i
 
 
 

 

SEPARAÇÃO

 

Desmontar a casa

e o amor. Despregar

os sentimentos das paredes e lençóis.

Recolher as cortinas

após a tempestade

das conversas. 

O amor não resistiu

às balas, pragas, flores

e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,  

discos e remorsos.  

Esperar o infernal

juizo final do desamor. 

Vizinhos se assustam de manhã

ante os destroços junto à porta:

— pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:

               uma casa de campo,

               fotos em Veneza,  

um tempo em que sorridente

o amor aglutinava festas e jantares. 

Amou-se um certo modo de despir-se

de pentear-se.   

Amou-se um sorriso e um certo

modo de botar a mesa. Amou-se   

um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada

com suas roupas amassadas, tropas de insultos

malas desesperadas, soluços embargados.  

Faltou amor no amor?

Gastou-se o amor no amor?   

Fartou-se o amor?   

No quarto dos filhos

outra derrota à vista:   

bonecos e brinquedos pendem

numa colagem de afetos natimortos.   

O amor ruiu e tem pressa de ir embora

envergonhado.   

Erguerá  outra casa, o amor?

Escolherá objetos, morará na praia?   

Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo   

um corpo sai porta afora

com pedaços de passado na cabeça   

e um impreciso futuro.

No peito o coração pesa   

mais que uma mala de chumbo.

 

 

 

 

 

 

 

 

ARTE FINAL

 

Não basta um grande amor

                          para fazer poemas.

E o amor dos artistas, não se enganem,   

não é mais belo

                 que o amor da gente.   

 

O grande amante é aquele que silente

se aplica a escrever com o corpo   

o que seu corpo deseja e sente.

 

Uma coisa é a letra,   

e outra o ato,

 

               — quem toma uma por outra

                    confunde e mente.

 

 

 

 

 

 

AMOR VEGETAL

 

Não creio que as árvores

fiquem em pé, em solidão, durante a noite.

Elas se amam. E entre as ramagens e raízes

se entreabrem em copas

em carícias extensivas.

 

Quando amanhece,

não é o cantar de pássaros que pousa em meus ouvidos,

mas o que restou na aurora

de seus agrestes gemidos.

 
 
 
 
 

 

                      O CORPO PROCURA SUA

                   CONTRAPARTE DEFINITIVA

 

 

Não mais o encanto inesperado

— reservas diuturnamente surpresadas.

Este corpo me entrega a um encontro

mais difícil e prolongado,

um sublime em carne consumado,

sem pentencostes, ainda que crucificado

e por si mesmo salvo e restaurado.

 

Já não se compraz de fulvos predicados

embora verbo reencarnado,

nem se expõe à beira-lago.

Passou do inefável ao fato,

num transcurso inquebrantável.

Sua ceia, última e sempre repartida,

serve em delícia o que serve em

rubro e claro pão comunicado.

Uma autoceia, antropofágica

cena de auto-satisfação.

 

Já não se compraz de falas

sonoras e emergentes falos na aurora,

rompeu com o impuro, o falso,

com as falácias temporárias.

Contudo, mais belo, forte e prático

que nunca

jamais se governou tão firme

e se aceitou tão calmo,

nunca tão tranqüilo se pôs

dentro de seus poros.

 

Algo mais sutil dentro das veias

há que surpreender

num entreato. Pulsa no fôlego

um ritmo de tempo denso

vivido e condensado.

 

Tão pronto e apto,

tão refeito e exato

que não me surpreende

que um corpo assim

a si já não se baste.

Completo, em si, compete-lhe

agora completar-se além de,

transitá-lo de mim para alguém,

requer um transitivo corpo

onde atá-lo,

onde aprazê-lo,

onde alongá-lo.

 

Careço de um outro corpo

aberto e pronto,

como este fechado e denso,

um outro corpo onde parti-lo

e fecundá-lo.

