— Obrigado por ligar para a Central de Atendimento da Igreja Católica Apostólica Eletrônica. Escolha um dos nossos sacramentos on line:

Para batizado, tecle três.

Para fazer a primeira comunhão, tecle quatro.

Para ser crismado, tecle cinco.

Casamento, tecle seis.

Confissão, tecle oito.

Unção dos enfermos, tecle sete.

Para denúncias de pedofilia e abusos de coroinhas, vá reclamar ao bispo. Se o pedófilo for o bispo, relaxe e reze.

Se você ainda não é nosso fiel, tecle três e forneça o CPF dos padrinhos para ser batizado.

— "Plóin" (a fiel teclou oito).

— Estamos transferindo a ligação para um de nossos ministros-confessores. Por favor, aguarde (fundo musical de Festa no Apê do Senhor com Marcelo Rossi e Latino).

Dezoito segundos depois, um sotaque enrolado e horroroso aparece na linha:

— Confessionário eletrônico, Mohander Salah, bom-dia, em que posso absolvê-lo?

— Bom dia. Meu nome é Sara. Eu gostaria de confessar um pecado mortal.

— Acompanha três pecados veniais, senhora? Na promoção do dia acrescenta apenas dez centavos ao seu dízimo.

— Não, obrigada. Vou confessar só o mortal mesmo.

— Por favor, tecle o número do seu batistério.

Plim, plen, plóin, pleng, plung...

A voz eletrônica volta: "Recebendo os pecados de Sara Jeniffer Santos, coloque a mão sobre a sua iBible e fale seus pecados por ordem de gravidade".

— Eu traí o meu marido.

Mohander corre de volta à linha:

— Chifrou o marido, minha senhora? Ih! Esse pecado é muito pesado, a senhora tem conexão banda larga?

— Você não pode pôr um padre na linha e a gente já resolve isso?

— Não, senhora. O serviço de call center é terceirizado. Estamos atendendo na Índia, aqui somos todos hindus.

— Eu já estou perdendo a paciência!

— Devo estar lembrando que se a senhora for estar me ofendendo ou for estar xingando algum parente meu em primeiro grau, o seu pacote de pecados vai estar excedendo o limite on line e a senhora terá de estar levando suas iniqüidades pessoalmente ao confessionário.

— Eu vou ter que ir até à igreja para me confessar?!!

— Sim, senhora. O posto de atendimento mais próximo da senhora é o confession-drive-thru da Paróquia de Saint Steve Jobs ou também pode estar utilizando um dos terminais na Matriz de Nossa Senhora dos Bits.

— Assim eu não agüento, vou mudar de religião.

— Só um minuto que eu vou estar transferindo a sua ligação para o setor de excomunhão. A Santa Sé agradece a sua devoção!

 

Convertei-vos e crede na boa e nova tecnologia de absolvição pecaminosa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aquele outdoor se exibia de tal maneira que era mais fácil ignorar o semáforo do que suas letras gigantescas: "Os Monólogos da Vagina". A exuberância desaforada da peça publicitária preocupou Laércio que tinha que passar por aquele cruzamento todos os dias levando a bordo uma ardilosa criatura de apenas quatro anos de idade que atendia pelo nome de:


-Vitinho! Ele vai ler isso, Clara. É uma questão de tempo — profetizou Laércio à sua mulher quando viu o gigantesco cartaz ser instalado.


— Relaxe. O menino nem presta atenção nessas coisas.


— Ele vai ler, Clara. Olhe o tamanho das letras! Ele vai ler e vai querer saber o que é. Você já pensou?


— Você tá ficando neurótico.


— Eu disse para a sua mãe que era cedo demais para alfabetizar a criança. Mas ela ouve alguém?


— Você pode deixar a minha mãe fora das suas neuras?


O tempo foi passando, o outdoor foi ficando e Vitinho nem aí para a vagina em caixa alta que se exibia logo atrás do semáforo no qual paravam todo santo dia na volta da escola. Nunca pegaram o sinal aberto naquele cruzamento, porque reza a Legislação de Murphy que quanto mais você precisar de um semáforo verde, mais vermelho ele lhe aparecerá.


Como o inevitável pode ser até protelado, mas nunca (como o próprio nome diz) evitado, foi num belo final de tarde que Laércio e Clara ouviram um balbuciar vindo do banco de trás do carro:


— NÓ, LÔ, GOS, monolôgos, DA VA...


