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Nada mais condizente do que encerrar este "Ano Euclides da Cunha" com sua obra-mater, um dos  livros

"fundadores do Brasil". E anunciar para 2010 um filme que diz muito do grande escritor e pensador.

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"Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade": palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por outra frase que se tornou famosa: "le style c'est l'homme même"), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.

Os sertões estão fadados à passagem à posteridade. A obra-prima de Euclides da Cunha completa 107 anos, celebrada por muitos, muitíssimos motivos — em especial por sua espantosa  atualidade.

Já se falou e escreveu — vai-se falar e escrever sempre, ao que parece — de sua "linguagem difícil": o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira, com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902 (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado "o livro do Brasil", "a obra número 1". É bom lembrar que o "livro vingador" —  assim o próprio Euclides o batizou, ao lançá-lo — teve sua primeira edição de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados, custeada com recursos próprios do autor.

O que mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida em 3 idiomas, em mais de 60 países — em muitos deles foram feitas traduções sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é equivocado pensar que sobre Os sertões tudo já foi dito, lido, ouvido e escrito: muito há o que comentar, muito o que refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o que debater e meditar.

O que fez, e faz, Os sertões tão célebre? 

A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado — um anônimo engenheiro e pouco conhecido jornalista ter se transformado no maior escritor do país, à época — de outro, está sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos–chave de Os sertões relacionava-se com um longo trabalho de imposição de novas ideias e concepções e novos valores que vinham sendo gestados há pelo menos 30 anos — o cientificismo da "geração 1870"; 2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários mais importantes do país, José Veríssimo, Araripe Júnior e, depois, Sílvio Romero, além de Roquette-Pinto. Todos o enalteceram, insistindo em signos de raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e conteúdo  escapavam do comum, do conhecido. E os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos (e até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para o destino do país, como "a tese dos dois brasis", a necessidade de olhar para o interior, para "o Brasil real". O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era "uma bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas: literatura, história, geografia, geologia, política, biografia, matemática, engenharia".

O notável tremor provocado pelo lançamento da obra de Euclides emite seus ecos até hoje. Quase todos os críticos se entusiasmaram, mas por força de seu ofício, ficaram se perguntando: por quê? "É uma obra sem carteira de identidade. A natureza de seu ser, enquanto obra literária, permanece  indecifrada. É impressionante verificar como sua realidade ontológica persiste incapturável pela crítica literária", admitiu o escritor Franklin de Oliveira, que fez a si mesmo a pergunta: afinal, o que é Os sertões? É ficção, vaticinaram, entre outros, Tristão de Athayde e Afrânio Coutinho, que escreveu: "Trata-se de romance-poema-epopéia. Uma epopéia épica, narrativa heróica, da família de Guerra e paz, e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada".

Independentemente da produção editorial e do sucesso de público e de crítica, sua perpetuação, sustenta a antropóloga, pesquisadora e ensaísta Regina Abreu, está relacionada a demandas sociais. Ao ser transformada em monumento, símbolo nacional ou fenômeno cultural, uma grande obra literária extrapola suas características iniciais, passando a desempenhar funções sociais que ultrapassam seu valor essencialmente literário. "O coroamento de Os sertões teve o mesmo efeito de um tombamento, como ocorre com um bem arquitetônico", ela explica, "é como  'semióforos', dotados de um valor simbólico que ultrapassa o valor de uso; considerados preciosidades, estão investidos de valor sagrado. Tornam-se um culto".

Na consagração de Os sertões, menciona-se o aspecto "fundador" da obra. Em que consiste essa fundação? Em inovar, em renovar, em revolucionar... em tornar-se enfim um clássico, em meio a vetores, fatores e elementos histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país — não apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria, aliás, interpretado como um dos motivadores da "Rebelião de  Canudos".

