A polícia é mesmo sacana, pensava o mais jovem e mais afobado.

Os seis homens ajoelhados em frente ao batalhão do capitão Mariano estavam apavorados. Inclusive seu líder, Peninha, sujeito truculento e mal-educado, conhecido pelas agruras que fazia com um canivete no rosto de seus adversários. Conhecia a fama do capitão Mariano e seus homens, e sabia que, seja lá o que eles fossem fazer, seria horrível, lento e doloroso.

Estavam todos calados, num silêncio que parecia cada vez mais saboroso para os policiais e amargo para os seis, ali, indefesos e desarmados.

— Vocês sabem que eu odeio traficantes, não sabem? — perguntou Mariano sem alterar seu característico tom de voz grave.

Silêncio.

— Sabem ou não sabem que eu odeio traficantes? — sua passividade tornava a situação cada vez mais tensa e torturante.

Resolveram menear a cabeça afirmativamente, sem alternativas.

O capitão riu.

— Então, por que — e sua entonação foi crescendo, vagarosamente — vocês resolveram fazer justamente aquilo que eu mais odeio? Hã?

Peninha lembrou-se da história que corria à boca pequena, de que capitão Mariano havia perdido uma filha para um traficante boa-pinta, e a infeliz acabou alvejada e morta por um policial, durante uma invasão no morro.

— Toda a vez que Mariano mata ou mutila, faz como se matasse e mutilasse o assassino de sua filha.

Era o que diziam.

Estremeceu pensando nisso.

— Vocês devem estar se perguntando — continuou o robusto capitão, retomando o tom característico — por que razão eu ainda não arranquei os olhos de vocês. Por que estão aqui há mais de duas horas e até agora não sofreram nenhum arranhão.

Ele acendeu um charuto.

Nenhum dos policiais estava fardado.

— É porque não quero gastar meu tempo nem sujar minhas mãos com pulhas como vocês — pigarreou e prosseguiu — Peninha, levante-se!

O temerário traficante e dono do morro e assassino e grande valente levantou-se, parecendo um menininho assustado.

O capitão gracejou e todos os policiais o imitaram.

— Está com medo, bambambã?

Pediu que Peninha ficasse parado em frente à parede branca, encarando no rosto seus companheiros de crime.

Alessandro, o mais jovem e mais afobado, começou a chorar baixinho, já temendo o pior.

— Este maldito que vocês obedecem cegamente — continuou o capitão, se dirigindo agora aos cinco homens que permaneciam ajoelhados — é um assassino maldito que nunca deveria ter saído do saco escrotal de seu pai. Vagabundo, covarde, ladrão. Faltam-me insultos para ilustrar o que este verme representa para nossa sociedade. Por isso, darei uma última chance a vocês, que sempre serviram a este bosta, de se redimir perante Deus e perante os cidadãos, que já estão enjoados de cretinos como vocês.

Dois policiais se aproximaram trazendo cinco pistolas.

Os cinco ajoelhados e Peninha, em pé, até esqueceram do pânico para ficarem curiosos.

Ninguém estava entendendo nada.

— Vou dar uma destas armas para cada um de vocês. Todas estão carregadas com balas de festim, exceto uma. Eu quero que vocês apontem a arma para a cabeça de seu líder, e atirem.

— Ora, Mariano, deixe de ser ridículo — atreveu-se a responder Peninha, que já sabia que não havia saída — dê logo um tiro na nossa cabeça e vamos acabar com este circo. Por que essa besteirada de festim?

O capitão pareceu feliz com a indagação. Estava morrendo de vontade de levar seu espetáculo até o fim.

— Porque só você vai morrer, Peninha — falou, triunfante — Seus homens eu libertarei, logo em seguida. Até porque estes infelizes são todos crias suas, e sem você não passam de nada.

Mesmo sabendo que teriam uma chance de sair vivos dali, os cinco homens ajoelhados continuavam tremeliques. Perder seu líder já seria horrível, mas ter de matá-lo, com as próprias mãos, seria demais.

Porque não eram apenas soldados de Peninha. Eram amigos. Todos mais jovens que o líder, foram um por um catados na rua, sem eira nem beira, e criados por Peninha e sua mãe, a falecida Dona Alvará, como filhos. Gostavam do líder, não apenas por ser seu líder, mas por saberem que foi, graças a ele, que puderam ao menos ter o que comer antes de dormir.

Não queriam matar Peninha.

Na verdade, todos eles morreriam por Peninha.

E Capitão Mariano, como o bom torturador que era, sabia muito bem disso.

— E então? — perguntou aos homens que apenas observavam as pistolas a sua frente, sem sequer respirar. Atrás de cada um, policiais miravam para suas nucas.

Alessandro, o mais jovem e mais afobado, foi o primeiro a alcançar a arma. O cano gelado do fuzil em seu pescoço lhe embrulhara o estômago, e ele pensou que fosse desmaiar.

Foi seguido pelos outros. Peninha os encarou em súplica, primeiramente não acreditando que seriam capazes, para logo se dar conta de que iria morrer pelas mãos de seus homens.

