Desagravo

 

 

É a terceira noite que ele não consegue dormir. Empacado. Fica olhando com inveja a liberdade, o perambular irresponsável, a frivolidade com que leva os dias. Faz o que quer. Ou não faz nada. Enche o saco. E ele ainda atura. Ela é que é feliz.

Feliz, eu? Sabe você o que é ser parido no lixão — no esterco?, precisar descolar o rango em restos e perebas?, ter que trepar nas horas mais quentes do dia e olhos arregalados eternidade adentro ser obrigada a contemplar tantas mazelas? Nem mesmo pisco — não sonho, não me iludo. Sabe o que é ter por sina disseminar a bubônica, febre, lepra, diarreia, tifo, disenteria?, e ainda ter que ouvir que sou a chata — abusada — que perturbo o seu sono porque zumbindo e voando feito doida? É demais.

Apesar de limitada a um mesmo espaço, parece estar sempre criando novos circuitos de travessia. Quando pousa, um leve aceno e logo recomeça a dança. Quem sabe me ensina o segredo dos criativos voejos. A fórmula da fertilidade. Quem sabe é a inspiração de que preciso pra poder desempacar.

Bem sei que o que te inspiro é desprezo e a mim só devotas impaciência. Acho incrível que haja no mundo babacas feito você — podendo dormir à larga e comandar o viver — a varar a madrugada, brechando uma pobre mosca, ora tenha paciência.

Paciência bem que eu tenho. Mas como a de todo mundo a minha também acaba. Apanho o mata-moscas e começo a duelar com a pequena encrenqueira. Mas como a danada é ágil. E como me desafia. Já golpeei cada móvel. O ar meia dúzia de vezes. Umas três o próprio corpo.

Quando ele senta, cansado, já desistindo da luta, pousa bem na sua frente, sobre a folha de papel. Demora-se alguns segundos, e então, dando uma rabiçaca, alça voo porta afora. Não sem antes defecar, no texto em que ele escrevia, bem claro e definitivo, um nítido ponto final.

 

 

 

 

Silêncio Dágua

 

 

Um daqueles dias cinzentos, gelados, que não suportam ideia de flor. Àquela hora, a vida ainda não acordara.

Não havia para onde ir. Não precisava estar em canto nenhum. Por isso ali, parada, perdida no meio do nevoeiro. Sem vestígios do ontem nem vislumbres do amanhã, sem desejos. Apenas ali. Vigília.

Era de manhã, suspeitava. Atravessara a noite sem que nada acontecesse e agora, no meio da madrugada. Sem sustos nem ansiedades. Não tinha raiva ou tristeza. Quase nem pensamentos para que deles se ocupasse. De nada precisava. Sem passados a resgatar ou futuros a construir, boiava indiferente sobre os instantes que fluíam.

Se apurasse a vista um vulto, uma silhueta, mas para quê? Tudo tão o mesmo. O suspiro foi dissipando a neblina e já enxergava embora não desejasse. A paisagem, clareando, dava contornos. Ela voltava a ser. Não a primeira que a madrugada paria. Então já não podia mais não caminhar. Arrastando a si, assim, inventava um destino, uma missão.

Não contava com o sino da igreja tocando ao longe, chamando de volta para o meio do nevoeiro. Seguir caminhando? Se já estava onde queria? Mas ninguém se importava com isso, nem o padeiro à sua frente. Que coisa responder se o zumbido da mosca sobrevoando o pão doce faz mais sentido que aquele idioma humano, estranho, que mal compreendia?

— Um pão com manteiga, bem quentinho.

E se derramava sobre o pão, dourada, derretida, entranhando pelo miolo macio.

— Quer um café?

— Sim, quero.

Mas não queria. Nem o pão nem o café. Mesmo assim, mergulhou naquele pretume perfumado, aquecida por dentro. Mastigava o pão, bebia o café, agora apenas café e pão.

Do sol batendo no rosto brotava uma outra. Doce, agradecida. Pelo quê? Quem saberia? Ela mesma agora uma terceira que, se quisessem, era até de serventia. Cruzasse com algum conhecido, até puxava conversa não estivesse como estava, totalmente sem assunto. Mesmo assim, ficaria a ouvir, sorrir, abanar a cabeça como se assunto houvesse ou lhe interessasse. Prestativa, disponível, até porque nada fazia sentido.

Parou e ficou olhando o homem seguindo pelo caminho desaparecer na curva.

Foi então que a manhã estremeceu. Tudo agora era concreto: o sol, o sorriso, a flor. Tão concreto que doía. Lembrou de alguma coisa e o hoje emendou-se com o ontem e com o amanhã. Para que precisava de seja lá o que fosse? Não estava querendo nada. E o nada que desejava não saberia onde encontrar.

Tentou não pensar. Um luxo a que não podia mais se permitir.

