Cena de ESTÓRIAS DE TRANCOSO
 
 
 
 
 
 

 

 

"Aí está  o fascínio da imagem: instalar-se na

exterioridade  do  tempo  e  do  pensamento,

achar, no tempo perdido, um tempo futuro".

(Cláudio Costa, Cinema Brasileiro)

 

 

ESTÓRIAS DE TRANCOSO (2007, 115 min.), o premiado longa-metragem de AUGUSTO SEVÁ, acompanha a trajetória do município baiano que, nas duas últimas décadas do século vinte, experimentou um processo de aceleradas transformações, até alcançar sua atual fisionomia e a condição que hoje ostenta — de um dos pontos turísticos mais procurados do sul da Bahia, por todas as faixas etárias e sociais.

Outrora vila de camponeses e pescadores, destino exclusivo de jovens de vida alternativa, artistas, intelectuais e outsiders, Trancoso atrai, atualmente, turistas de todo o país e também do exterior. As vertiginosas mudanças ocorridas no local repercutiram, naturalmente, na vida de cada um de seus habitantes, crianças, adolescentes, jovens e famílias. Situada a 50 quilômetros ao sul da cidade de Porto Seguro, Trancoso era uma pequena vila que, nos anos 80, ainda não contava quinhentos habitantes.  Nesse ambiente o diretor narra a história de dois meninos — Nezinho e Tonzé — e duas meninas — Déa e Rosinha — em plena passagem da infância para a juventude, período de transição em que florescem a sexualidade, o amor e os primeiros sonhos adolescentes.

De comunidade primitiva ainda com características tribais e tradições seculares, Trancoso converte-se em núcleo fortalecido pela indústria turística, vivendo um inesperado conflito de valores, benefícios e vícios da sociedade. O olhar do diretor mescla o enfoque da psique destes quatro jovens personagens com a visão de natureza sociológica do quadro humano recortado da paisagem de Trancoso. A cidade se desenvolve; os personagens experimentam o sempre difícil processo de amadurecimento.

A chegada dos clássicos sinais de progresso — luz elétrica, primeira agência bancária, asfalto — tem o condão de eclipsar, aos poucos, a pureza do olhar nativo, pureza muito bem definida nas frases ditas e repetidas à exaustão pelo índio Tigê, um dos personagens emblemáticos do filme: Trancoso não é mais Trancoso. Trancoso só é Trancoso no escuro, só com a luz da lua.

A exploração em vários níveis e a chegada das drogas inauguram tensões antes inexistentes no povoado, ao mesmo tempo em que despojam seus habitantes da ingenuidade original, da inocência — a boa-fé que os fazia negociar as terras em estabelecimentos comerciais, louvando-se mais na confiança em quem elaborava o contrato ou recibo do que em seus próprios termos e em sua substância.

ESTÓRIAS DE TRANCOSO foi realizado com atores não profissionais, selecionados entre os habitantes locais e, embora seja um filme de ficção, retrata com fidelidade um período da história e o encontro de diferentes culturas, com seus impactos na vida dos já referidos quatro personagens centrais e seus coadjuvantes — Sr. Antonino, o índio Tigê, a professora da escola. Desfilam na tela os conflitos decorrentes da irreversível interação de duas culturas, de dois Brasis que, depois do natural estranhamento mútuo, acabaram por convergir, gerando um verdadeiro amálgama de elementos sócio-culturais.

Entre os atores não profissionais, estão Franciane Souza, Catiana Martins, Sara Bonfim, Cleide Santos, Demar Terra, Deco Menezes, João Batista, Cláudio Santos, Nefi Tales e Cristiano Cabral. Realce para a participação do ator Rodrigo Lombardi, interpretando o ator italiano Luigi, que, depois de participar de filmagens em Trancoso, envolve-se com a menina Déa, chegando a levá-la consigo para a Europa.

Entre os adolescentes, destaca-se o perfil de Tonzé, menino ensimesmado e introspectivo que se torna um artista plástico conhecido no povoado e, repentinamente, vê sua pintura primitiva ser supervalorizada por um grupo de habitantes do sudeste brasileiro, dispostos a explorá-lo.

Aliás, releva observar que a ligação entre Tonzé e o índio Tigê, delineada desde a infância do primeiro, bem reflete a linha de resistência cultural que se expressava com veemência antes das transformações culturais que adviriam. Aos poucos, a pureza do homem primitivo enfrenta as ciladas da astúcia e da malícia de alguns forasteiros oportunistas.

Como observa Cláudio Costa, em seu Cinema Brasileiro (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000)

 

A escrita da imagem é uma forma de jogo que afirma a interação infinita entre a palavra (som) e a imagem  (fotografia),  a  conjugação em reversibilidade entre duas dimensões do áudio-visual (p. 109).

                                           

Os momentos que marcam as transformações individuais dos personagens são sublinhados pelo olhar perscrutador do cineasta, em diversas seqüências lentas, na maior parte das vezes silenciosas, que testemunham o tempo real de cada acontecimento e envolvem o espectador na atmosfera dos bem trançados fios narrativos tecidos pela habilidade do roteirista.