O carro saiu cantando pneus sob o sinal vermelho, arrancando o jovem leitor de seu texto e um grito de sua jovem mãe:


— VOCÊ PERDEU O JUÍZO?!!! Vai nos matar por causa de uma bobagem?


Laércio estava mais tenso que um carioca dirigindo de madrugada na Linha Amarela. O suor frio escorria em cascatas pelas têmporas, estava zureta a ponto de ignorar (o que é comum) sem querer (o que é raro) o chilique da mulher. Só conseguiu praguejar comentários para si mesmo tentando expurgar o que o deixava tão inconformado:


— Eu aprendi a ler aos seis anos. Por que ele não pôde esperar? Deveria ser proibido alfabetizar crianças pequenas. Elas não têm estrutura para receber tantas obscenidades. Até os seis anos as crianças deveriam só empurrar carrinhos e brincar com bonecas. Elas vão ter muito tempo depois para se entender com as letras...

A verborragia desvairada continuou por um bom tempo, o que fez Clara perceber que o caso era psiquiátrico-agressivo. A prudência falou mais alto que a raiva. Preferiu então se calar (o que era raro) a inflamar uma discussão maior (o que era comum).

Não se falou mais no assunto até o famigerado dia da grande liquidação de fronhas. Versa a supracitada lei de Murphy que, quando uma coisa está para dar errado, todas as condições adversas estarão tão fabulosamente presentes que não haverá — em todo o Universo conhecido — uma catástrofe, aberração ou buraco negro que a impeça ou a faça ocorrer de maneira pior. A batalha de Laércio contra a vagina de papel é a prova científica de que Murphy estava absolutamente certo sobre coisas que dão absolutamente errado.


— Laércio, vá ao shopping — mandou Clara no dia em que se cumpriria a profecia — Está acontecendo uma grande liquidação de fronhas brancas. Compre cinco pares. Não agüento mais dormir com aquelas bolinhas na cara. Vá logo e leve o Vitinho enquanto eu termino o jantar.


E assim eles foram. E assim voltaram:


Satisfeito por ter conseguido cinco pares de fronhas por apenas trinta e sete reais e quinze centavos, Laércio sequer reparou nos olhos do filho ao parar no semáforo. Mais esperto do que o pai, o menino desta vez apenas simulou com os lábios as últimas sílabas, em silêncio, e disparou de vez a pergunta fatal:


— Papai, o que é vagina?


Como nas horas de pânico o que governa a mente é o absurdo, a única coisa que passou pela cabeça de Laércio foi: "por que aquela velha que ensinou esse moleque a ler não está aqui?".


— E monólogo, filho? Você sabe o que é monólogo? — Laércio viu essas palavras saírem de sua boca completamente admirado com a própria agilidade de raciocínio.


— O que é vagina, papai? — Insistiu Vitinho revertendo o xeque-mate do pai.


— Como você quer saber o que é vagina se você ainda não sabe o que é monólogo?


— Você sabe o que é vagina, papai?


Foi nessa hora que um anjo apareceu em forma de canção de Sérgio Reis. O clássico sertanejo "Panela Velha" tocou no celular de Laércio, indicando que o chamado era de Clara:


— Onde vocês estão? Era só para comprar fronhas. O jantar vai esfriar — disparou a mulher do outro lado da linha.


— Estamos chegando! — Foi só o que o marido conseguiu responder.


Nesse momento percebeu que ainda estavam parados no semáforo, com o sinal verde já passando para o amarelo novamente. Laércio acelerou mudando de marcha e de assunto. Falou de bicicletas, de desenhos animados e de fronhas. E imaginou o estrago que uma alfabetização precoce pode fazer na cabeça de uma criança.

Depois daquela saia-justa, o assunto não voltou mais à baila. Foi somente quando estavam trocando as folhas do outdoor que Laércio, parado na mesma encruzilhada, relembrou o caso. Intrigado com o longo e conformado silêncio do filho, perguntou:


— E aí, filho? Não quer mais saber o que é monólogo?



— Não, papai. A minha amiga Daniela já mostrou o monólogo dela pra mim, lá na escola.

Moral: se não houver diálogo, o seu filho partirá para o monólogo.

