conceito anticonceitualizável propunha uma estância de interação poética, onde tudo se confunde com tudo, pois tudo está na base de tudo. Não é uma proposta nova, mas muito pouco explorada pelo ocidente, pois vai contra o sentido de linearidade a qual estamos habituados — o ocidente é incapaz de pensar fora das delimitações. Delimitar é a forma mais eficaz de articulação do poder, e eu acredito na literatura como libertação, não como mais um elemento opressor.

 

Em Chernobyl eu tive essa visão de que tudo se contamina mutuamente, a todo instante. O poético nada mais é que a capacidade fundamental e anterior a todas as coisas de pensar através das coisas, e nela permanece tudo o que fazemos de forma não alienada — seja na literatura, na arquitetura, nas artes plásticas, na filosofia ou no simples ato de caminhar pelas ruas ou olhar uma paisagem. Diante disso, dicotomias rudimentares entre autores canônicos e não-canônicos, gênios e não-gênios, ou mesmo distinções entre prosa e poesia, ficção e realidade ou entre as linguagens artísticas, nem seriam mais um problema, uma vez que se anulam como mero simulacro de nossa história recente. Para além da distinção entre qualidades externas à obra, precisamos vislumbrar que toda obra é uma possibilidade em aberto — somente por isso ela pode ser adaptada ou traduzida, desdobrando-se em outras obras —, não permitindo, por si mesma, o estabelecimento de uma objetivação, logo, canonização. E foi a partir dessa noção, amparada por conceituações da física moderna, que comecei a conceber as bases de uma "educação pelos quanta". Pois, como na interação entre as partículas, a história — ou a arte, ou a realidade — desliza por vetores não-hierárquicos, que não distinguem passado e futuro, sendo assim, impossível determinar quem influencia quem, de onde para onde, de quando para quando. Nesta perspectiva, a obra deixa então de ser fruto de subjetividade do autor ou do leitor, para instaurar-se como abertura amparada pela própria inquietação contida nela. Essa "educação pelos quanta" propõe uma crítica, feita não por críticos, mas por princípios dados ao leitor pela própria obra, este a quem ela é dedicada e a quem mais interessa decidir o que será lido. É uma didática libertária que, ao contrário da tese do Sr. Bloom, não exige a intervenção de um erudito — todo leitor terá condiçoes de escolher seu próprio "paideuma" e ser inteiro com a obra.

 

 

RL - Por que insere mapas e elementos gráficos nos seus poemas?

 

M-A - Você sabe que a poesia se condensa na vértebra subjacente aos caminhos, portanto, nada mais poético que o mapa, que guarda em seu único verso, os reversos de todas as direções. Se uma carta celeste traça a topografia das estrelas — permitindo levá-las conosco —, a poesia é um resguardo da topografia das topografias. E ainda que não soubéssemos disso, onde foi definido que poesia só se faz com palavras e que palavras só são feitas de letras e que as letras não são imagens? A palavra é uma imagem de gerar imagens. Portanto, não há diferença entre mapa ou poesia — poesia é também cartografia e geologia e cosmologia. Todos estão na escala dos resguardos e das imagens.

 

 

RL - A poesia existe mesmo que não haja poema? O que a poesia perde sem o poema e vice-versa?

 

M-A - Nada existe fora da poesia, nem mesmo o nada — o que equipara a poesia ao nada. É essa qualidade de nada que permite a poesia surgir como poema, mas também como filme, como música, como grafite. Portanto, o poema como conhecemos é apenas um dos ritos da poesia — talvez aquele que, ainda hoje, e de forma mais surpreendente, manifeste sua força primitiva. Sendo rito, ele pode sim acabar sem prejuízo para a poesia, que permanece em tudo o que não é poema. E na verdade ele já desapareceu, sem que nem tivéssemos percebido, e aprendemos a gostar de outra coisa com o mesmo nome: a poesia oral não é a mesma que lemos nos livros, ainda que seja o mesmo texto. A poesia gravada numa pedra ritual não evoca os mesmo demônios que os sonetos de Camões, e os poemas dos salões têm um bruxulear de velas, que nossos poemas elétricos desconhece. Não se trata de categorias, mas de fantasmas, aparições desse nada que é a poesia. Se isto que entendemos por poema — versos escritos em livro — desaparecer, tornando-se coisa de especialista, não é preciso desespero — ela só desapareceu porque nós mesmos deixamos de dar atenção a ela, e olhamos a poesia em outras coisas à volta (tenha ou não o mesmo nome): um poema visual, um poema sonoro, um poema cinético. A poesia mesmo, essa só desaparece quando o nada deixar de ser nada.

 

 

RL - Como é editar a revista Confraria do Vento?