 

 

 

 

 

 

INICIAÇÃO MUSICAL

 

 

1

 

Aquele espanto  

que eu, moreno brasileiro,

conheça não apenas os Concertos de Brandenburgo,

mas na adolescência, além de Mozart

cantasse Josquin du Près, De Lassus, Jannechin, Scarlatti e os

                                    [renascentistas ingleses.

Só agora entendo por que  

tanta música nas bíblias de minha infância:

— é que o demônio é ambíguo  

e pode estar no corrosivo silêncio

e no insidioso ruído. 

 

 

2  

 

Todas as manhãs

toco um concerto de flauta e clarineta

                                  para minhas plantas.

Elas já sabem, e esperam                            

                        — o seu café da manhã.

 

Minha mulher, melhor que eu,  

com a alma aberta na varanda

sabe conversá-las, sabe tangê-las,  

trocar-lhes as fraldas e o alpiste

com seus olhos em ciranda.

 

Não é de hoje

que a música cura e ensandece os reis.

Então, não foi assim que Ulisses se curou

dos dentes do javali? Não era assim  

que apaziguavam a fúria de Saul

a harpa e o canto do pastor David? 

 

        Tal a consabida  

        estética medicinal

        ou homeopatia musical 

        romântica:     

           violinos para hipocondríacos,

           contrabaixo para os nervos,     

           a histeria é com a harpa,

           a flauta refaz pulmões,     

           trombone contra surdez,

           órgão para irascíveis,     

           a trompa aos perseguidos,

           e como tônico geral     

           meu instrumento de fé

                               — o oboé.

  

 

3  

 

— Ocorreria sangue nos becos

se à noite aí tocassem Mozart  

e o fagote dos barrocos?

 

— Já se usou um adágio de Corelli  

para estancar no ar

o punho de um torturador?  

 

— Quem jamais matou alguém

numa sala de concertos,  

embora a ópera tenha  

assassinos no libreto?

 

Soassem o oboé e orquestra de Marcello  

na mesa do conselho e as tensões

se esvairiam e perdões se abraçariam,

e até flores, do acrílico ambiente, brotariam

soando a escala dos serenos violinos.

 

Ah, pureza alucinante do cego Rodrigo

— gentil-homem — dedilhando a escuridão  

enquanto o Concerto de Aranjuez

me esfacela o coração. 

 

A música expulsa da alma o câncer,

                         apazigua o mal patrão,

                         melhora o operário,

                         faz crescer as colheitas

                         e apascenta a criação.

 

Os que vão se amar um dia, já estão ouvindo acordes  

a mesma ária de Bach.

 

Os que geram filhos, nomes, obras,  

crescem com este adágio de Albinoni.

 

E até mesmo um povo escravo se livraria  

se a Nona de Beethoven

                      lhes soasse todo dia  

a ensinar que é em coro

que se constrói a alegria.

 

 

 

 

 

 

ASSOMBROS

 

Às vezes, pequenos grandes terremotos

ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

 

Fora, não se dão conta os desatentos.

 

Entre a aorta e a omoplata rolam

alquebrados sentimentos.

 

Entre as vértebras e as costelas

há vários esmagamentos.

 

Os mais íntimos

já me viram remexendo escombros.

Em mim há algo imóvel e soterrado

em permanente assombro.

 

 
 
 
 

 

QUE PAÍS É ESTE?

 

                                    para Raymundo Faoro

 

          ¿Puedo decir que nos han traicionado? No. ¿Que

          todos fueran buenos? Tampoco.  Pero alli está

          una buena voluntad, sin duda y sobretodo,  el

          ser así.

                                          César Vallejo

 

 

   1

 

     Uma coisa é um país,

     outra um ajuntamento.

 

     Uma coisa é um país,

     outra um regimento.

 

     Uma coisa é um país,

     outra o confinamento.

 

Mas já soube datas, guerras, estátuas

usei caderno "Avante"

                     — e desfilei de tênis para o ditador.

Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"

e éramos maiores em tudo

                  — discursando rios e pretensão.

 

     Uma coisa é um país,

     outra um fingimento.

 

     Uma coisa é um país,

     outra um monumento.

 

     Uma coisa é um país,

     outra o aviltamento.

 

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça

em busca da especiosa raiz? ou deveria

parar de ler jornais

                    e ler anais

como anal

         animal

               hiena patética

                             na merda nacional?

Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo

comendo o que as traças descomem

                                procurando

o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso

que nos impeliu a errar aqui?

 

     Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos

     nacionais, como qualquer santo barroco

                                           a rebuscar

     no mofo dos papiros, no bolor

     das pias batismais, no bodum das vestes reais

     a ver o que se salvou com o tempo

     e ao mesmo tempo

                     — nos trai.

 

 

   2

 

Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,

há 500 anos estupramos livros e mulheres,

há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

 

Há 500 anos dizemos:

   que o futuro a Deus pertence,

   que Deus nasceu na Bahia,

   que São Jorge é guerreiro,

   que do amanhã ninguém sabe,

   que conosco ninguém pode,

   que quem não pode sacode.

 

Há 500 anos somos pretos de alma branca,

   não somos nada violentos,

   quem espera sempre alcança

   e quem não chora não mama

   ou quem tem padrinho vivo

   não morre nunca pagão.

 

Há 500 anos propalamos:

   este é o país do futuro,

   antes tarde do que nunca,

   mais vale quem Deus ajuda

   e a Europa ainda se curva.

 

Há 500 anos

   somos raposas verdes

   colhendo uvas com os olhos,

 

   semeamos promessa e vento

   com tempestades na boca,

 

   sonhamos a paz da Suécia

   com suíças militares,

 

   vendemos siris na estrada

   e papagaios em Haia,

 

   senzalamos casas-grandes

   e sobradamos mocambos,

 

   bebemos cachaça e brahma

   joaquim silvério e derrama,

 

   a polícia nos dispersa

   e o futebol nos conclama,

 

   cantamos salve-rainhas

   e salve-se quem puder,

 

   pois Jesus Cristo nos mata

   num carnaval de mulatas.

 

Este é um país de síndicos em geral,

este é um país de cínicos em geral,

este é um país de civis e generais.

 

   Este é o país do descontínuo

   onde nada congemina,

 

   e somos índios perdidos

   na eletrônica oficina.

 

   Nada nada congemina:

                       a mão leve do político

                       com nossa dura rotina,

 

                       o salário que nos come

                       e nossa sede canina,

 

                       a esperança que emparedam

                       e a nossa fé em ruína,

 

                       nada nada congemina:

                       a placidez desses santos

                       e nossa dor peregrina,

 

                       e nesse mundo às avessas

                       — a cor da noite é obsclara

                         e a claridez vespertina.

 

 

   3

 

Sei que há outras pátrias. Mas

mato o touro nesta Espanha,

planto o lodo neste Nilo,

caço o almoço nesta Zâmbia,

me batizo neste Ganges,

vivo eterno em meu Nepal.

 

   Esta é a rua em que brinquei

   a bola de meia que chutei,

   a cabra-cega que encontrei

   o passa-anel que repassei,

   a carniça que pulei.

 

Este é o país que pude

              que me deram

                          e ao que me dei,

e é possível que por ele, imerecido,

                                    — ainda me morrerei.

 

 

   4

 

Minha geração se fez de terços e rosários:

 

                               — um terço se exilou

                               — um terço se fuzilou

                               — um terço desesperou

e nessa missa enganosa

                      — houve sangue e desamor. Por isto,

canto-o-chão mais áspero e cato-me ao nível da emoção.

 

Caí de quatro

animal

 

       sem compaixão.

 

     Uma coisa é um país,

     outra uma cicatriz.

 

     Uma coisa é um país,

     outra a abatida cerviz.

 

     Uma coisa é um país,

     outra esses duros perfis.

