Anencéfalo

 

          Anencéfalo. Anunciou o médico depois da ultra-sonografia. Anencéfalo, precisa abortar. Informou o pré-natalista. Confirmado: anencéfalo. Corroborou o parteiro quando nasci, num Novembro qualquer. Anencéfalo! Não é o meu nome. Tiveram de me nomear para me fazer existir. Só me chamam assim. Os colegas, os outros meninos, todo mundo. Inclusive professores. Estes não falam na minha frente: dizem por trás. De mim, das portas e deles mesmos. Não afirmam nenhum absurdo, a não ser o absurdo de eu ser. Sou mesmo um anencéfalo. Não estou me queixando, apenas registrando um pensamento. O quê? Anencéfalo não pensa? Como se enganam! Não posso pensar porque não tenho cérebro? E desde quando se precisou deste sinistro miolo branco para isto? Sinistro, sim senhor. Foi ele quem concebeu as grandes catástrofes. Não estão lembrados das assaduras recentes de seis milhões na Germânia e de mais de cem mil, duma só assentada, na Nipônia? Obra dele. Penso muito mais do que muitos aprumados. Melhor do que legiões de empertigados. Até escrevo. Frases desadereçadas de adjetivos, mas impecavelmente trajadas de substantivos. Vestidas como os lírios do campo. Querem ver? Não perdem por esperar. Um acaso, como um ocaso polar me trouxe aqui. O médico encarregado de me abortar perpetrou um erro médico e acertou. Ou cometeu um acerto médico e errou... Ainda estou por descobrir. Com qual órgão eu penso? Ora, com vários. Principalmente com o fígado. Aliás, eu nem penso: ele pensa por mim. Sozinho, dá conta de mais de meio milhar de complicadíssimas tarefas para me manter vivo. Como não poderia possuir um desempenho mais simples tal como conceber estas idéias? Mas se engana quem acha ser o limite. Logo ao nascer fui um ser desenganado. Meu fígado me salvou. Adulto, contraí câncer. No máximo dois anos, disseram os médicos. Após, pó. Cacos de vida. Devida ou indevida. Concedida pelo fortuito e salva pelo contingente. Mas eu queria viver um pouco mais. Não tinha medo da morte. Meus motivos eram menos pusilânimes. Reparar erros. Reconstruir. Estar quite comigo mesmo, com a vida e com os semelhantes. Meu prazo curto não permitia. Não havia como correr em busca do tempo perdido. Nenhuma alternativa a não ser retardar o futuro. Viajar à velocidade da luz, impossível. Encontrei outra saída. Prolongar os vinte e quatro meses para duzentos e quarenta. Não! Não viverei mais vinte anos do calendário. Estava em 2004. Em 2007 não estaria nem seria mais. Nenhuma possibilidade. Só eu viverei vinte anos. Tempo suficiente para alcançar as minhas metas. Para o resto das pessoas, não haverá alteração alguma. A única dificuldade foi encontrar o que pediam. Herdei muito. Sou rico. Podia pagar qualquer preço. Mas além de dinheiro, queriam algo quase tão absurdo quanto viajar à velocidade da luz. Aceitei o desafio. Ultrapassar limites. Para o derradeiro ideal, uma idéia firme. Fixa como o Corcovado. Tinha de agir rápido. O tempo por inimigo. Quando o pai-de-santo disse do que se tratava tive um ataque de riso. Me senti curado. Pediu um simples extrato de placenta. A ducha de gelo veio rápida. Não era uma qualquer, disse. Difícil de obter. Ainda assim continuei feliz. Cuidei se tratar de alguma mulher muito rara. Uma ariana pura. Uma caucasiana legítima. Quem sabe, uma senhora em plena menopausa. Todas as circunstâncias muito difíceis. Nenhuma impossível. Apenas questão de dinheiro. A decepção ainda estava por vir. Tinha de ser de homem. Não de pai, nem de feto macho, mas de mãe-homem. Ou seja, tinha de ser placenta de homem grávido. Deixou-me acabrunhado. Decepcionado. Jamais desesperado. Consultei todos os ginecologistas das grandes cidades do mundo. O menos insensível riu na minha cara. Só restava uma saída: pesquisar. Dias inteiros nas bibliotecas das melhores faculdades do país. Estudei cada tratado; cada periódico; cada página da WEB. Da América do Norte, Da Escandinávia, do Japão, da Austrália, do planeta. Depois de três meses, desisti. Na noite daquele dia, recebi uma carta anônima. Melhor dizendo, um pedaço de papel contendo três palavras: "Procure Lee Mingwei". Intuí uma troça e atirei o bilhete à lixeira. No outro dia, reconsiderei. Resgatei o papel e procurei Lee Mingwei na Internet. Achei. Tratava-se do primeiro homem grávido da história. Mais uma vez, meu fígado me salvou. Não vou