Quem passasse a julgaria absorta, mas só olhava. Sem ver. Quando visse, aí sim seria obrigada a pensar. Pensou, irritada por perceber que já estava pensando. Riu-se, outra vez parte da paisagem.

Agora, já plena manhã, desejo no rosto em lufadas. Poder curtir sem limites o vôo matinal. Mas sempre chega a hora de pousar. Derrotada, cansada pelo que ainda não fizera, suspirou. Riu-se outra vez. À porta de casa lhe aguardava, todo sorrisos, o marido. Sendo assim, deixou-se abraçar e preparou o café.

Só era difícil no começo. Logo esquecia de si e passava a representar ela própria com perfeição. Pelo meio-dia é que às vezes, o almoço pronto, a casa limpa, lembrava sobressaltada. Diante do espelho do banheiro esquecia-se outra vez.

Recostava-se aliviada para tomar um café e não ver a televisão que, vingativamente, falava sozinha, não lhe dava a menor bola. Desligou o aparelho, a inquietação só fez mudar de lugar. Por que não sentia o coração bater?

Levantou, foi para a cozinha. Sentada à mesa, os pratos sujos empilhados dentro da pia. Formavam um tal arranjo que não conseguia se resolver a lavá-los.

Um pardal entrou pela janela e bicou um grãozinho de feijão dentro do prato.

A água escorrendo da torneira, tão bela. No ralo da pia sumindo o brega da empregada da vizinha, os latidos do cachorro para quem passava na rua, os gritos da criançada chegando da escola, brigando para ver quem era o primeiro a pegar o brinquedo. Um silêncio dágua.

O tempo parecia um imenso espaço. Ela crescia, crescia, até conter tudo. Tudo ficava do lado de fora.

Cresceu tanto que suspirou outra vez. E murchou.

A água. Perdeu a conta das vezes que encheu a esponja de detergente, fez espuma e enxaguou. Mas a tarde se foi e os pratos continuaram na pia, empilhados.

— Oi, querida, como foi seu dia?

— Ah, normal.

 

 

 

 

Pé Emendado na Cabeça

 

o coração maior, vai crescendo, o espírito voa, voa, voa, o bicho não pode ser, voa, voa, mergulha, por dentro, voa, vai para o canto, roendo o osso, voa,

 

Trocou de lugar hoje?

 

o bicho obediente não, Deus exista não, a roda, lugar de sacrifício, pé emendado na cabeça girando, engrandece a pessoa,

um milagre

 

Não tinha dito que gostava de sentar perto da janela.

 

o homem de branco, calculista, a pessoa fica sem chão, sem perna,

o mal tá feito

       a pessoa tem que dominar, o domínio, pelo espírito,

                                             em nome do pai do filho,

santo do pau oco,

no oco do mundo

o bicho tem força sobre o homem, a pessoa fica sem chão, a posição que devia ser, o homem calculista

tem de conversar com o bicho

 

Tem medo do bicho?

 

criar o bicho, ficar amigo, se a pessoa tem medo, acaba sendo dominada por ele,

tem de conversar

a metade do coração bicho

a outra homem

peguei o filhote de jacaré e botei no vidro, botei com água, pra não morrer

cabeça de homem, corpo de jacaré

atira, fere, ferido

matou a mulher, matou a criança

virou sapo pra pular do vidro e agarrou a criança

o homem de branco calculista, a pessoa fica sem chão

soltei a mão do sapo da pata da criança, ele fugiu fugiu por trás do palco

a evolução da harmonia serve para ver as coisas

 

Vê aquele pássaro lá fora da janela?

 

o bicho brinca com o pássaro já está melhor

evolução da harmonia

difícil colocar asas no bicho

se der força ao bicho capaz de nascer asas nele

difícil mas não impossível

o bicho sabe

 

Não era o homem quem devia saber?

 

o coração vai murchando o espírito voa voa voa não pode ser voa voa, voa

 

A gente se fala a semana que vem.

 

tinha um bicho branco grande bonito uma bacia de lavar roupa cheia de água eu matei o bicho matei o bicho branco matei com inseticida ficou bêbado foi mergulhando mergulhando morreu afogado uma pena o bicho morreu afogado tão bonito o bicho morreu

afogado

 

(imagens ©red nails)

 

Gerusa Leal nasceu em Recife, Pernambuco, mora em Olinda e é autora de contos e poemas publicados nas coletâneas Contos de Oficina, organizadas pelo escritor Raimundo Carrero, Pimenta rosa, O fim da velhice, O talento com as palavras, Panorâmica do conto em Pernambuco, Anais da FLIPORTO, Haikais poemínimos senryus, Recife Conta o São João (pela Fundação de Cultura Cidade do Recife) e em alguns blogues literários. Conquistou premiação nos concursos Luís Jardim, com o conto "Por um triz"; Prefeitura de Cordeiro – RJ, com "Anacy"; Maximiano Campos, com "Os brincos prateados"; Fliporto com o poema "Momento", e o prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras, com o livro de poemas versilêncios.