Sobre o episódio de Canudos outros autores escreveram, à época: Afonso Arinos, que já era conhecido por focalizar o tema dos sertões e contar histórias de sertanejos, com Os jagunços: novela sertaneja; Manoel Benício, com O rei dos jagunços; até Arthur Azevedo criou uma peça, O jagunço, encenada no Rio de Janeiro em 1897; e Machado de Assis (ele mesmo), escreveu oito artigos entre 1894 e 1897 (22/7/94; 13/9/96; 06/12/96; 27/12/96; 31/01/97; 07/02/97; 14/02/97; 11/11/97) em sua coluna "A Semana", publicada no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. Mas Euclides, diferentemente da maior parte desses autores que escreveram sobre Canudos,  preferiu não editar suas anotações escritas no "calor da hora" dos acontecimentos, registradas no Diário de campanha e nos esboços do livro que a princípio intitulara Batalhas dos soldados de São Paulo, para amadurecê-las à base de seu arraigado cientificismo e à luz de novas leituras: o recolhimento em São José do Rio Preto deu-lhe as condições necessárias a esse amadurecimento. Assim, "antecipou um comportamento que seria tônica entre os cientistas sociais, inaugurando de certa forma o 'trabalho de campo' seguido da postura de distanciamento e de reflexão teórica sobre o material recolhido", segundo o crítico e ensaísta José Guilherme Merquior.

Por outro viés, o momento de consagração de Os sertões, no início do século XX, pode ser considerado o coroamento de uma invenção que já vinha se processando há anos, "a invenção do sertão". O sucesso da obra de Euclides veio  afirmar — e por ela foi ativada — a positivação da temática sertaneja, do interior, entranhada na cultura  literária brasileira. Os sertões, de resto, se insere numa tradição literária privilegiante do rural e incentivou, insuflou e consolidou uma vertente que iria gerar o ciclo do romance regionalista da década de 1930.

Com efeito, a literatura sertaneja constituída na virada do século já era tradição consolidada. O sertão era considerado o lugar da pureza e da autenticidade, o "lugar da nacionalidade autêntica". Antonio Candido, por exemplo, sentenciara que "o cânone da literatura brasileira é rural, e não urbano" e já sinalizara nessa direção ao constatar que "desde o início de nosso romance, [o regionalismo] constitui uma das vias de autodefinição da consciência local, com José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay". O "conto sertanejo" tratava o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso: "era a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense, a ingenuidade de Cornélio Pires, o pretencioso exotismo de Waldomiro Silveira ou de Coelho Neto, é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900 e 1930", registrava Antonio Candido, enfatizando que "a publicação de Os sertões contribuiu certamente para esse movimento de valorização do interior".

Só que subvertendo toda uma visão "pitoresca, sentimental e jocosa" do homem rural, rejeitando toda "banalidade, pretensioso exotismo, ingenuidade" — e mostrando o sertanejo como "antes de tudo um forte... a rocha viva de nossa nacionalidade" (vale  notar que essa  visão "dicotômica" do sertanejo, ora como um ingênuo, frágil ora como um forte , veio na década de 1910 a permear a interpretação de Monteiro Lobato com relação ao Jeca Tatu, desenhado sob três perfis distintos ao longo de sua "trajetória literária").

Euclides também se distinguiu dos demais escritores da "voga sertaneja" por vir apoiado em discurso científico, novidade na época, que deu ao livro "autoridade" superior (ao mesmo tempo "legitimadora" das demais obras sertanejas) e forneceu condições para que ideias e conceitos emitidos apenas como impressão ou opinião ganhassem estatuto de fatos "científicos". O sertão tornou-se via privilegiada para uma leitura do Brasil tanto do ponto de vista literário e artístico, quanto da tradição de estudos de etnografia e folclore: na esteira dessa via vieram Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, até mesmo Glauber Rocha no cinema e Mestre Vitalino na arte popular artesanal.

Para Antonio Candido a grande novidade foi justamente "o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira"; coloca Euclides  no lugar de "pai fundador da sociologia no Brasil", pois segundo ele "toda a onda [da voga sertaneja] vem quebrar em Os sertões, típico exemplo de fusão, livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, que assinala um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira, no caso as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior".