 

Deveria eu catar os que sobraram,

                 os que se arrependeram,

                 os que sobreviveram em suas tocas

e num seminário de erradios ratos

                            suplicar:

                                   — expliquem-me a mim

                                     e ao meu país?

 

Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um

ainda preso ao dezenove

      como um tonto guarani

      e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco

      não haverá mais país.

 

País:

     loucura de quantos generais a cavalo

     escalpelando índios nos murais,

     queimando caravelas e livros

                         — nas fogueiras e cais,

homens gordos melosos sorrisos comensais

politicando subúrbios e arando votos

e benesses nos palanques oficiais.

 

Leio, releio os exegetas.

Quanto mais leio, descreio. Insisto?

Deve ser um mal do século

— se não for um mal de vista.

 

     Já pensei: — é erro meu. Não nasci no tempo certo.

                              Em vez de um poeta crente

                              sou um profeta ateu.

                              Em vez da epopéia nobre,

                              os de meu tempo me legam

                              como tema

                                       — a farsa

                              e o amargo riso plebeu.

 

 

   5

 

Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto

e sinto muito o que falo

                        — pois morro sempre que calo.

Minha geração se fez de lições mal-aprendidas

                        — e classes despreparadas

Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.

Tínhamos a "história" ao nosso lado. Muitos

maduravam um rubro outubro

                   outros iam ardendo um torpe agosto.

Mas nem sempre ao verde abril

                             se segue a flor de maio.

Às vezes se segue o fosso

                         — e o roer do magro osso.

E o que era a revolução outrora

                          agora passa à convulsão inglória.

E enquanto ardíamos a derrota como escória

e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas

                                   sobre a aurora

o reprovado aluno aprendia

          com quantos paus se faz a derrisória estória

Convertidos em alvo e presa da real caçada

abriu-se embandeirado

         um festival de caça aos pombos

         — enquanto raiava sangüínea e fresca a madrugada.

 

Os mais afoitos e desesperados

em vez de regressarem como eu

                      sobre os covardes passos,

e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,

seguiram no horizonte uma miragem

                                 e logo da luta

                                               passaram

                                 ao luto.

 

Vi-os lubrificando suas armas

      e os vi tombados pelas ruas e grutas.

Vi-os arrebatando louros e mulheres

      e serem sepultados às ocultas.

Vi-os pisando o palco da tropical tragédia

      e por mais que os advertisse do inevitável final

      não pude lhes poupar o sangue e o ritual.

 

      Hoje

          os que sobraram vivem em escuras

          e européias alamedas, em subterrâneos

          de saudade, aspirando a um chão-de-estrelas,

          plangendo um violão com seu violado desejo

          a colher flores em suecos cemitérios.

 

Talvez

      todo o país seja apenas um ajuntamento

      e o conseqüente aviltamento

                            — e uma insolvente cicatriz.

      Mas este é o que me deram,

      e este é o que eu lamento,

      e é neste que espero

                          — livrar-me do meu tormento.

 

Meu problema, parece, é mesmo de princípio:

— do prazer e da realidade

                           — que eu pensava

com o tempo resolver

                    — mas só agrava com a idade.

 

     Há quem se ajuste

     engolindo seu fel com mel.

     Eu escrevo o desajuste

     vomitando no papel.

 

 

   6

 

Mas este é um povo bom

                       me pedem que repita

                       como um monge cenobita

                       enquanto me dão porrada

                       e me vigiam a escrita.

 

Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam

os faraós

          enquanto amassavam o barro da carne escrava.

Isso digo toda noite

                    enquanto me assaltam a casa,

isso digo

         aos montes em desalento

enquanto recolho meu sermão ao vento.

 

Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?

Desconfio muito do povo. O povo, com razão,

                              — desconfia muito de mim.

Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,

mas ele não me entende

                      — nem eu posso convertê-lo.

A menos que suba estádios, antenas, montanhas

e com três mentiras eternas

                    o seduza para além da ordem moral.