 

 

 

 

 

 

 

 

Para a criança da cidade

a vaca se chama TetraPak

e tem tetas de papelão.

O tomate é fruto do quitandeiro

e a alface brota na Kombi do verdureiro.

O atum é irmão da sardinha

e os dois nascem dentro da latinha.

Frango é um bicho sem pena nem cabeça

que nunca ciscou ou fez porcaria

e que só sabe ficar rodando

na porta da padaria.

Coxas e asinhas não são dele.

Foram feitas pela Sadia.

O ovos nascem de doze em doze

filhos das caixas de papelão

que os pintam da cor da fábrica:

branco, bege ou marrom.

O figo nasce dentro do plástico

e a jabuticaba nunca teve gosto de árvore.

Morango é invenção da Danone.

Melancia é sabor de chiclete

pois a grandona é fruta falsa.

Tutti-frutti foi feito por Deus

e a fruta preferida é Sonho de Valsa.

Em seu mundinho azulejado,

o céu tem sanca de gesso

e o chão é todo asfaltado.

Elas andam sem pôr o pé no chão

por isso não têm bicho-de-pé,

só minhoca na cabeça.

 

 

 

 

 

 

 

 

Lamento admitir, mas o Nelson Rodrigues tem razão, o amor não morre. Nunca. Por mais que o enterremos, o afoguemos, tentemos esfaqueá-lo, esquartejá-lo ou incinerá-lo, ao contrário do frágil ódio, o amor perdura. O amor que foi continua sendo. Mesmo se a decepção, a traição, o rancor, o ciúme, o egoísmo ou a morte tenham destruído um relacionamento, o amor que um dia aconteceu é para sempre.

Podes sentir ciúme dos "ex"s de tua amada. Aqueles que passaram pela vida dela carregam um todo dessa mulher que tu nunca vais ter. Do mesmo modo, as ex-namoradas de teu marido das quais "roubaste" o cargo de esposa, roubaram de ti românticos capítulos da juventude desse homem que jamais terás. Mesmo que hoje ele as odeie, as despreze e nunca mais as veja, um todo de cada uma delas está presente nele. Para sempre.


Quem pode roubar de nós o primeiro beijo roubado? O primeiro é o primeiro. Se tu não foste o autor do primeiro, tu serás, no máximo, o primeiro de língua, o primeiro na padaria, o primeiro com aparelho nos dentes... O primeiro mesmo, meu caro, já foi e dela ninguém tira. Admite.


Admite o quão verdadeiros foram as confissões babacas ao pé-do-ouvido, as primeiras flores recebidas, as fugas e desculpas para ver o "grande amor da minha vida", o beijo flagrado naquela tarde embaixo da mangueira e que só foi o que foi porque teve um beijo, um abelhudo e uma mangueira que jamais voltarão. Não precisam. São eternos. Ainda que o amado tenha sumido, o abelhudo, morrido e a mangueira, sido cortada.


Admite que teu amado de hoje foi aprimorado pelas outras mulheres que ele amou. Que as flores que recebes hoje são filhas do primeiro buquê que ele comprou cujo perfume ainda está nele. Admite que a paciência dele com tua TPM foi conquistada por outra menina que não contou com a mesma complacência. Que as delicadezas que ele hoje tem contigo não vieram das conversas com os amigos, mas de aulas práticas ministradas por almas do sexo feminino.


Admite que tua mulher não virou mulher em teus braços e que nem por isso é menos encantadora do que aquela primeira que te fez homem. Aceite o fato de que o olhar carinhoso que hoje te derrete foi ensaiado em outros rapazes e que os beijos que agora recebes são jóias lapidadas por outras bocas. Graças a elas, não recebeste um diamante bruto.


Admite que teu amado não é teu. Há nele algo tão "ele" que jamais terás, feito de partes que outras tiveram, feito de um todo que também levarás.


Admite que tua amada não é tua. Há nela um Bruno, um Carlos, um Luís tão dela quanto ela mesma. Amores verdadeiramente amados que nunca morrerão e que a fazem ser quem é, que fazem todos ser quem são.

 

Admitir isso é o começo do amor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eram só os dois debaixo da noite clara, quando o pequeno olhando firme para o céu falou:

— Pai, me dá uma estrela?