 

M-A - É como editar qualquer publicação. Há um método de trabalho que envolve reuniões, leitura e seleção dos textos, revisão, convite aos autores, tradução, editoração, planejamento, divulgação e uma pesquisa constante por parte dos editores — isso, num espaço de dois meses. É gratificante no final das contas. Gosto muito de me sentir responsável pela circulação de textos que talvez nunca fossem chegar a algum de nossos leitores. Envaidece-me, claro, ser considerado editor de uma revista reconhecidamente de qualidade. Além de ser também divertido, pois fazemos da prática da Confraria, uma prática lúdica do intelecto. Por outro lado, é um pouco cansativo — muito trabalho e pouco apoio, ainda que moral, acabam desgastando com o tempo. Independentemente da penetração e credibilidade que a revista tenha conseguido, é visível o desinteresse por parte da grande mídia. E não falo isso somente em relação à Confraria. O benefício que as revistas ou portais eletrônicos de qualidade como Cronópios, Verbo 21, Germina, Zunái, Verdes Trigos, Digestivo Cultural e Agulha trazem ao país está sendo bem pouco retribuído em minha opinião. A revista eletrônica tem hoje um papel decisivo na formação e manutenção de leitores de literatura, com uma flexibilidade e penetração, na prática, muito maiores que periódicos impressos, independentemente da qualidade destes. Por exemplo, uma única edição da Confraria, que é rigorosamente bimestral e gratuita, tem uma média de cento e cinqüenta mil acessos únicos, das mais diferentes partes do mundo. Suponhamos, na pior das hipóteses, que dez por cento dessa quantidade seja de leitores efetivos. Teríamos aí quinze mil leitores por edição. Enquanto as revistas impressas que mantêm uma regularidade muitas vezes incerta, tendo por vezes uma única edição por ano, não passam dos três mil exemplares, que raramente se esgotam. A própria revista Entrelivros, que era de banca e com um viés bem mercadológico, não chegava a vender dez mil exemplares. Claro que não estamos falando de quantidade ou "eficácia", nem é minha intenção desmerecer as revistas impressas, mas acho que as revistas eletrônicas não podem mais ser alvo do pensamento retrógrado de alguns segmentos, sobretudo, aquelas cujo trabalho de excelência é reconhecido por intelectuais do Brasil e do exterior.

 

 

RL - Tem algum mote que o acompanhe pela vida?

 

M-A - Há uma frase atribuída a um ancestral da Ordem de Hermes (senão a alguns dos filmes do Harry Potter) que diz o seguinte: existem dois jeitos de fazer as coisas, o certo e o fácil. Essa frase parece sustentar um sentimento que me acompanhou a vida inteira: o profundo medo da mediocridade. Sempre preferi não fazer algo a fazer de qualquer jeito. Por isso, não consigo parar de refletir, à exaustão, o meu trabalho e suas implicações. O curioso é que antes de aprender a usar a meu favor, isso me prejudicava muito, pois resultava numa autocrítica imobilizante. Eu fiquei muitos anos sem tocar violino porque, tendo parado meus estudos, não me sentia digno de empunhar o instrumento num palco. É verdade que o nível de exigência para se tocar em uma orquestra é absurdo e exige dedicação integral, mas comecei a perceber que não ficava atrás de bons violinistas populares como o Boyd Tinsley do Dave Matthews Band, Laurie Anderson ou Jorge Mautner. Foi então que comecei a tocar em minhas leituras de poesia. Hoje, acredito ter conseguido certo equilíbrio com essa meticulosidade no trabalho, mas realmente não acredito em nada feito de qualquer maneira, sem paixão. É como no poema do Fernando Pessoa: "Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes".

 

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

M-A - O papel do escritor é escrever. Escrever, entretanto, implica algumas responsabilidades e é a própria sociedade que determina quais serão elas — mas de maneira paradoxal. Se tais responsabilidades muitas vezes são ignoradas por quem escreve é porque, em certa medida, a sociedade na qual vivemos não preza pelas responsabilidades, apenas pelos benefícios — da mesma forma, a escrita passa a ser um benefício isento de qualquer retribuição. Por outro lado, não existe, sabemos, realidade fora da poesia. Então, é a própria realidade que, pela "ausência" das responsabilidades inerentes ao sentido poético do homem, exige o seu cumprimento. É, portanto, papel do escritor autêntico estagiar nessa complexidade onde, por um lado, o real se mostra irresponsável, e por outro se revela exigente pelas próprias carências que apresenta. Pois, ainda que a obra de arte aconteça no espaço da celebração, é importante não torná-la uma fuga dos problemas sociais, ou um alívio das dores do mundo, como tem acontecido em nossos dias. A celebração real acontece à medida que o homem corresponde aos apelos verdadeiros do mundo, estando incluído nesses apelos, os desafios a serem "superados". E é na e pela escrita que eles devem ser "combatidos". Não é uma simples questão de ser consciente ou ter boa vontade apenas. Quando necessário, é preciso ser impaciente e irritado para apontar, gritando e pulando, onde estamos falhando. Marcelino Freire diz que escreve para se vingar. Este ensinamento, o de que toda escrita é uma vingança, deveria ser uma prática constante daqueles que assumem o ofício de escritor. Vingar-se por não poder ser outra coisa a não ser aquele que se vinga. Mas há escritores celebrando sem motivo, felizes somente porque escrevem. Mesmo que saber escrever deva ser alegria em um país onde trinta e três milhões são analfabetos, um terço vive na miséria e outros tantos morrem em meio à violência, devemos nos perguntar para quê ou quem escrevemos. A educação vai de mal a pior e os níveis de estupidez social e política são assustadores, e apesar disso qual a maior mobilização literária do país? Ir à Flip para celebrar e celebrizar-se em meio as grandes editoras. Isso é um tanto preocupante e para mim evidencia alguma doença cultural que já nos acostumamos a ignorar. Escrever não adianta muito se não vier acompanhado de uma reflexão profunda.

 
 
 
julho, 2008
 
 
 
 
 
 

Márcio-André é tradutor, professor e co-editor da revista literária Confraria do Vento. Autor dos livros Movimento Perpétuo, Chialteras e Intradoxos. Coordenador do projeto Arranjos para Assobio, de texturas poética e realidades experimentais. Mais aqui.

 

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Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.