Como ensina Michael Rabiger, "a linguagem cinematográfica é uma interação complexa de imagens em movimento acompanhadas pelos modificadores infinitos das palavras, dos símbolos, dos sons, da cor, do movimento e da música". (Direção de cinema — técnicas e estética. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2007, 3ª. edição.) Interessante observar como Sevá consegue atenuar a visibilidade da linguagem cinematogrática, para que a realidade se mostre sem filtros. Mostra a vila de Trancoso e a vida de suas personagens "de dentro" e "por dentro", induzindo e convidando o espectador a habitar a cidade e "viver" o impacto de seu crescimento.

O filme acompanha a trajetória de dois casais de adolescentes — Nezinho, Déa, Tonzé e Rosinha — seus encontros e descobertas, sua alquimia de enredos e desenredos, o vulcão das paixões, os ritos de passagem, as brisas, as labaredas e o encantamento dos primeiros afetos. O desabrochar de suas histórias pessoais metaforiza o período de intensas transmutações pelas quais passou a cidade, originalmente uma pacata vila de pescadores.

Em ESTÓRIAS DE TRANCOSO, Augusto Sevá acumula as funções de roteirista, diretor e câmara, desincumbindo-se muito bem de todas elas, inscrevendo em mais esse filme a marca de sua singularidade, que começou a ser revelada ao público ainda nos anos 70, nos primeiros curta-metragens que realizou, passando por A Caminho das Índias (seu primeiro longa-metragem, de 1981), e os belos documentários sobre Abrolhos, Ilha Grande, entre outros, recentemente veiculados por canais de televisão, no Brasil e no exterior. Paralelamente à atividade de diretor, Seva também tem dado grande contribuição ao cinema brasileiro, como presidente da APACI — Associação Paulista de Cineastas, Assessor de Cinema da Secretaria Municipal de São Paulo, nos anos 90, e como Diretor da ANCINE, entre 2003 e 2006.

Antes mesmo da finalização, ESTÓRIAS DE TRANCOSO teve seu roteiro contemplado com vários prêmios: Concurso para Desenvolvimento de Roteiros, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1996; Prêmio LINC, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1997; Concurso Nacional de Roteiros, Ministério da Cultura, 1999; Programa de Fomento ao Cinema Paulista, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 2004.

Depois da primeira projeção, ao ar livre (fevereiro de 2007), em um telão montado na praça histórica de Trancoso (Praça do Quadrado), em evento realizado pela  Albatroz Cinematográfica, com o apoio da Prefeitura de Porto Seguro, o longa-metragem seguiu sua trilha de êxito, sendo premiado na 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (outubro de 2007) como o melhor longa-metragem brasileiro de ficção, na votação do público. ESTÓRIAS DE TRANCOSO também tem se destacado em âmbito internacional. Exibido na China, no Festival de Shangai, e na Espanha, no Festival Premis Tirant, foi premiado no segundo como melhor filme de longa-metragem.

A rica tessitura do filme resulta de um conjunto harmônico de competências e talentos. Além da direção de Sevá, merecem aplausos a bem cuidada cenografia de Manoel Conceição Vieira, os perfeitos figurinos de Maíra Bretas, a impecável direção de fotografia, compartilhada entre Cláudio Portioli e o próprio Augusto Sevá, e a competente trilha sonora, a cargo de Caíto Marcondes. Obras do repertório da música clássica, como Improviso Opus 90, de F. Chopin, Sinfonia do Novo Mundo, de A. Dvorak, e Estudo Opus 25, de F. Schubert, mesclam-se a canções da MPB, como Sozinho, de Peninha, De Volta pro Meu Aconchego, de Nando Cordel e Dominguinhos, e a delicada canção-tema intitulada Que Seja, composição de Janaína Pereira e Potiguara Menezes, interpretada pelo grupo "Bicho-de-pé".

Registra-se, ainda, que, na poesia musical de ESTÓRIAS DE TRANCOSO, na abertura do filme, antes mesmo de suas primeiras cenas, quando deslizam pela tela os créditos iniciais, ouve-se um discreto som de berimbaus, prenunciando o ritmo visual e visceral das estórias que estão por vir. Pura poesia, o prelúdio de berimbaus também anuncia os vários momentos em que o filme atingirá a essencialidade de sua força estética.

Diz Bela Baláz (A vida visual, in A Experiência do Cinema, org. Ismail Xavier. São Paulo: Ed. Graal, 2003):

 

Um  bom  filme,  com  seus  close-ups,  revela   as partes  mais recônditas  de  nossa  vida  polifônica, além  de  nos ensinar a ver os intrincados detalhes visuais da vida,  da mesma forma que uma pessoa lê uma partitura orquestral.

 

No escuro da noite, na tela desenhada por Augusto Sevá, Trancoso sempre será Trancoso. No espaço da noitessom, no tempo-luz, as vozes do dia, entre imagens de barcos e peixes, no balé dos caranguejos. No ritmo do forró, no embalo das redes, nas ondas sobre ondas e nos matizes de azul do mar. Na grandeza do oceano, nos primeiros grãos de areia, Trancoso. No atrevimento de seus cromatismos, na coreografia melismática das algas. Ou só com a luz da lua, como afirmava e desejava o índio Tigê.

 

 

março, 2009

 

 

 

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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