Não poderia deixar de ser, nem ser de outra forma : o contexto  apontava para isso. O cientificismo de Euclides de resto, comum a toda sua geração — era emprestado do "darwinismo social" (gerado pela publicação do livro A origem das espécies, de Charles Darwin em 1859), propugnante da tese de superioridade de raça, o conceito de raça ultrapassando o campo da biologia, se estendendo à cultura e à política, desvirtuando ou "adaptando" as teorias darwinistas no que  fosse mais conveniente, utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo; recorrendo a leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Ao lado da influência de Comte, o evolucionismo de Darwin e de Spencer dispôs Euclides a aceitar, com excessiva confiança, as "leis" sobre os caracteres morais das raças que tanto acabariam pesando na elaboração de Os sertões.

Walnice Nogueira Galvão, uma das principais estudiosas da obra, enfatiza o quanto Os sertões permanece atual, "desafiando o tempo". Para ela, "Os sertões narra a conversão de Euclides, que foi para lá levar a civilização e o progresso e, quando viu, estava levando o massacre dos pobres; o livro fez por uma insurreição popular o que nenhum outro foi capaz de fazer, no país: alçou-a a tragédia paradigmática, mediante o louvor à coragem do sertanejo". E dessa maneira, sentencia Walnice, "legou seu libelo à posteridade".

José Guilherme Merquior ressaltou "uma eletricidade abertamente monumentalizante" nas páginas de Os sertões, obra que para ele era antes de mais nada "uma retratação", no caso, uma dupla retratação: retratação do republicano que condenara dogmaticamente, sem procurar a princípio entender o fenômeno, o "obscurantismo reacionário dos jagunços de Antônio Conselheiro", e que em contato direto com a realidade, o ambiente, o hinterland, foi levado a reconhecer "o heroísmo anônimo das populações sertanejas". Seriam contradições, sustentava Merquior, que por mais que turvem a coerência da visão cientificista de Euclides, depõem em favor de sua honestidade intelectual, enriquecem em especial a significação sociológica e estética de sua saga sertaneja. "Os sertões é o clássico do ensaio de ciências humanas no Brasil", sentenciou Merquior, e numa época, enfatiza, em que os estudos sociológicos ainda conservavam muitas afinidades com a formação humanística. É exemplo notável de uma "intelectualização da literatura", num livro meio científico meio literário que abordou "alguns temas atualíssimos da pesquisa antropológica": um deles, da mística do advento do Reino de Deus por intermédio do messias Conselheiro — e aqui surge o tema do messianismo e do sebastianismo (dos mais polêmicos: no que tange ao caso de Canudos, guarde-se as devidas cautelas acerca das peculiaridades e acepções que "a mais famosa, dramática e peculiar manifestação messiânica brasileira, simbolizada pela figura de Antonio Conselheiro, afirmando ou negando o índice messiânico daquela comunidade). Ao reconhecer o entrosamento dos aspectos irracionais da personalidade do "profeta de Canudos" com as aspirações e carências de uma comunidade rústica, sufocada por flagelos naturais e indiferença das camadas dominantes, Euclides intuiu brilhantemente a natureza psicossocial da noção de loucura, dessa "zona mental onde se acotovelam gênios e degenerados"; sobre Antonio Conselheiro, cujo delírio místico traduzia o desespero de uma sociedade, Euclides afirmou que "foi para a História como poderia ter ido para o hospício". Vale dizer, o positivista Euclides suspeitava da existência de uma "sociologia do psiquismo", do mesmo modo que o darwinista social constatara a força titânica das "raças inferiores". Fulgurante pela transbordante energia poética de seu estilo narrativo, Os sertões sobrevive ad eternum também por seus inovadores vislumbres sociológicos — inéditos e "revolucionários" para a época, absolutamente válidos e instigantes hoje.