O homem perturbou-se. Estava ali um menino que queria uma estrela. Por um acaso dos ventos, era o seu filho. O que no mundo acenderia tal desejo no coração de uma criança? Está certo, pensou melhor o homem, o pedido não poderia vir de um adulto. Os adultos não querem saber das estrelas. Se as olham é para ver se nelas há gás, se são anãs brancas ou supernovas, se estão a tantos milhões de anos-luz, se vão explodir ou nascer, coisas absolutamente irrelevantes para quem recebeu a tarefa de entregar uma delas ao próprio filho. Será que os homens que estudam o céu já pediram alguma vez uma estrela aos seus pais? "Acho que não", concluiu.

O menino que queria uma estrela aguardava em silêncio a resposta do pai. Fitava hipnotizado o pontilhado céu. Pescoço esticado, esperava sem pressa as interlocuções do perturbado adulto. Imaginava onde guardaria sua estrela, se debaixo do travesseiro ou da cama, num lugar onde a mãe não fosse danar com ele, "menino, tire essa estrela do caminho que alguém vai tropeçar nela!". Depois pensou se o deixariam levar sua estrela para a escola. A mostraria orgulhoso aos colegas, diria que fora presente do pai gigante que esticou alto o braço e, como que arrancando a suculenta jabuticaba do galho mais alto, colhera uma estrela que brilhava forte na palma de sua mão.


O pai do menino que queria uma estrela agora pensava na própria infância. Tentou lembrar por que razão ele nunca havia pedido uma estrela ao seu pai. Relembrou vários momentos de criança, de como era bom roubar doces na cozinha, brincar debaixo da chuva e de ficar até tarde da noite acordado só para não ter que dormir na hora certa. Nessas noites, ele costumava ver céus povoados de galáxias. Pensava se um disco voador viria lhe falar que ele era um dos pontinhos brancos vistos lá do planeta dele. Lembrou-se também duma noite em que começou a contar as estrelas e dormiu no chão antes de terminar. Mas nunca se lembrou de pedir uma delas ao pai. Perguntou-se se teria sido mais feliz se tivesse ganhado uma estrela. Não conseguiu responder.


Enquanto isso, o menino que queria uma estrela brincava em pensamentos com a estrela que ainda não tinha. Fitando uma a uma no espaço, imaginava por que haveria de existir tantas estrelas se não fosse para serem distribuídas às crianças que precisassem delas. E ele precisava de uma. Era uma questão de fe-li-ci-da-de. Como uma criança poderia ser feliz sem uma estrela? "Não. Não há como", o menino respondeu-se.


O pai do menino que queria uma estrela desceu dos pensamentos, abaixou a cabeça e observou o filho pequeno lá perto do chão. Olhou novamente para o cosmo e sentiu-se incrivelmente próximo dele. Era de fato um gigante que tocava o céu com as mãos. Sentiu-se maior ainda porque tinha a missão de buscar uma estrela para um menino. Nunca lhe haviam confiado uma tarefa tão preciosa. Em silêncio, o homem esticou não um, mas os dois braços para o universo e enlaçou o céu com suas mãos gigantescas. Colheu um punhado de estrelas da constelação mais brilhante, chacoalhou as mãos juntas em concha para sair o excesso, olhou as que sobraram e dentre elas pinçou a mais bela. Aconchegou-a delicadamente entre as mãos como quem carrega um pintinho recém-nascido. Agachou-se para o filho.

— Abra o bolso.

 

O menino obedeceu com os olhos arregalados de felicidade, mal acreditando no que via. Fechou a boca do bolso com as duas mãozinhas para não deixar nem um pingo de luz escapar. Ainda inebriado, estendeu uma mão ao pai e manteve a outra no bolso segurando a sua estrela. Em silêncio, o pai e o menino que tinha uma estrela voltaram para casa emocionados por levarem consigo um pedaço daquele céu.

 

 

(imagem ©giovanni rueda)

 

 

Fábio Reynol (Campinas/SP, 1973), é jornalista e cronista. Publica parte de sua produção literária em seu blogue, o Diário da Tribo, e é autor da coletânea O vendedor de palavras — crônicas de um país de tanga na mão e corda no pescoço (São Paulo: Baraúna, 2008). Especialista em Ciência e Tecnologia, trabalha como repórter de revistas científicas e é mestrando em Divulgação Científica e Cultural na Universidade Estadual de Campinas.