entrar em detalhes. Apenas dizer que serviu de útero para a implantação do embrião. Assim, eu próprio, ou melhor, meu fígado, produziu a placenta masculina que prolongou a minha vida. Mais vinte anos. Só meus. Só meus! Vinte Novembros sagitariando aniversários que não vão existir, mas serão. Tenho de aviar a minha missão. Não ganhei este tempo para escrever memórias. Preciso cuidar dos meus ratos. Estão com muita fome. Quinze dias sem se alimentarem. Mais terrível do que a fome é verem a comida e não poder comer. Vêem e sentem o cheiro. Não podem se aproximar. Geralmente se alimentavam à noite. Havia uma despensa repleta de víveres. Ainda existe. Está abarrotada de lacticínios. Há fileiras de queijos, engradados de manteiga. São inacessíveis. Situados a grandes alturas. Não existem chances de alcançarem. Há também porções acessíveis. Mas se tocarem serão esmagados. Ou aprisionados e mortos. Às vezes me pergunto qual circunstância infeliz determinou que estes infelizes nascessem ratos e não gente. Provavelmente, assim como eu, um mero acaso. Sofisma. Nascer gente não é garantia de não passar fome. Meus ratos são famintos, todavia livres. Há humanos tão famélicos quanto eles que não são livres. Minha resignação vai além. Algo me tranqüiliza quanto ao padecimento dos meus sôfregos roedores sofredores. Não é improvável que os países onde se passa fome, partam para uma guerra total contra os outros. Isto jamais acontecerá com os meus ratos. Sob este aspecto, são superiores. Jamais se matarão uns aos outros. Certo que às vezes brigam por um pedaço de queijo, um pouco de manteiga, outro alimento qualquer... Nunca, porém, desaparecerão, enquanto espécie, por causa da falta de comida. Preciso contar uma história que não se deu. Os simplistas cuidarão ser fácil. Toda ficção é uma história inventada, dirão. Então, o imbecil seria eu? Não é isso. A história se deu, sim. Mas não pode ser dito o que se deu. Seria, então, uma anti-história. Se tivesse de ser contada à moda antiga, teria de começar assim: "Nunca foi uma vez...". Não será. Também não será uma narrativa convencional, com começo, meio e fim. Como ensinam os modernos tratados de ensinar a contar contos. Será que se ensina ou se aprende a contar uma história? Esta será a segunda pergunta sem resposta. Quem se lembra da primeira? Terceira pergunta. Esta até poderia ser respondida. E como tal, seria uma pergunta com resposta e exemplo. Logo, uma maçada. Mas a segunda tem resposta, sim: a primeira pergunta nunca existiu. Então, esta será a primeira segunda coisa sem primeira no mundo. Vamos, então não começar a nossa anti-história. Certa vez eu contava uma anti-história semelhante a essa e um dos ouvintes me perguntou se eu estava bêbado. Como não respondi, quem foi o idiota: eu ou ele? Quarta pergunta sem resposta. (Sem contar a do ouvinte). Esta será uma história como a Terra. Solta no espaço. Sem necessidade de se apoiar em nada. Sem conteúdo, sem tema, sem trama, sem fábula, sem, personagens. Sem nada. Como uma partitura musical: simplesmente se escuta. Não há necessidade de entender. Um conto só de forma. Onde o prazer da leitura (ou da escuta) será a simples degustação das palavras, como quem sorve uma taça de vinho alsaciano. As frases serão digitadas sem nenhum pensamento pré-concebido. Sem fluxo de consciência. Sem seqüência lógica. Sem encadeamento de idéias. Salvo aquelas que surgirão do meu hepático inconsciente, enquanto escrevo. Um conto como Flaubert sonhava escrever. Não haverá estilo, nem unidade. Às vezes, nem coerência... Vou parar. Decidi não contar mais nada. Já disse: ganhei mais vinte anos de vida devida ainda não vivida, para outras finalidades. Não para escrever memórias. Tampouco para contar histórias. Sei o que pensam. Este cara é um embusteiro. Primeiro, tudo quanto ele diz não faz sentido. Segundo, tudo faria sentido se possuísse um cérebro. Um fígado não pensaria tantas coisas. Com sentido ou sem sentido. Consentidas, e não sentidas. Explico... Explico não. Explicitamente, complico. Fui um mistério doloroso que um dia se fez gozoso e se pretende glorioso. Sou um anencéfalo acéfalo sem encéfalo tentando viver, porque sobreviver, a muito custo, consegui. Serei um ser sem serventia, apenas cevando cervos - portanto, também servindo - servindo sem servidão os vermes que servirão, seu alimento.

