Sentimento do mundo

 

a Carlos Drummond de Andrade

 

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra.

 

Não, não disseram.

 

O medo pariu muros,

mundo carcereiro

listado nos nãos da entrada.

 

Agachem os mortos.

Falam demais.

Pulam os muros.

 

E o que mais?

 

 

 

 

 

Ponteiros da hora

 

Nas aspas do tempo,

vagam as lembranças...

 

O chiclete bacana de roda

mascando os ponteiros da hora

e o canto dos corpos colantes

chegando ao riso do chão.

 

Agora

 

A-tirei o pau no ga-to-to

é mero fa-to-to

descola-do-do

Dona Chi-ca-ca

tá tão distan-te-te

quinem Jeimisbom

nem Jeimisbondi

gruda mais,

 

tchau-tchau.

 

 

 

 

 

 

Cantiga anônima

 

O que me desempenha?

 

Biografo-me nos dias

em calmaria,

nos livros suados à tinta

à revelia,

nos amigos distantes,

nos beijos do sim,

do não, da partida

nem sempre bem-vinda,

na maresia da família

a rolar cantorias

no luar do sol

nos dias de mar

a remar rima

e selvageria.

 

Homem-Lobisomem,

qual o seu nome?

 

 

 

 

 

 

Entardecer no campo

 

A jade luz traz ao seresteiro

a música dos pastos,

o mugir do horizonte calado,

a palha trançada, de cócoras, paciente,

e o olhar no além,

muito além

do buraco dos dentes.

 

 
 
 

Bem guardado

 

É só um objeto,

mas afaga o olhar

em lembrança.

 

É só um objeto,

mas brinca

de ser.

 

É só um objeto,

mas esbanja

linguagem.

 

 

[Poema premiado em primeiro lugar, por Affonso Romano de Sant'Anna,

no I Concurso de Poesia da Poemas Azuis]

 

 

 

 

 

 

Beiço da amazona

 

No caldo da língua,

cavalgo as palavras.

 

Dou pinotes e coices,

pirata de foice.

 

Lambuzo o que quero,

no manto de prata,

 

e, quando apeio, me concedo

uma deliciosa gargalhada.

 

 

 

 

 

 

Brasil braseiro

 

Cinzas de fogo zumbi,

o homem fumaça passa.

 

Esquadrilha na esquina

em além de lágrimas.

 

E pinga o vermelho

de uma cena collant:

 

moça atravessada

pelas balas do sinal.

 

 

 

 

 

 

Vírus da Lagoa

 

No circo da Lagoa há

lona de sombrinhas,

frevos todos os dias,

skates trapezistas.

 

E, na arena, o seu guidom

pedala os corpos coaxados,

bronzeia as margens do asfalto

nas buzinas da folia.

 

Na ciclovia carpe diem há

rotas de anarquia.

 

Uma gripe incurável.

 

 

 

 

 

 

Quem diria...?

 

Quem diria, de mim,

eu ser assim?

 

Submissa, gentil,

Ardil febril,

Lasciva, pueril,

a mil por hora

na estrada que corta

os dias em rostos

que nem mesmo morta

algum dia eu vi?

 

Quem diria, de mim,

ter sentido o agora

em abandono do tempo

por nada fazer?

Só sentir o papel

escorrendo na tinta

veloz que domina

o impresso em seu ser?

 

Ou ter um outro algo,

no âmago de mim

que me faz escrever

perguntas sem gim?

 

Quem diria de mim

ser tão

sertão...

 

Quem diria?

 

Diria eu isto

mesmo de mim?

 

 

 

 

 

 

A cidade

 

Ela me abraça e, em seu olhar,

molho a saudade branca de um tempo

que vestia bambolês nas cinturas das meninas.

 

E eu lhe pergunto:

Que bossa ondula, agora,

em suas pedras de montanha?

 

Ela nada diz. Me abraça, uma vez mais,

e o Drummond, vadio

sem seu papel de estrelas, me sorri...

 

 

 
 
 

O velho sobrado

 

No velho sobrado que quase jaz,

o coqueiro permanece em teimosia de varal.

 

Não dá mais coco. Alguns

o aproveitam, outros não.

 

Há um desleixo natural de roupas encardidas,

umas vidas secando e molhando outras vidas.

 

No prédio ao lado, o vizinho atira uma banana e grita:

"três mil cascas apodreceram no seu telhado;

com mais esta, três mil e uma".

 

Um morador do sobrado reclama. O outro

assobia para a menina que carrega

os livros escolares que ela não escolheu.

