A sombra da árvore virou o sorriso na cara suja do menino. O suspiro escorregou pro ar quente e foi abafar com as nuvens mínimas de terra vermelha que o calcanhar descalço soltava no passo. Olhou dos lados antes de deitar o cabo de vassoura no meio fio, com algumas aves penduradas. Tinha tanto ciciar no silêncio da rua, que Jonas, de cócoras, tampou os ouvidos com as pontas dos indicadores. Nunca gostou que lhe cochichassem. Aquilo parecia cochicho de irmão mais novo que ainda não sabe falar. Não queria ali o cansaço de irmãos mais novos. Mal podia com o seu próprio, de corpo pequeno e abundante de suor marrom. A água do seu corpo parecia a única possível no desalento do sol daquela tarde, na avareza das desembocaduras secas e geométricas das esquinas e quarteirões por onde Jonas expiava alguma falta descabida. A sensação avermelhada que o corpo da mulher fez nas pálpebras fechadas de Jonas antecedeu a voz rachada:

Quanto é a galinha, ô Jonas menino!?

Continua como di sempre: cinco cruzeiro a pelada e dois c'as pena.

Hunf!

Jonas levantou batendo as mãos nas coxas pra livrar da terra grudada, e de cabeça ainda baixa resmungou antecipando a reclamação da mulher pelo preço da galinha.

E o pombo?

Tudo di cinco.

Os com pena também?

É.

Pago dois.

Vendo assim, não. Sabe, por dois dexo o vizinho brinca c’os pombo vivo.

E brinca como?

Gostou de ouvir a pergunta. Antes de começar a contar, Jonas fazia sua melhor cara de menino franzino e bobo. Diminuía nos ombros o que lhe aumentava na garganta de voz doce:

Dexo na mão dele o bicho com uma das perna amarrada num brabante cumprido e si diverte lá do modo dele. Meio qui nem pipa, mais é viva. É pombo, né? Finge que dexa a coisinha vuá e puxa duma veiz pra baxo e bichinho se estatela. Só dexo as doentinha. E ele paga dois cruzero por uma hora. A veiz num vive dipois da brincadeira, o pombo.

É muleque ruim!

Jonas riu, e Jonas rindo trocava a cara e era velho de malícia:

Num é muleque não! É di grande já. Tem criança e tudo. 

A mulher pagou os cinco cruzeiros pela galinha depenada e foi com ela balançando ao lado do corpo, descendo a rua de cenho fechado, envergando um vestido desbotado e uma tristeza recurva. Jonas menino ficou ali no calor da rua vazia querendo descansar. Só não sabia que era mais das amarguras do que da caminhada diária da venda das aves que criava. Via lá no fundo dos olhos a camisa de brancura que o pai usava quando ia ficar fora por muito tempo. No fundo dos olhos fechados, a camisa branca do pai luzia de luz emprestada, porque o pai era fosco. Queria saber de onde vinha a luz que o pai refletia. Achava mesmo que ele tinha pele esverdeada. E tinha raiva porque esse pai voltava e o expulsava do lugar que era dele. Mas um dia ele ia ter o tamanho de homem e ia ser forte. Nunca mais ia ser expulso de seu lugar, esse que era tão difícil e lutado. Levantou o cabo de vassoura ainda pensando essas coisas. Ajeitou no ombro aquele cabo com os animais mortos divididos mais ou menos na metade pra cada lado, pro equilíbrio do caminhar. Com a tarde chegando ao meio ia ter que diminuir o preço pra vender o mais que pudesse. E tinha que comprar algum feijão, algum farelo, uma polenta antes de voltar. Sabia que os três irmãos menores iriam rodear seu corpo terroso dos caminhos da cidade, assim que entrasse pelo portão. Iriam gritar e pedir e brigar barrando o passo de Jonas. Chegava já ao fim do bairro e o horizonte se alongava na descida que ia dar nos primeiros sítios. Duas mulheres lhe compraram mais três frangos todos depenados, mas por dois cruzeiros. Entre elas, consideravam sobre as galinhas, o que fez Jonas pensar nesses bichos. Disseram que eram bichos de instinto besta. Instinto era palavra que não sabia, e como era bonita podia ser besta. Gostava de ver a crueldade boba das galinhas quando brigavam. A mãe ficava brava por ele não apartar as brigas e rir. Isso era má influência pros irmãos mais novos. Coisa de desalmado. Mas Jonas não apartava logo no começo. Deixava que brigassem violento como brigam. Gostava quando uma delas bicava a cloaca da outra até lhe tirar as tripas pra fora. Aí é que ria de doer. A galinha bicada corria em desespero e gritos com as tripas saindo enquanto a outra a perseguia, comendo a carne que escorria quente. Outras se juntavam pra comer também. E era o melhor da festa. E era justo quando tinha que ir apartar pra não perder mais nenhuma. Acalmar os ânimos da criação. Era bom o seu entendimento com a criação. Já tinha dormido lá com os bichos numa das vezes em que o pai voltou. Voltou no meio da madrugada e expulsou Jonas da cama.

Aquele é o meu lugar, gritava na cara do filho.

E no outro dia disse pra mulher que da próxima vez que saísse, levaria o moleque junto porque ele já tinha idade pra certas coisas da vida. Foi quando Jonas correu pros fundos do galinheiro onde tinha um grande forno à lenha abandonado e se escondeu. Ficou lá recôndito, acalentado pelo barro rachado e há muito sem uso do forno velho, que talvez pela velhice resignada de coisa, tinha quentura de corpo vivo. Ele e restos de ninhos de passarinhos, em conluio com os pombos seus, viveram ali por três dias. Bebeu ovo cru e água parada nas plantas que a mãe aguava. Guardado no semi-circulo oco do forno, Jonas ouvia os passos da mãe no terreno, suas falas perdidas, os suspiros. Na segunda manhã ela recostou numa das paredes do forno só pra ficar ali, quieta. Jonas gostou de pensar que devia estar se preocupando com ele. Sentiu o coração da mãe através do barro, a respiração pesada. Fechou os olhos e travou o corpo doído do encolhimento. Quando saiu do esconderijo, já tinha se ido o pai, e a mãe sem palavra lhe estendeu o leite ralo e o pão. Jonas chegava em casa com a noite, duas aves que não vendeu e a cabeça cheia de pensamentos e recordações que lhe davam alguma previsão. Sabia que a briga que um dia aconteceria  ninguém iria apartar. Tinha lá seu instinto também e ia ter tamanho de homem. Ia ser grande e forte.
 
 

 

 

(imagem ©mutos a.)

 

 

 

 

 

  

 

Priscila Miraz vive em Assis, interior de São Paulo, onde cursa o mestrado da UNESP em História da América. Teve o conto "Uma casa", publicado em janeiro de 2008 pelo jornal literário de Curitiba, Rascunho. Mantém o blogue Descontínuo Reverso.