 

 
 
 
 

O Último Dia

 

Hoje é o meu derradeiro dia. São quatro da manhã, morrerei à meia-noite. Não tenho medo, não entro em pânico, não experimento desespero. Um dia como outro qualquer. Precisamente por causa disso, sinto só curiosidade. Fatos estranhos sempre aconteceram, desde o meu nascimento. Lembro-me bem.  Quando nasci, o peso da minha alma era três vezes superior ao do corpo. Nada seria extraordinário se esses valores mais tarde se equiparassem. Aconteceu o inverso. A desproporção ponderal foi aumentando com o passar dos anos. Hoje atingiu o limite compatível com a vida. Para pessoas magras, excesso de peso é mera questão de disciplina alimentar. Não é verdade. Todavia, quando o mal é da alma, e não do corpo, a propensão é julgar, sentenciar e punir.

São cinco e um quarto. Tiro o relógio de pulso para não sentir repulsa do pulsar do tempo. Desço. O porteiro está apático. "Não me reconhece?". Confirma com três inclinações da cabeça. "Está doente?". Outros três meneios laterais: que não, que não, que não. Só isso. Abro a caixa do correio abarrotada de correspondências. Nenhum dos remetentes existe. Jogo tudo fora. Saio para caminhar. Detesto caminhadas. Faço-as para não parecer diferente. Ando pela rua quase deserta. Três homens vêm em sentido contrário. Caminham como robôs. E inclinam os ombros para um lado e para o outro. Como pingüins. O sol nasce morto. Sua mornidão está fria e a luz, escura, pois os raios se coam em nuvens carregadas de agonia. Outros sinais externos de morte não me deixam esquecer a minha. O desverde das folhagens. Um cadáver de sapo. O anúncio de uma funerária. Nada, porém, me aflige; pelo contrário, usufruo paz. Só um detalhe me aborrece: não consigo me comunicar. Encontro pessoas. Nenhuma me cumprimenta. Se as interpelo, não falam. Limitam-se a reagir como o porteiro do prédio. Quando interrogo, reagem com mímicas de lagartixas: que sim, que sim, que sim. Ou como um gato enxugando a cabeça.

A obesidade anímica me obscurece a razão. Jamais soube o que sou. Ignoro até mesmo se supunha ser. Talvez seja o que fui no intervalo de algo que não foi. Um hiato de nada entre duas coisas nenhumas. Ou então, um respiramento sem pausas. Por volta de meio-dia, sinto fome. Entro num restaurante. Afinal, alguém disposto a falar. Certamente, por causa da expectativa de vender. De lucrar. Ainda assim, me animo.  Estava enganado. O garçom chega à mesa e estende o cardápio, sem articular uma palavra. Pergunto se ali não se fala aos clientes. Que sim! "Então fala comigo?". Que não! Sempre como a lagartixa e o gato. "Por quê?". Enfim, um gesto diferente: um dar de ombros. E se retira, levando o menu.

