alex flemming l sem título l acrílica s/linho l 280 x 210 cm, 1989
 
 
 
 
 
 


 

A prosa poética

 

 

no politrauma do miguel couto todas aquelas personas grafitadas e suas algemas fechadas em cadeiras e camas e macas, e aí irmão, dançô também. chão de sangue. segue o rastro, raspão na cabeça. projétil protegido aninhado na cartilagem de um joelho que não vê um dedão — munição arrancou.

 

Sala de Ressuscitação: lotação esgotada.

 

Raio-X: lotação esgotada.

 

Lotação: incendiada.

 

no politrauma do miguel couto ninguém entra ninguém sai, fora todo mundo que é visitante, é para sua própria segurança. aí babaca, larga mão da pulseira, fica quieto senão você pode cair, bater com a cabeça e morrer.

 

aí tia, dá uma água pra mim, na boa, na paz.

 

tiros, o táxi sai voando, é fechado pelos ômi. O puliça da portaria vem carregado. braço estilhaçado, hospital desprotegido. hospital bala perdida. a tia entubada não viu nada.

 

no politrauma do miguel couto não tem parada. dia animado, clima saudável e ótimas companhias.

 

 

 

Razão

 

 

Geralmente, tenho a mão pesada nos poemas. Diz o Ramon (Mello, do Click (In)Versos) que minha poesia é psicossomática. Não está de todo errado. Já na prosa, não sei bem o motivo, o dia-a-dia prevalece, com toda a agradável banalidade que o faz possível. Mas tem dias que suprimem a palavra banalidade. São surreais, singulares, completamente non sense. São os dias que me transformam em espectadora e me fazem fundir poesia e prosa. "Politrauma" é fruto de um dia desses. Fui para o Miguel Couto para uma banalidade qualquer. Mas a polícia invadiu alguns morros. E todos os baleados, vivos, mortos ou quase, foram levados para lá também. Inclusive os policiais. Confronto na sala de politrauma. Palavras desaforadas, gestos ofensivos, olhares ameaçadores. Enfim, a mais pura poesia carioca.

 

 

outubro, 2009
 
 
 
 

Priscila Andrade (Rio de Janeiro/RJ). Escritora e produtora de eventos. Graduada em Marketing pelo Centro Universitário da Cidade (UniverCidade, Rio de Janeiro, RJ). Entre os eventos que coordena e produz destacam-se a FLAP! RJ, Festa Literária Aberta ao Público (desde 2006) e o Festival Segundas Poéticas (2005), que apresentou os principais grupos de poesia em atividade na cidade do Rio de Janeiro. Manteve por seis meses uma coluna de poesia no site Armazém Literário; foi redatora da revista Mad; faz parte da antologia Ponte de Versos: 8 anos. Tem poemas publicados em vários jornais, revistas e sites de literatura; apresenta-se regularmente em eventos, tais como o Cep 20.000 e o Festival Nacional de Poesia, o Poesia Voa. Está com dois livros prontos, à procura do prelo: Encefalocardia e outro ainda sem título. Escreve o blogue Dedo de Moça.