©christian maury | in the act | 2001

 
 
 
 


 

A prosa poética

 

 

Bianca tinha olhos de ressaca, como Capitu e  uma  existência  menos  verdadeira do que a da personagem. Talvez olhos de chuva. Encharcados. Ouviu falar que pasta de dente seca espinhas. Quando escurecia lá fora, Bianca esbranquiçava. Ficava como Sayuri: de neve. E não era gueixa, mas possuía os dotes artísticos e estéticos que a tornavam uma figura fascinante. Igualmente, não era dona da própria vida, escorregadias eram as suas rédeas. Não podia consigo mesma. Foi assim que se fez infecunda. Árida época instalava-se na murchidão de uma alma que se priva de viço. Seco era seu peito ao voltar a casa, já não tão certa de pertencê-la e vice-versa. Chegou um tempo de não haver mais reconhecimento entre ambas. Doloroso segredo o de não caber no seu espaço mais íntimo. Sobretudo, a iniciativa aversiva do receptáculo era uma afronta à proprietária que cansou de violentar o sentimento enviesado. Trégua. Chegava indesejando continuamente, arrastando-se entre os livros. Guardava um pouco de si em porta batons e simulacros espelhados. Dissimulava-se bravamente, branca que era [aparentemente... quase brilhante]. Tentativa de posar a felicidade em reflexos. Mas Bianca era uma lacuna nesta noite. Definhada. Uma melodia caetana soava do rádio que esquecera ligado. Seria bom cantar enquanto lavasse os artefatos de mesa sempre posta pra ninguém. Estratégia silenciosa de algum aconchego preterido. Todavia, não havia. Ao abrir a torneira, Bianca surpreendeu-se com a omissão da água. Seu prédio estava em pleno blefe de sobriedade. Evidentemente que o apartamento e ela comungavam da mesma secura. Não deu por essa coincidência e também não ficou triste, de todo. Competiu-lhe absolutamente a reserva. Empilhou suas diversas caixas — tem compulsão por caixas. O que será que pretende guardar? — por cima da mesa em desforra pela auto-antropofagia. Com a mesma preguiça blasè que qualquer hiato proporciona, não arrumara a cama e enchera-a de objetos para segurar a solidão um pouco menos fria, menos longe. Bianca deitou na cama, empurrou os livros para o outro lado e esperou a música como se se aspira a um ato sexual, aguardou a penetração, abeirada que estava na tediosa noite. O som enchera a terrosa menina de então que, em turgescência, pôs-se aos prantos. Lágrimas caíram quentes no travesseiro como que desocupando a gravidade dos olhos abertos demais. Distraiu-se em sono. Os raios primeiros do dia usavam como pretexto as cortinas — sempre permissivas — de seu apartamento para despertá-la, alegando responsabilidade solar. A água notou que Bianca não a impedia por toda à noite, pois se olvidou da torneira aberta como que em ousadia estéril. Seu apartamento entrou em pileque. Todo comedimento bulia com livros e papéis e caixas e sapatos e roupas. Incomodada com a residência sem cômodos que flutuava inteira sobre seus olhos de chuva ainda, a mulher que mora numa casa de água, rio.

 

 

 

Razão

 

Há tempos, eu fabulava a história poética de uma casa de água. A inspiração me foi dada por uma amiga que dormiu com algumas torneiras abertas pela falta de água durante a noite anterior. Evidentemente, ao acordar no dia seguinte, seu apartamento estava alagado.

Não sabia o que fazer com isso até assistir ao belíssimo Memórias de uma gueixa, filme dirigido por Rob Marshall (2005) em que uma menina é vendida a uma casa de gueixas e, apesar dos maus tratos, estudou as tradições da arte e da sedução, que incluíam o canto e a dança, técnicas de maquiagem e vestuário, além de delicadeza para entreter os homens.

Fui estudar um pouco sobre o papel da gueixa no Japão e percebi a força cultural desse elegante trabalho, exercido hoje em dia principalmente por mulheres graciosas, que lidam com a suavidade. Muito se confunde ainda com o trabalho sexual, mas as gueixas não são prostitutas. O que se pode aproximar disso é um flerte bastante requintado, haja vista que as gueixas trabalham com arte de encantar.

A menininha da película é apelidada de olhos de água. Ahhh! Nessa etapa eu já visualizara nossa Capitu, a dos olhos de ressaca... aquela mesma de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Todas elas tornaram-se Bianca, a mulher representada no conto da casa encharcada.

Aquelas cerejeiras, aquela brancura singela do filme, inundando as dores das mulheres que camuflam suas aridezes com as artes de seduzir, pela fluidez dos realces brilhantes que moram nas solidões dos espelhos. Foram o que colaboraram ao texto, que iluminaram as palavrinhas que me coçariam, que me lavaram de inquietude.

 

 

dezembro, 2009
 
 

Beatriz Bajo. (São Paulo/SP, 1980). Poeta, tradutora, professora de língua portuguesa e literatura, especialista em Literatura Brasileira (UERJ) e aluna especial do mestrado em Letras (UEL). Participou de antologias e tem publicações em revistas literárias como Coyote e Polichinello e espaços virtuais como Portal Cronópios, Germina Literatura e Confraria do Vento. Traduziu o livro Respiración del laberinto, do poeta mexicano Mario Papasquiaro, pelo Coletivo Dulcinéia Catadora e trabalha atualmente com uma novela, também mexicana, pela editora LetraSelvagem. Seus livros estão no prelo e insiste em cultivar o blogue Linda Graal. Morou por 17 anos no Rio de Janeiro (RJ) e vive há 3 em Londrina.

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