paula barreto, rj | fotografia | ritmo urbano

 
 
 
 
 


 

O conto

 

 

Maio acontece em seu corpo, enraizando-se, enchendo suas pálpebras de azul e de frio aquoso. O grito mais moderno, propagado por alto-falantes e em letras garrafais, ainda vibra em seus tímpanos: não, ele não deseja comprar nada, não quer saber das teorias da apropriação, nem da atração do metal e das demais virtudes capitais ao sucesso. Quando perambula pelo centro, como agora, mesmo parando de vitrine em vitrine, quer mais é perder-se entre cores e formas, infiltrar-se de abismos. Está certo, quando finalmente chegar em casa, terá de fazer isso e aquilo, consertar a dobradiça da porta, digitar a cota de todo dia, cada toque vale R$0,007, distribuir broncas e beijos entre os filhos, preocupar-se com o não-andamento de teses, livros, resenhas e demais promessas. Na rua, porém, o caminho mais longo entre dois pontos é sempre uma manchete revoltante, uma nova edição da senhora H., um cabo de guarda chuva diferente. Entra numa loja e pergunta se tem o cd novo da Suzanne Vega, ou um antigo da Diana Krall; não, não tem, já sabia disso. Ele até deseja comer uma esfirra, tomar uma coca-cola, mas está tentando fazer uma dieta, perder 5 quilos. Passa direto. Pensa que ter fome por algumas horas é até divertido, pois dá para sentir o estômago vivo. Enquanto caminha, vai repassando na cabeça algo que pretende escrever quando chegar em casa:

 

maio entreaberto num dia de chuva (esse é o título)

nada além do tempo me procura

sentado num banco num afã do centro da cidade

a contrapelo da balbúrdia, do ruído das entranhas, minhas ou do metrô

nada me perfura, nem astúcia ou turra

só o murro lento do que passa e acumula no bulício impalpável de vísceras

e nas tábuas verdes atravessadas sob as nádegas, a sustentação dos ossos e dos músculos encorpando o vazio

nada me distingue do pleno, do jorro de pedra da boca dos leões

desertado de gente e carro

nada me enxerga em ambos os lados da retina

nenhum susto nem intercessão entre ritmos de rodas, de asfalto, sêmen e de lixo atirado na calçada

nada perdura, arvorado, neste banco pintado de verde

só a chuva

mas que importa, trajes, carapuças, tatuagens, certidões, constipação ou a cor do desalinho

mas que importa a memória e suas pipas, balões, livros já sem sabor

a empunhadura genital

nada conspira, nenhuma trama

só mesmo a água

e a ínfima areia passageira do vento

 

Mas tem dúvidas, fica pensando se não está lírico demais, fundado em imagens, e ele está fugindo de imagens em poemas, anda atrás das coisas mais palpáveis, sólidas. Quando chega ao edifício Marquês de Herval, resolve dar um pulo no Beringela, ver se tem a Carta ao pai do Kafka. Um dia ele também vai ter de escrever uma carta a seu pai que, apesar de morto, ainda o assombra. Não tem. Espia entre as novidades. Não, alguém passou por ali antes dele. Sai. Subindo as escadas em caracol, outro fragmento lhe vem à mente, daqueles que não se resolvem, mas que também assombram (talvez ele possa inseri-lo em algum lugar):

 

dentro do ônibus que atravessa a Rio Branco

dentro da velocidade e da freada

dentro do troco

acordado, alimentado, envelhecendo com todas as juntas, com as arruelas, com a napa preta do banco

com o braço cansado do motorista, com a estridência do motor

em rotação e translação

até chegar à Praça da Bandeira e incerto descer

vendo o ônibus se afastar

separar-se de meus sentidos

do fígado, dos intestinos, da digestão e da fome

e caminhar a pé até em casa

 

Quem sabe se entrar de fato num ônibus na Rio Branco, qualquer ônibus, sem se preocupar com o destino, ele consiga continuá-lo, ou abandoná-lo de vez… Só então se dá conta da incongruência: quem pega ônibus na Rio Branco não pode estar indo à Praça da Bandeira, pois é a direção oposta. Apesar de parecer pouco importante, isso o incomoda. Quando foi que inventou um absurdo daqueles? Para ele, é mais uma prova cabal de desonestidade, de que precisa ir mais fundo, cavar nas entranhas algo mais genuíno, que não pegue um ônibus inexistente, que não tome uma direção falsa. Então entra num táxi e diz ao motorista: "Praça da Bandeira, por favor". É a sua maneira de ser mais honesto.

 

 

 

 

Razão

 

 

Se a origem é o verbo e no verbo tudo nasce, verdade e mentira, experiência e ficção, o eu e o outro, é também no verbo que tudo continua a nascer (e morrer), e nele palavras e frases se acumulam — mas também se abastecem de voltagens, se encorpam e se espessam, se traduzem e se calam: assim, na cabeça do escritor: imagens, enredos, origens, recortes, experiências, sonoridades, idéias, cenas, fraudes, vontades, decepções, alegrias: mundos em estado de caos colidindo, mas também se articulando.

 

O mistério é que, de repente, num arrepio do sentido, algo acontece, o poema. Em De como e quando se descobre uma falcatrua: um narrador conta uma história, alguém transita pela cidade encharcado de palavras, escreve enquanto anda, vê, ouve, enquanto flana. Num rompante, surge um poema dentro do poema, um poema que se escreve como outro, mas um outro que passa do ele ao eu, que alitera sua presença na mesma cidade que subitamente é outra cidade nascendo entre o trânsito e a imobilidade. O narrador, antes protegido pela terceira pessoa, se vê invadido pelo eu, que é seu eu, mas que vem de fora, de fora do texto, com outra palavra, com outro verbo.

 

Quem está dentro, quem está fora? Quem diz a verdade, quem mente? Quem precede a quem? Que palavra é origem, eu, ele, que ritmo, que forma? Que mundo, que cidade originou a outra cidade? Prosa ou poesia? Uma coisa dentro da outra ou uma coisa ao lado da outra? Nos mundos abismados do poema, nos fragmentos que se articulam ou se repelem, no fim (ou no começo), às vezes, é melhor ir de táxi.

 

 

junho, 2009
 
 
 
 
Caio Meira (Rio de Janeiro/RJ). Autor de No ôco da mão (UERJ, 1993), Corpo solo (7Letras, 1998), Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer (Azougue, 2003) e do ainda inédito Entre outros (título provisório). Em 2009, a Bertrand do Brasil publicou sua tradução de A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov. Outras traduções e escritos no seu site: www.caiomeira.kit.net.