 

Quando cruzamos pelas ruas

não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.

Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família

a prevenir mal-entendidos sangrentos.

 

Daí, já vejo as manchetes:

                         — o poeta que matou o povo

                         — o povo que só/çobrou ao poeta

                         — (ou o poeta apesar do povo?)

 

— Eles não vão te perdoar

                         — me adverte o exegeta.

Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas,

                               [questionários e geladeiras,

e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse e fonte

                                                     [luminosa,

uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo

                                                 [que é coisa nossa.

Povo

    também são os falsários

                            e não apenas os operários,

povo

    também são os sifilíticos

                             não só atletas e políticos,

povo

    são as bichas, putas e artistas

                         e não só escoteiros

                         e heróis de falsas lutas,

    são as costureiras e dondocas

                         e os carcereiros

    e os que estão nos eitos e docas.

 

Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz

mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,

a escravidão

            para resgatar os ferros de seus ombros

                                                   requer

poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.

 

Um país não pode ser a soma

de censuras redondas e quilômetros

quadrados de aventura, e o povo

 

não é nada novo

               — é um ovo

                      que ora gera e degenera

                      que pode ser coisa viva

                                            — ou ave torta

depende de quem o põe

                     — ou quem o gala.

 

 

   7

 

Percebo

       que não sou um poeta brasileiro. Sequer

       um poeta mineiro. Não há fazendas, morros

       casas velhas, barroquismos nos meus versos.

 

Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia

              [militar casos de assombração e uma calma milenar,

embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes tecendo

                  [filhos nas fábricas e amassando a fé e o pão,

olho Minas com um amor distante,

como se eu, e não minha mulher

                              — fosse um poeta etíope.

 

Fácil não era apenas ao tempo das arcádias

entre cupidos e sanfoninhas,

fácil também era ao mesmo tempo dos partidos:

                          — o poeta sabia "história"

                            vivia em sua "célula",

                            o povo era seu hobby e profissão,

                            o povo era seu cristo e salvação.

 

O povo, no entanto, não é o cão

e o patrão

          — o lobo. Ambos são povo.

          E o povo sendo ambíguo é o seu próprio cão e lobo.

 

Uma coisa é o povo, outra a fome.

Se chamais povo à malta de famintos,

se chamais povo à marcha regular das armas,

se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular

 

então mais amo uma manada de búfalos em Marajó

a diferença já não há

entre as formigas que devastam minha horta

e as hordas de gafanhotos de 1948

                                  — que em carnaval de fome

                                  o próprio povo celebrou.

 

Povo

    não pode ser sempre o coletivo de fome.

Povo

    não pode ser um séquito sem nome.

Povo

    não pode ser o diminutivo de homem.

O povo, aliás,

    deve estar cansado desse nome,

embora seu instinto o leve à agressão

                                     e embora

o aumentativo de fome

                     possa ser

                              revolução.

 
 
 
 
 
 

ELES ESTÃO SE ADIANTANDO

 

 

Eles estão se adiantando, os meus amigos.

Sei que é útil a morte alheia

Para quem constrói o seu fim.

Mas eles estão indo, apressados,

Deixando filhos, obras, amores inacabados

E revoluções por terminar.

 

Não era isto o combinado.

 

Alguns se despedem heróicos,

Outros serenos. Alguns se rebelam.

O bom seria partir pleno.

 

O que faço? Ainda agora

Um apressou seu desenlace.

Sigo sem pressa. A morte

Exige trabalho, trabalho lento

Como quem nasce

 

 

 

 

 

 

ENTREGA

 

Abandonar o corpo à pessoa amada

para que faça dele o que quiser.

Não opor qualquer resistência

entregar-se natural, suavemente

 

O outro sabe as veredas

como o rio desce encostas

para seu gozo no mar.

 

Abandonar o corpo ao outro

para que invente, projete

pontes de suspiros,

liberte seus demônios e poemas

e se converta em anjo

num ruflar de penas.

