Um outro prazer se associa à leitura de poemas. É a leitura de textos sobre poesia, não teóricos, às vezes teóricos, às vezes filosóficos, mas sobretudo quando tratam de autores e poemas específicos. Como os ensaios publicados no número 34 da revista Fragmentos, do departamento de língua e literatura estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina, organizado por Carlos Daghlian, José Lira e Walter Carlos Costa. Porque se trata da possibilidade de um diálogo amplo com estudiosos que no final das contas são leitores apaixonados, no caso, por Emily Dickinson, um dos maiores nomes da poesia norte-americana e mundial.
Os ensaios, cada um na sua área de eleição, permitem ao leitor de Dickinson ampliar, diversificar, enriquecer enfim o seu próprio modo de leitura. A rigor, a solitária de Amherst parece ter inventado uma religião particular. Há uma aura muito própria ao redor de seus poemas. E essa aura se expande em reflexões feitas entre o leitor e o livro que tem diante dos olhos, ou o leitor que decide partilhar sua fé com os demais, como acontece aqui. Cada adepto também encontrará a matéria com a qual tem maior afinidade. E, nunca é demais dizer: esses estudos são do interesse de estudiosos de literatura e poesia em geral. A riqueza da obra da poetisa permite visadas muito variadas, que vão desde uma investigação sobre a metáfora e a dimensão semântico-pictórica — tão antiga quanto a própria poesia —, desenvolvida por Genilda Azeredo, a questão da auto-ronia, por Carlos Daghlian, até a percepção da morte, por Sigrid Renaux.
Por sua vez, o poeta Paulo Henriques Britto apresenta uma aula concentrada sobre peculiaridades da tradução de uma forma e de uma métrica estranhos ao português. Como encontrar na língua de Camões e Zé Limeira algo equivalente a um tipo de poesia popular de língua inglesa marcada por pés e não pelo acento? A transposição para uma marcação equivalente revela-se equivocada, pois, argumenta o tradutor, criaria um efeito muito artificial, por ser incomum. Assim, a relação do leitor brasileiro ao deparar o texto seria diferente daquela do leitor norte-americano diante de um texto de moldes populares.
A solução para esse problema estaria em encontrar "uma forma que conotasse simplicidade, espontaneidade, singeleza, características que pudessem contrastar com a complexidade do texto poético, tal como ocorre no original; uma forma que, mesmo não sendo estruturalmente equivalente ao metro de balada, a ele correspondesse do ponto de vista funcional, dentro do repertório prosódico do idioma". De acordo com as conclusões de Henriques Britto, a saída estava na "redondilha maior — o metro da trova popular, da poesia de cordel, da cantiga de roda". Outro problema é que Dickinson não se mantinha rigorosamente dentro desses moldes. Enfim, Henriques Britto demonstra — mesmo que talvez não seja sua primeira intenção — que traduzir poesia é antes de mais nada um exercício poético tão próximo quanto equivalente da criação. Acrescento: o desafio está em criar um equivalente reconhecível na fonte e não um outro poema — se bem que o segundo resultado não seja em nada desprezível.
Também relacionado à técnica é o artigo de José Lira, outro tradutor inventivo da obra da poetisa, que se dedica a procurar "sonetos" fora de convenção (14 sílabas, métrica, rima, etc.) entre os poemas de Dickinson que de resto sempre apresentam um ou vários desafios de cada vez, ou de uma só vez. Lira escolheu mais um desses desafios. Não se trata de um exercício fútil, que se perde numa tarde de aula entediante, e sim de uma série de observações sobre o relacionamento da poetisa com a linguagem. A discussão, de maneira aparentemente despretensiosa e sem complicações do que o necessário, coloca a poesia de Dickinson frente à poesia ocidental. A propósito, Maria Lúcia Milléo Martins fala sobre um assunto que sempre intriga quando se trata da fantasmática moça de branco da província, capaz de escrever poesia de alcance pelo menos planetário. Seu ensaio, em inglês, é dedicado exatamente à "íntima imensidão" dos versos da escritora. Solange Ribeiro de Oliveira trata da imagem da poetisa no seu oposto: a cultura de massas. Esse ensaio, como outros da revista — não todos —, estão em inglês.
Um esboço da trajetória da poetisa no Brasil (ela tem textos em que menciona o país), isto é, da divulgação de sua obra por aqui, é feito pelo professor George Monteiro, da Brown University. Há muito tempo a esquiva moça de branco costuma passear pelas páginas da poesia brasileira, de corpo presente, com tradutores que se chamaram de Manuel Bandeira a Oswaldino Marques, entre os pioneiros, ou como influência permanente — o que não significa imitação passiva.
Fragmentos: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos
[Publicado originalmente no Estado, Cultura, ed. 8/3/09]
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março, 2009