O poema

 

 

I

 

Piano, tarântula;

punho ferido

e o globo ocular

pelo desmanche

da memória.

 

II

 

(Ofélia descentrada,

banha-se em prata

de céu abortado.)

 

III

 

Paraíso clorofórmio:

inscrever o exílio

dos lábios na pele,

metalizada e muda.

 

IV

 

(Flashback)

 

Nereida meretriz

na gravata epitáfio;

tufos de barba

da morta madre,

como um presságio.

 

V

 

(Finale):

 

Ele travestiu-se

para o ofício de Perséfone,

após domar a dor.

Repousa agora

o olho único da inquieta. 

 

 

 

 

Razão

 

 

O filme Betty Blue, dirigido por Jean-Jacques Beineix, causou-me forte impressão quando o assisti pela primeira vez, em 1986. Cerca de vinte anos depois, resolvi escrever um poema que dialogasse com o filme, usando recursos como a metonímia, a elipse, a fragmentação sintática e a justaposição de imagens, que de certo modo mimetizam os cortes, closes, montagens e sequências da linguagem cinematográfica. O poema é dividido em cinco seções, e cada seção corresponde a uma cena da película, sem obedecer à ordem linear, do tipo início-meio-fim; preferi adotar uma sequência ditada pela memória, pela imaginação e pelas necessidades do próprio poema, que estabelece a sua dinâmica particular. É como se eu dirigisse um outro "filme" a partir do roteiro inicial, modificando inclusive algumas cenas, com a introdução de elementos estranhos à obra original. Já na primeira seção do poema, cito uma "tarântula" que não aparece no filme, mas que, a meu ver, causa um contraste interessante com o "piano".  Na segunda seção, o "céu abortado" corresponde ao útero da personagem. Há outros exemplos de metáforas que sintetizam elementos narrativos do filme, como "paraíso clorofórmio" e "gravata epitáfio". A última seção do poema coincide com a cena de maior impacto da película; aqui não houve desejo de verossimilhança, mas uma intenção de efeito estético, tal como prescrito por Edgar Allan Poe em seu Princípio poético. Por fim, tenho a acrescentar que este não é o meu único poema que dialoga com o cinema; no livro Yumê, há alusões a cenas de O último imperador, de Bertolucci, e à Última tempestade, de Peter Greenaway.

 

 

junho, 2009
 
 
 
 
Claudio Daniel (São Paulo/SP). Poeta, pesquisador, ensaísta e tradutor. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001) e Figuras metálicas (2005). O poema apresentado nesta edição da GENÉTICA DA COISA pertence ao livro Fera Bifronte, que será lançado em junho de 2009 pela Lumme Editor. O autor prepara ainda o lançamento da plaquete Letra Negra, pelo selo Arqueria, e ministra oficinas literárias no Ateliê do Centro, em São Paulo, e via Skype, dentro do projeto do Laboratório de Criação Poética. É co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates e escreve o blogue Cantar a Pele de Lontra.
 
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