*

 

a dança conta a vida

como se chovessem noites

 

o ritmo desperta a água

nos olhos navalhas

 

o movimento enroscado no deserto dos pássaros úmidos

 

deus

 

— em seus pesadelos

penetrava nas almas e arrancava os olhos

a poesia não cicatrizava —

 

acorda

 

       na última fila

 

ele

 

diante do espelho

 

a linguagem da queda

 

 

 

 

 

 

*

 

chuva desatenta

um arco-íris na voz dos pequenos lábios

peixe único no tremor do vento

pássaro mestre nos carvalhos do sol

sopro virgem no alimento das florestas

voz na revolta da terra

na criação do silêncio da esfinge

nos deslizes da morte

na pele de serpente

carícia úmida das casas em chamas

aquário de navio naufragado

água de fala adormecida

   onde se reencontra o eco da sua voz

o passeio da imagem no espelho

o incêndio de dois corpos

fecho os olhos          a janela se abre

 

 

 

 

 

 

*

 

silêncio

língua anterior ao tempo

língua na canção das águas

o vento abre os olhos

senta sobre o hálito do primeiro espelho

um dilúvio de pupilas

dá ao cego um cardume de cavalos sonâmbulos

 

 

 

 

 

 

*

 

o silêncio se insinua

dentro da língua do tempo

ninho de outro tempo

o corte na visita das sombras

rio margem de outro rio

margem de si mesmo

um espelho deságua no mar

 

embarca no fogo em forma de segredos

a tocar os ombros de narciso

 

um rosário de medos segura um copo de vozes antigas

uma serpente cega corre dentro de suas veias

uma estrela se faz pedra

 

narciso dentro da árvore do esquecimento

seus pés são as raízes da árvore

submerso no sonho de outro

 

o tempo funeral sem ossos

 

 

 

 

 

 

O VENTO

seca o sangue

& a serpente negra cresce

envolve os espinhos d'alma

 

tem a noite tatuada em seu ventre

 

tenta caminhar

 

nos seus olhos

duas borboletas carnívoras

devoram a paisagem

 

beija o silêncio

 

o chão

grita

corta uma pedra

 

seu corpo se abre

um labirinto de sal

 

o sol

 

amanhece amarrado

no canto do beija-flor

 

 

 

 

 

 

O CORPO permanece mudo

& nas mãos dois abismos

 

a palavra se alimenta nos altares

desertos de cruzes

 

selvagem porta de duros golpes

 

uma besta desnuda as montanhas

pássaros bailam no peito da morte

 

no quarto escuro

um poeta

 

 

 

 

 

 

*

 

o sol

balança a rede

sem medo de despertar

o punho da serpente

 

o vento treme n'água

 

a morte caminha nos seus olhos

mergulha & ressuscita tempestades

acordo no meio de seus tentáculos

 

— eles arrastam estrelas —

 

sinto arder os espelhos

desenho o silêncio

com as cores das suas entranhas

 

 

 

 

 

 

A CEGUEIRA DO SILÊNCIO

 

a lua penetra na pele

& o cálice do caos dança durante a tempestade

 

hora tranquila de suicídio

 

o ritmo do esquecimento semeia dentes no céu

se equilibra no anjo antigo

preso no vazio da cidade

 

para sua salvação ateia fogo nas asas

 

o horizonte dentro de um deus

além das ruas

o esqueleto do próprio nome

 

o relógio submerso nos olhos

 

 

 

 

 

 

*

 

uma pedra no ventre do rio

se desdobra em sombra úmida

o corpo rio de histórias

a fome na escritura do ventre primeiro

o caos abre a terra

& semeia sete dias

 

um esqueleto vazio

habita o verbo

seu nome bebe o rio

& a água sem margem se esgota

são seus esses lábios de fúria?

esses ossos na sombra que gira o sol?

 

 

 

 

 

 

*

 

o tempo é o mesmo

guarde esta imagem

distribua sonhos & punhais

 

os rios se contraem

minha sede um abismo vazio

as nuvens soletram a colheita das sombras

tocam flauta & meus olhos escutam

& boca & pernas & quadris & dialogo com eles

trazem o líquido em que adormeço

 

as águas me bebem

 

 

 

 

 

 

*

 

a lama não ofende a sua criação

sou a sombra

nas suas raízes sou a boca

sou a carne

deus dorme atrás de todas as portas

nos seus olhos

o filho morto antes de conhecer o sol

 

 

 

 

 

 

*

 

A criança ri de coração e asas.

O sol bebe o seu brincar

a saborear fruta de árvore ainda não nascida.

Aquela semente com aroma de infância

a andar na cegueira momentânea sem

qualquer sinal de culpa.

Parte do nada.

Semente de asas.

 

Cada passo, uma nova cor dentro de sua mochila.

A chamar de pedaços de sonhos,

a guardar as cores do mundo.

Pensar?

Ela quer dormir depois do horizonte e ser parte

de muitos sonhos.

 

E, ri de coração e asas: o horizonte é onde o sol se ajoelha.

Ela não consegue alcançar o horizonte, e permanece acordada.

Mesmo assim tem o dom de sonhar, de se imaginar noite

e se entregar ao refúgio dos sonhos.

 

O sol nas pontas dos seus dedos.

 

 

[Do livro Outros silêncios. São Paulo: Escrituras Editora, 2009]

 

 

 

 

(imagem @intimidateur)

 

 
 
 
 
 
José Geraldo Neres (Garça/SP, 1966). Poeta, ficcionista, roteirista. Publicou Outros silêncios, poesia, Prêmio Programa de Ação Cultural - ProAC - Concurso de Apoio a Projetos de Publicação de Livros no Estado de São Paulo, 2008 (São Paulo: Escrituras Editora, 2009) e Pássaros de papel (São Paulo: Projeto Dulcinéia Catadora, edição artesanal, 2007). Atua na  área  de  Gestão  Cultural,  como  produtor  cultural,  arte-educador,  ministrando  oficinas  literárias,  com ênfase  em  criação  literária  e  estímulo  à  leitura. Jurado da etapa inicial do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2009. Integrante do Grupo Gestor & Conselho Editorial do Ponto de Cultura Laboratório de Poéticas, e responsável pela seção Outra Margem da revista homônima.