Subitamente me vejo ao meu próprio lado. Sou duplo. Tento me comunicar comigo mesmo e também não consigo. "Quem é você?". Silêncio. "Você é eu?". Que sim! Nenhuma emoção. Como se isso já acontecesse há anos. Como se fôssemos gêmeos idênticos. "Vamos morrer hoje. Sabia?". Que sim! E não diz nada. Levanta-se e sai caminhando como todos os outros. Passos lentos. Pendulando os ombros para um lado e para o outro. Continuo sentado à mesa. Uma hora depois vem o gerente e me manda embora. Assim: sacudindo as mãos. "Estou com fome. Quero comer. Posso pagar". Que não! Retiro dinheiro do bolso. Que não! Insisto e ameaço. Enfim, escuto voz humana. Um som estranho: rascante, áspero, forçado... quase um assopro forte: "Você não é gente". Indignado, vou até a porta e aceno a dois transeuntes. "Por favor, me ajudem. O gerente deste restaurante acaba de declarar que não sou gente. Desmintam-no". Olham com indiferença. Imploro. Concordam em entrar. "Senhor, aqui estão duas testemunhas dispostas a provar que sou gente".

O gerente as interroga apenas com uma expressão inquiridora. Ambos meneiam as cabeças: Que não! E saem, imediatamente, caminhando naqueles passos de pingüins. O gerente me encara, ameaçador. Mímicas de cai fora. Saio para o meio da rua. Agora, há um vento gélido. Tremo de frio. Decido não comer, não obstante a fome. A tarde passa por mim e eu passo por ela a passear a minha alma gorda, num passeio cansado. Todos me olham com cara de tá fodido. Continuam sem falar comigo. A hora da morte se aproxima. Sigo não sentindo medo, mas me sinto roubado: levaram a minha comunhão. Tateio a verdade e toco no devaneio. Anseio por ouvir as sinfonias da convivência e só escuto os prelúdios da solidão. Quanta ironia! Tenho companhia, mas nenhum companheiro. A obsessão de comunicação não me larga.

Penso nos sonhos que não tive. Quisera ter sonhado, pois é nos sonhos onde só aparecem facetas do real. A principal vantagem deles é que são como a face oculta da Lua: só vemos o lado agradável, ou que julgamos agradável, da realidade. Contudo, existem outros proveitos. Penso no amor que nunca tive. É impossível amar sem sonhar. As demais faces do real são incompatíveis com qualquer afeição. Cuidava que amar era tão somente possuir. Ninguém possui ninguém. Parece um truísmo. E é mesmo. Mas filosófico, teórico, inconseqüente. Todos almejam ter alguém. Na prática, portanto, é menos truísmo que paradoxo. Uma contradição a mais da humana condição. Uma passeata vem vindo. Protesta o protesto de todas as passeatas de protesto: Pesadelos. Soldados do trânsito travam o tráfego. Na ruidosa rua por onde ando, sumiu o rumor arrítmico dos automóveis. O peso da alma me arrasa. Quase não estou mais suportando. Ignoro que horas são e não tenho a quem perguntar. Isto é, ninguém responderia. Lamento ter deixado o relógio. O pulsar do tempo já não importa. Apenas o desfecho.

Chegou a hora. Sei que é meia-noite ao escutar o badalar do carrilhão da catedral. Deito-me no chão para morrer. Amanhece. Desperto em outra dimensão, mas sei que não morri. Pelo contrário, me sinto aliviado de uma carga muito pesada. Chove. Abrigo-me sob um caramanchão de jardim. Um cheiro de chão enxaguado pela chuva enche-me de natureza. Então descubro que quem morreu foi a minha alma de chumbo.

 

 
(imagens ©erkh)

  

  

 

Ray Silveira é médico e escritor. Durante onze anos foi membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA, onde publicou artigos científicos. Tem também trabalhos publicados em livros e outras revistas médicas. Suas atividades na literatura convencional tiveram início com o advento da internet. O site italiano Progetto Letterario Internazionale DOMIST, traduziu e publicou alguns dos seus escritos em Inglês, Francês, Espanhol, Alemão e Italiano. É colunista do Cronópios.