Berthold Zilly, professor no Instituto Latino-Americano da Freie Universität Berlin e o tradutor alemão de Os sertões, registra: "Euclides da Cunha chamou a atenção para os excluídos em obra fundadora da nacionalidade". E observa que "o escritor é mais clarividente do que o pensador. O ideólogo republicano e cientificista Euclides da Cunha cada vez mais cede lugar ao patriota e homem cheio de empatia e de compaixão, que se considera 'narrador sincer', representando a realidade através de um 'consórcio' da ciência e da arte". Zilly destaca que entre as suas visões inovadoras merece destaque a valorização da mestiçagem como processo fundamental para a formação da sociedade sertaneja e brasileira. "Na história do pensamento social do país, Euclides, com sua elevação do sertanejo a herói nacional, constitui importante elo de entre o viajante alemão Martius, que no seu tratado 'Como se deve escrever a história do Brasil', publicado em 1844, reinterpretou a mestiçagem como processo necessário e positivo para a constituição do Brasil como nação, e o sociólogo Gilberto Freyre, com seu ensaio clássico Casa-Grande e senzala".

Por outro lado, um certo viés de reticência oferece o ensaísta Roberto Ventura — morto prematuramente, quando preparava uma biografia de Euclides. Em texto ainda inédito, defende a tese de que "Euclides interpretou a Guerra de Canudos a partir de fontes orais, como os poemas populares e as profecias religiosas encontrados em papéis e cadernos nas ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem da autoria de Antonio Conselheiro, para criar, em Os sertões, um retrato sombrio do líder da comunidade".

Segundo Ventura, os sermões de Antonio Conselheiro — recolhidos em dois volumes manuscritos a que Euclides não teve acesso (as prédicas e discursos de  Conselheiro constam de um caderno manuscrito encontrado em Canudos, após o fim da luta, por João de Sousa Pondé, médico que participou da campanha como cirurgião da última e vencedora expedição militar; o escritor baiano Afrânio Peixoto, por sua vez, passou-os a Euclides da Cunha, quando Os sertões já estavam publicados. Euclides morreu poucos meses depois e não se sabe se teve tempo de folhear os manuscritos do Conselheiro) mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou do profeta milenarista: revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de forma articulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional, corrente na Igreja do século XIX.

Ventura apontava que a leitura dos textos de Antonio Conselheiro traz uma surpresa instigadora: têm um nível considerável de organização, com uma distribuição e uma sequência lógica dos assuntos; são gramaticalmente bem estruturados e  seu conteúdo religioso, longe de qualquer aberração, é equilibrado e bastante próximo do texto bíblico. No discurso "Sobre a República", por exemplo, estão expostas as ideias de Antonio Conselheiro em que "se pode observar um conteúdo mais político, embora sempre determinado pela religião. A premissa fundamental do texto é a de que a República deseja acabar com a religião e por isso é nociva ao povo sertanejo", informava Ventura. A República é criticada como "assunto que tem sido o assombro e o abalo dos fiéis". Vista como grande mal para o Brasil, sua implantação é debitada à "incredulidade do homem". Na ótica do Conselheiro, a deposição do monarca contrariava a vontade divina, pois "todo poder legítimo é emanação da Onipotência eterna de Deus". "Tratava-se, portanto, de uma questão de princípio sustentada por um dogma religioso que fundamentava sua posição contrária ao regime republicano. Para ele, combater a República era defender a religião", escreveu Ventura. Todavia, Euclides fixa a consciência de que os canudenses não representavam uma ameaça real à instituição republicana, pois não constituíam um movimento político organizado na tentativa de restaurar objetivamente a Monarquia, e assim procura mostrar que as ideias contrárias à República eram resultantes do atraso civilizatório, do estado de "ignorância" em que se encontrava a população sertaneja. Sob essa ótica, a luta necessária não seria feita através da força militar e dos canhões, mas sim da educação, das letras, das luzes, no processo de introdução dos sertanejos ao progresso, incorporando-os à nacionalidade. A partir disso, Euclides interpreta a intervenção militar como um erro histórico, como um "crime da nacionalidade" contra patrícios, de que seu livro se oferece como denúncia e libelo. Em sua interpretação, Euclides foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil cuja história seria movida pelo choque de etnias e culturas, e lançou seu brado de alerta: "estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos".