— Cobras criadas — resmungou, pouco antes de Mariano gritar fogo.

Uma pequena nuvem de fumaça se formou e Peninha caiu morto. Seus cinco homens de confiança largaram as armas no chão, e começaram a chorar. O armamento foi recolhido e eles ficaram ali, desesperados, como se não se importassem em, a partir de agora, morrerem também.

Capitão Mariano os observava, jubiloso:

— Saibam que, no lugar de vocês, Peninha jamais teria atirado. Ele suportaria tudo, mas jamais atiraria em vocês. Conheci bem aquele pulha: não tinha escrúpulos com os outros, mas pelos seus era capaz de qualquer coisa. É lamentável que tenha se cercado de homens tão covardes.

Os infelizes choravam como crianças, sem conseguir sequer responder.

— Uma bala e cinco assassinos. Que coisa não?

— E por que você não nos mata também, seu filho de uma puta? — gritou, alterado, o mais jovem e mais afobado, mostrando sinceros sinais de que, ao contrário de antes, não estava mais com nenhum medo de morrer.

— Nem pensar. Quero vocês bem vivos, pensando todos os dias se a arma que empunharam contra seu protetor estava carregada por balas de festim ou de pólvora. Nunca saberão, e estarão sentenciados pela vida inteira pela própria consciência.

— E se a gente se matar? — insistiu, impetuoso, Alessandro.

— Duvido. Vocês são covardes demais para morrer.

E capitão Mariano, com seus homens sem farda, foi-se embora, deixando para trás cinco meninos órfãos a chorar.

A polícia é mesmo sacana.

 

 

 

 

 

 

 

Didomênico foi preso em uma quarta-feira muito quente.

Morava na casinha verde, no final da Rua 12, não fazia nem dois meses. Chegou sorridente e prestativo, mas logo deixou de ser visto com bons olhos pela vizinhança porque vendia drogas.

Sim, Didomênico vendia drogas. Pó, fumo e pedra. E todo dia era aquele entra e sai de sua casa, e toda noite era carro pra tudo quanto é lado. Chegava a criar engarrafamento na pequenina ruela.

Evidente que ninguém gostava. No entanto, além de caras feias, nada faziam contra o incômodo morador.

Nesta quarta-feira muito quente, dois carros da polícia estacionaram em frente à casa do infeliz. Nem tentou fugir, sabia que seria besteira. No máximo, tomaria um tiro nas fuças, e não estava interessado em tomar um tiro nas fuças.

Se entregou e se ferrou.

Todo mundo balançou a cabeça com desprezo, e conjeturaram sobre como a juventude andava perdida.

Passou um dia, dois e três.

O tempo havia esfriado, mas ainda dava para suar.

Então um caminhão de mudanças estacionou em frente à casinha verde e Clementino desceu desanimado.

Estava desempregado, mal-amado, endividado, e com uma ferida na coxa esquerda que não sarava nunca. Tinha apenas 28 anos, mas parecia ter 100. Com os poucos trocados que ganhava fazendo bicos aqui e ali, só dava mesmo para pagar o aluguel de "uma porcaria de casa como aquela, e ainda por cima pintada de verde!".

Era o que Clementino pensava.

Clementino odiava verde.

Na primeira noite, enquanto ainda desencaixotava algumas roupas, alguém bateu na janela.

— Ô mano, cadê o Didô?

— Didô?

— É mano, Didô, cadê ele? Preciso de umas parangas.

— Parangas?

— Deixa de rolo, mano, chama o Didô.

O rapaz acabou indo embora, chamando Clementino de otário filho-da-puta. E ele só entendeu quem havia sido Didô quando encontrou, embaixo de algumas vigas soltas da minúscula cozinha, 300 gramas de maconha e alguns papelotes de cocaína.

Não, Clementino não usava drogas. Nem tinha vontade. Seu único desejo era arrumar um dinheiro para voltar a andar pelas ruas sem encontrar seus credores, sempre tão alvoroçados.

Não demorou para decidir que venderia as tais parangas para aqueles manos baratinados.

Levantaria uma boa grana.

 

Depois de doze horas, Clementino estava com dinheiro suficiente para saldar dívidas que nem sequer havia feito.

Não parou mais.

A clientela era fiel e ele só precisava ficar sentado no sofá, contando dinheiro e esperando o dia passar.

Até a ferida na coxa curou.

Porém logo a vizinhança voltou a reclamar.

Não era possível que havia outro traficante morando na mesma casa verde! Passaram a olhar Clementino — que de cara não causou uma boa impressão — com olhos ainda mais desgostosos.

— O outro, pelo menos, era educado — fofocavam as senhorinhas na praça.

Em uma quarta-feira muito quente, dois carros da polícia estacionaram em frente à casa do infeliz. Nem tentou fugir, sabia que seria besteira. No máximo tomaria um tiro nas fuças, e não estava interessado em tomar um tiro nas fuças.