 

Abandonar o corpo à sorte alheia

fundida à própria sorte,

dissolver-se no corpo alheio

como quem na vida, dissolve a morte.

 

 

 

 

 

 

REFLEXIVO

 

O que não  escrevi, calou-me

O que não  fiz, partiu-me

O que não senti, doeu-se

O que não vivi, morreu-se

O que adiei, adeus-se.

 

 

 

 

 

 

*

 

"Por não ter sido do Partido

Constato condoído

Que muitos que o foram

Continuam confundidos.

 

Por não ter sido do Partido

Vejo com assombro

Que muitos buscam fundamento

Onde só há escombro.

 

Por não ter sido do Partido

Imagino como é frustrante

Pensar ter sido amante

E ser marido-traído".

 

 

 

 

 

 

PEQUENOS ASSASSINATOS

 

 

Vegetariano

                 não dispenso chorar

sobre os legumes esquartejados

no meu prato.

 

Tomates sangram em ninha boca,

alfaces desmaiam ao molho de limão-mostarda-azeite,

cebolas soluçam sobre a pia

e ouço o grito das batatas fritas.

 

Como.

Como um selvagem, como.

Como tapando o ouvido, fechando os olhos,

distraindo na paisagem o paladar,

com a displicente volúpia

de quem mata para viver.

 

Na sobremesa

continua o verde desespero:

peras degoladas,

Figos desventrados

e eu chupando o cérebro

amarelo das mangas.

 

Isto cá fora. Pois lá dentro

sob a pele, uma intestina disputa

me alimenta: ouço o lamento

de milhões de bactérias

que o lança-chamas dos antibióticos

exaspera.

 

Por onde vou

— é luto e luta.

 

 

 

 

[fonte "light my fire", desenhada por

paloma  del  rio para a revista Neo2]

 

 

 
 
 
 

 

Affonso Romano de Sant'Anna. Um dia, dizendo seus poemas no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia (2005); ou fazendo uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda (2004); ou na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins (1996); ou na Casa de Bertold Brecht, em Berlim (1994); outro dia, no Encontro de Poetas de Língua Latina (1987), no México; ou presente num encontro de escritores latino-americanos em Israel (1986); ou participando do International Writing Program, em Iowa (1968); Affonso Romano de Sant'Anna tem reunido através de sua vida e obra, a ação à palavra. Nos anos 90, foi escolhido pela revista "Imprensa" um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião pública. Em 1973, organizou na PUC/RJ a EXPOESIA, que congregou 600 poetas desafiando a ditadura e abrindo espaço para a poesia marginal; foi assim quando em 1963, no início  de sua vida literária, tornou-se um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte. Com esse mesmo espírito de aglutinar e promover seus pares, criou, em 1991, a revista "Poesia Sempre", que divulgou nossa poesia no exterior e foi lançada tanto na Dinamarca, quanto em Paris, tanto em São Francisco quanto New York, incluindo também as principais capitais latino-americanas. Atento à inserção da poesia no cotidiano, produz poemas para rádio, televisão e jornais. Tem vários poemas musicados (Fagner, Martinho da Vila). Foi por essa e outras razões, convidado a desfilar na Comissão de Frente da Mangueira na homenagem a Carlos Drummond de Andrade, em 1987. Apresentou-se  falando seus poemas, em concerto, ao lado do violonista Turíbio Santos. Tem também quatro CDs de poemas: um gravado  por Tônia Carrero; outro com participação especial de Paulo Autran; outro na sua voz, editado pelo Instituto Moreira Salles e o mais recente pela Luzdacidade, com a participação de atrizes e escritoras. Seu CD de crônicas tem participação especial de Paulo Autran. Escreveu dezenas de livros de poemas, ensaios e crônicas. Como cronista, aliás, substituiu Carlos Drummond de Andrade no "Jornal do Brasil" (1984). Site e blogue oficiais: clique aqui.