A atualidade e modernidade de Os sertões — mais: sua "eternidade" — está em ser entendido como verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e transformação do pensamento social sobre o Brasil. "Euclides da Cunha é o intelectual brasileiro que mais se interessou em conhecer mesmo o Brasil por dentro", vaticina o crítico e ensaísta Luiz Costa Lima. "Os sertões deixou um retrato, um cenário que não pode nunca ser esquecido", completa. Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o Brasil dentro de um momento histórico e  complexo processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado como o primeiro autor a escrever um "clássico" no Brasil, uma obra de peso, científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada em autores e livros estrangeiros. E ter um "clássico nacional" adquiria valor especial: igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.

A criação de Os sertões faz parte do rol dos "grandes momentos" da história do Brasil, e não é por acaso que tenha atravessado esses mais de 100 anos como obra- mater, "bíblia da nacionalidade" e seja fadada à posteridade.

Factualidade, por ser antes de tudo uma obra jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um jornalista, "o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito literário do jornalismo brasileiro", ao retratar um dos episódios mais marcantes da história republicana, registrar o conflito "elite x povo", "sertão x litoral", "monarquia x república" e, sobretudo, expor condições e situações sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é "uma epifania de brasilidade, uma fala do Brasil".

No lastro da posteridade, porque Os sertões, simbiose entre jornalismo, literatura, história, ensaísmo, ciência, geografia, sociologia, antropologia, geologia, é obra de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.

Perenidade, em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da nacionalidade, "a mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas", capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos fundadores, fontes da historiografia literária: Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos pioneiros grandes intérpretes do Brasil; um dos textos básicos de "história e construção do pensamento brasileiro".

Atualidade por "chamar a atenção para os excluídos", denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome, registrar "tendências conflituosas da sociedade brasileira", enfocar "um Brasil injusto e dividido", anotar a religiosidade, a crendice, e de certa forma o misticismo e o  messianismo — algo sempre latente no cenário político brasileiro (a eterna expectativa pelo "pai da Pátria", pelo "salvador da Pátria"); obra, enfim, de reflexão profunda sobre o Brasil.

E a atualidade da obra deve-se à inquietação que seu caráter de denúncia provoca, um livro que oferece a oportunidade de, a partir de Canudos, ter uma visão clara de questões de origens sociais.

Ler este livro é conhecer um pouco do Brasil e dos brasileiros. Os sertões diz muito de um drama da história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.

No lastro, vale conhecer um filme — já exibido em sessões especiais, inclusive na televisão, que deverá entrar em circuito nacional a partir de março de 2010 — à altura da grandiosidade de Os sertões e de  Euclides da Cunha.

 

 

 

 

Euclides, o filme

 

A paz é dourada

Direção: Noilton Nunes

Roteiro: Noilton Nunes

Produção: Imagine Filmes

Co-produção: Estudio 260 - Chediak Arte & Comunicação

Elenco: Breno Moroni,  Katja Alemann, Quim Negro, Evandro Teixeira, Dilma Lóes

Participação especial: Grande Otelo

Narração: Leila Richers e Ronaldo Rosas

 

A certa altura de A paz é dourada, o ator Breno Moroni dirige-se a uma plateia, declarando que o "o filme fez-se de partes, de colagens [sic], como uma colcha de retalhos".  As palavras de Moroni e a cena em si — o ator num depoimento que se dá "fora" do fluxo dramatúrgico do filme, que se refere ao filme, mas não faz parte de sua narrativa básica, central, não integra seu fulcro narrativo, o próprio processo de sua realização incorporado ao filme tornando-se um dos fios condutores da narrativa, aparecendo como um elemento do (conhecido) "making of", comum hoje em material cinematográfico, o que  revela também um dos  aspectos igualmente importantes do filme: sua modernidade enquanto linguagem e estilo. Modernidade e atualidade de A paz é dourada também no que absorve a tendência, ou prática, ou forma comum no cinema dos últimos tempos no Brasil — exemplos marcantes são os filmes de Eduardo Coutinho, Lucia Murat, Sandra Kogut, por exemplo — com a inserção de elementos documentários em filmes de ficção, e vice-versa. Só  que nesse filme  o documentário faz ficção, não como ilustração complementar, mas como uma representação artística que dá continuidade ao enredo dramatúrgico propriamente dito.