 

Algumas pessoas passam em frente ao sobrado.

 

A moça de batom desconta o feio visual

no sorriso polpudo de telha envelhecida.

 

A mulata envolve o filho com o braço

na despedida para mais um dia de labuta.

 

O moço que vem da rua nem a olha, preocupado

em entender a conta de luz que recebeu.

 

E o filho vê a mãe partir.

 

Nada diz.

Mas o portão range.

 

 

 

 

 

 

Roda-viva

 

E a roda escorre e pisa...

 

como se pisasse em um vagabundo

que dorme na esquina,

ladrilhado por seus trilhos sem saída.

 

E na roda morre o cão,

quando um pedaço de carne

lhe mastiga a boca vermelha.

 

Morrem o cão, o vagabundo,

morrem as lágrimas dos nãos.

 

Só a roda é viva.

 

Escorre.

Pisa.

E vai...

 

 

 

 

 

 

Cacareco

 

Era só uma cadeira.

 

Realmente, era só uma cadeira.

 

De balanço

e de palha trançada,

amolecida pelo tempo.

 

Era só uma cadeira.

 

Realmente, só.

 

Superlativa pelos ais

naquele quarto tão sintético.

 

Era só uma cadeira.

 

Era.

 

Só.

 

Mas como fazia companhia...

 

 

 

 

 

 

Boom senso

 

Censo estético?

Esotérico grupal,

dual ou o tal?

 

Coluna da esquerda,

do meio, direita,

ou zebra fatal?

 

Senso bom,

dá-me um boom

sensual!

 

 

 

 

 

 

Minha boca

 

Minha boca não morde.

 

Tem o feitiço das ondas,

faz o levatraz,

comendo bordas de cais,

onde gente dormente

e gente fecunda

são as águas de meio

no paladar de sua gruta.

 

Minha boca apita.

 

Em brumas de sais,

adormece quando sente

a vida quando cai,

o beiço para frente,

a língua sem vitrais,

onde gente avermelha

a estampa de seus ais.

 

Minha boca não morde,

nem quente nem fria.

 

Tem a linha que esvazia

o cheio de quem estampa,

colorindo um mar possível...

 

 

 

 

 

 

Rugidos do sono

 

O leão abre a boca.

Poderoso.

 

Olhos hipnóticos alucinam.

Sou a anca, sou a juba,

vou saltar.

 

Me paraliso.

 

O leão,

o ar no corpo,

não o sinto.

 

Veludo no cangote

enrosca roça

amarelo.

 

 

 

 

 

 

Cílios do dia

 

Os cílios do silêncio,

na pálpebra do dia,

vasculham tanto escuro

que nenhum grito

dor ou medo

faz pensar ferido.

 

 

(imagens ©brukselka)

 

 

 

 

 

 

Rosane Villela (Rio de Janeiro-RJ, 1953). Formada em Letras pela PUC-Rio. Publicou Navalha no verso pela 7Letras em 2000 e foi selecionada para a seção Quatro Poetas da Revista Literária Livro Aberto, Junho/Julho 2000. Em 2001, compartilhou com Fábio Rocha e Helena de Sousa Freitas o primeiro lugar no Concurso de Poesia online promovido pela Poemas Azuis, cujo único jurado foi Affonso Romano de Sant'Anna e, em 2002, participou com um poema e um conto, selecionados por João Silvério Trevisan, do Balaio de Textos do SESCSP ON LINE. Ainda em 2002, o jornalista e escritor Antonio Mariano, em sua coluna do Jornal da União, de João Pessoa, escreveu um artigo sobre a sua poesia. Em maio de 2003 foram publicados alguns poemas, como também dois contos no Correio das Artes, suplemento literário do Jornal da União, do editor Linaldo Guedes. Em 2004, proferiu palestra na Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, intitulada Poesia e Criação, a convite de Marco Lucchesi. É membro e uma das fundadoras do blogue Letra Falante, criado em 2007, de discussão de literatura infantil, do grupo do curso avançado de Ninfa Parreira, na Estação das Letras, de Suzana Vargas, onde fez também vários outros cursos. Na Casa da Leitura, cursou "O Mal na Literatura Infanto-Juvenil", com Dilma Lacerda, e na PUC, o curso de extensão intitulado A Magia da Palavra. É autora do ensaio "Bartolomeu e o Caminho do Meio", sobre o livro O olho de vidro de meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Revista Zunái, em 2008. Neste mesmo ano, sua obra infantil e juvenil Apanhando a lua... será publicada pela Editora Paulinas.