Se entregou e se ferrou.

Todo mundo balançou a cabeça com desprezo, e conjeturaram sobre como a juventude andava perdida.

 

Passou um dia, dois e três.

Manos bateram na janela atrás de Tino, mas não foram atendidos.

No quarto dia um caminhão de mudanças estacionou em frente à casinha verde e Roberval desceu desanimado.

O tempo havia esfriado, mas ainda dava para suar.

 

 

 

 

 

 

Estava tomando minha oitava cerveja, mas já estava bêbado desde a segunda. Beber com o estômago vazio faz mal, e eu sei, mas não tenho fome. Tenho sede, e de cerveja. Ainda mais depois que Ana me trocou por um sujeito que usa sapatos marrom-claros e gel no topete. Perdi completamente o apetite e o controle.

Larissa falava sem parar sobre como sua mãe era má, e seu namorado era um grosso, e seu emprego era uma porcaria, e sobre como era incompreendida, sofrida e maltratada.

Foi quando um estrondo lá fora emudeceu todo o bar — inclusive o Iggy Pop, que cantarolava na JukeBox.

Eu estava de costas para a porta, e num primeiro momento acreditei que alguém houvesse caído um tombo. Todos os dias os bêbados e os adolescentes bebem e lá pelas tantas caem tombos.

Só que não era um bêbado, nem era um tombo.

Alguma coisa havia despencado de algum apartamento, do prédio onde, no térreo, funcionava o bar. Só não alcançou o chão porque foi freado pelo telhado de lona, que cobria a porta de entrada do estabelecimento.

Ninguém estava sentado lá fora por causa da chuva. E demorou alguns segundos até que alguém resolvesse levantar e ir conferir o que, de fato, estava acontecendo. Mas bastou um se movimentar, após aquele compelido silêncio, para que todos se acotovelassem até a porta, desesperadamente curiosos.

— Que medo, meu! O que deve ser aquilo? — perguntava, aflita, Larissa, enquanto agarrava-se ao meu braço como se eu — logo eu — pudesse lhe proteger de alguma coisa.

— Devem ter jogado alguma coisa pela janela. Um sofá, talvez — respondi, sem prestar muita atenção no que estava falando.

— Por que alguém atiraria um sofá pela janela?

— Nunca se sabe.

Então alguém gritou:

— É uma mulher!

Uma mulher?

Levantamos alvoroçados. Por mais que atirar sofás pela janela não seja exatamente comum, por essa ninguém esperava: uma garota, com cerca de 20 e poucos anos, era retirada do toldo, agora parcialmente destruído.

— Ela está viva?

— Acho que sim, o toldo amorteceu a queda.

Abriram passagem, e o garçom já telefonava para a ambulância quando a infeliz recobrou os sentidos:

— O quê...?

Todo mundo parou em pé à sua volta, calado, esperando.

Ela olhou para os lados, e finalmente pareceu entender o que havia acontecido:

— Com certeza eu não morri e isso aqui não é o céu, certo?

— Pode ter certeza que não — respondeu alguém.

— Merda — ela socou o chão sem muita força — Tentar se matar e não conseguir é o auge do fracasso.

Ninguém disse nada, porque ninguém sabia o que dizer.

A ambulância estacionou espalhafatosa, e a moça levantou-se, aparentemente inteira:

— Mandem a ambulância de volta — falou, desagradada — Estou mais viva do que quando saltei.

O garçom explicou a situação para os médicos que, desconfiados, foram embora.

A garota, cujo nome nunca soube, caminhou até o balcão e pediu um conhaque: "Para a posteridade", disse alto e sarcasticamente, já parecendo embriagada.

Talvez já estivesse.

 

Aos poucos, as pessoas foram voltando aos seus lugares, e não demorou para a JukeBox voltar a tocar. Voltei a pensar em Ana e Larissa voltou a resmungar. O garçom voltou a servir as mesas, e os bêbados voltaram a encher os copos.

Alguns minutos depois, parecia que nada havia acontecido.

Como se nenhuma garota de 20 e poucos anos tivesse tentado se matar, feliz ou infelizmente sem sucesso.

Como se essa garota não estivesse agora mesmo sentada ali, há poucos metros, furiosa pelo suicídio frustrado e certamente por todas as frustrações da vida de alguém com 20 e poucos anos.

Como se ela não estivesse com o copo de conhaque intocado na sua frente, há tempos observando seu fundo, como se quisesse ali se afogar.

Talvez não estivesse.

Nunca se sabe.

 

 

 

 
 
 
 
 

(imagem ©adamastor m.)

 

 

Jana Lauxen (Carazinho/RS, 1985). Vive metendo o bedelho onde não foi chamada. De tanto exercer a arte de dar opiniões sem que ninguém tenha perguntado nada, virou editora do site 3ammagazine Brasil, ditadora absoluta do seu blogue, manda-chuva do E-Blogue.com e, em 2009, lança seu primeiro livro, Uma carta por Benjamin, pela Editora Multifoco.