Documentário / ficção / documentário / ficção: os quadros e sequências se integram e interagem e exprimem a forma e o modo como A paz é dourada se desenrola na tela, como se mostra aos olhos do espectador em termos de estrutura e forma, de ritmo, de montagem, sobretudo. de  dinâmica. Dinâmica — eis um elemento-chave, termo ou atributo a caracterizar taxativamente a realização cinematográfica — instigante, provocadora, moderna, reflexiva — de Noilton Nunes. Dinâmico, ágil, fluente, intenso, moderno, o filme desenvolve-se e desdobra-se, integra-se e interage-se, em quadros, planos e sequências, até mesmo em filmes e subfilmes, filmes dentro do filme, em duas escalas ou níveis básicos:

§   uma dentro do próprio fluxo fílmico — a ficção e a não-ficção: a representação dramática de Euclides, sua vida, sua pessoa, a infância, a juventude, a militância republicana, o trabalho, as profissões de engenheiro e jornalista, as viagens, o pensamento, a obra; vis a vis com o documentário sobre o pano de fundo histórico, os fatos e figuras da época, os locais e cenários, as citações de trechos de seus escritos;

§   outra, paralela (mas convergente)  ao fluxo fílmico principal, de que a cena do depoimento de Breno Moroni é exemplo, de que fazem parte cenas de "teste de  elenco", palavras e discursos de membros da Academia Brasileira de Letras e de intelectuais, comentários e interpretações entre o tempo de Euclides e o Brasil contemporâneo, a reportagem e denúncia sobre o despejo da equipe e equipamentos do estúdio montado em armazém do porto do Rio.

Ambas as escalas, ou linhas narrativas, a agilizar o conjunto fílmico, a ilustrá-lo, a torná-lo irresistivelmente atraente a todo e qualquer tipo de espectador, que acompanha o filme como quem "lê" (o que só o cinema possibilita) ao mesmo tempo diversas histórias, a "leitura" de uma se dirigindo, ou desviando, para outra antes de terminar a anterior, num mosaico de construção cinematográfica — obra do talento do realizador — em que  o diapasão de dinâmica-reflexão se propõe a um diálogo, uma interlocução com o espectador como, de resto, toda obra de arte deve perseguir.

Dupla escala que também se manifesta em duas balizas, por assim dizer, da feitura do filme: concebido no ano do centenário de nascimento de Euclides (1966), informa Noilton, A paz é dourada deu–se à luz, ou veio à tela, no ano do centenário de morte do escritor (2009). Magnífica e rara integração: um filme que se propõe a tratar da existência de uma personalidade, tem sua "vida" balizada por dois marcos da própria vida do focalizado.

Mas o filme não se esgota aí. Especificamente, no foco sobre a trajetória de Euclides, os dois níveis narrativos transmutam-se em três, pois exibem olhares, ou facetas pouco divulgadas, retratadas (ao que se sabe nunca filmadas) e estudadas de Euclides: o quanto de seu pioneirismo, no Brasil, quanto a questões políticas, ecológicas e étnicas. Pioneirismo euclidiano, ao qual se integra e equipara o pioneirismo do próprio filme, primeiro a mostrar na tela essas vertentes do pensamento e da obra do escritor. Ao Euclides político, ecopolítico e etnopolítico, prenunciador e  antecipador  de muitos conceitos nessas searas, incorpora-se e acopla-se o filme também político, ecopolítico e etnopolítico de Noilton Nunes, da mesma forma, pioneiro nesse retrato. 

Colagens e "retalhos", representação e documentário, ficção fílmica e não-ficção fílmica, fulcro principal e "making of", filme e subfilmes, cor e p&b, passado e presente, dinâmica e reflexão, modernidade e pioneirismo — todos os elementos  convergem e se intertextualizam, todo o filme se constrói, se desdobra e se integra na exibição do perfil de um grande intelectual, empenhado na reflexão sobre o Brasil de seu tempo, ao mesmo tempo pioneiro e precursor no trato de questões absolutamente atuais. Que A paz é dourada capta, representa e reproduz, nas justas medida e dimensão — e com esse Euclides interage reflexivamente sobre o País em que vivemos e desejamos.

 

 

 

dezembro, 2009