O conjunto que aqui se apresenta abriga contos que se propõem atender a distintas regiões do País, no caso, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul — per se excepcionalmente relevantes centros gravitacionais de criação e produção literária (por extensão, cultural).

 

Ainda que alguns dos textos elencados sejam conhecidos, em maior ou menor grau, procurou-se escolher narrativas que, atendentes às respectivas gêneses temáticas, por outro lado, ostentam peculiaridades que os realçam de modo significativo, ou tenham sido publicados em momentos importantes  da trajetória literária de seus autores, ou ofereçam particularidades de forma, estilo, linguagem, modus narrativo. [Mauro Rosso]

 

 

 

 

 

 

Álvares de Azevedo, byroniano, trágico e fantástico

 

"Solfieri" constitui um dos capítulos de Noite na Taverna (1855) obra que reúne contos de teor trágico — a lembrar Edgard Allan Poe — em que o real e o fantástico fundem-se sob  uma atmosfera escurecida pela fumaça dos charutos, pelo spleen entorpecido dos bêbados, devassos e impenitentes, que reunidos em uma taverna lúgubre, desfiam  experiências existenciais em narrativas que vão de um personagem a outro, contando uma história que já viveu.

 

 

 

 

 

...Yet one kiss on your pale clay

And those lips once so warm — my heart! My heart.

Byron, Cain.

 

Sabeis-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia; no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença

 

Era em Roma. Uma noite, a lua ia bela como vai ela no verão por aquele céu morno. O fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de ***. As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas e a lua de sonolenta, se escondia no leito das nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher era como de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

 

Eu me encostei à aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

 

Depois, o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém: saiu. Eu segui-a.

 

A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu e a chuva caía às gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.

 

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim, ela parou; estávamos num campo.

 

Aqui, ali, além, eram cruzes que se erguiam entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

 

Não sei se adormeci: sei, apenas, que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo, a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.

 

O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...

 

Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela visão...

 

Uma noite e após uma orgia, eu deixara dormida no leito a bela condessa Barbora. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até à última gota do vinho do deleite...

 

Quando dei acordo de mim, estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o. Era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal-apertados... Era uma defunta! E aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida... Era o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja que, ignoro porque, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...

 

Sabeis a história de Maria Stuart degolada e do algoz, "do cadáver sem cabeça e do homem sem coração", como a conta Brantôme? — Foi uma idéia singular, a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim. Rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei-lhe em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito, abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia, contudo, alguma coisa de horrível. O leito de lajes, onde eu passara uma hora de embriaguez, me resfriava. Pude, a custo, soltar-me naquele aperto do peito dela... Nesse instante, ela acordou...

 

Nunca ouvistes falar de catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos e as faces banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!

 

A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar, desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário, como uma criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo. Abaixei-me e olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja, que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta...

 

Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.

 

— Que levas aí?

 

A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.

 

— É minha mulher, que vai desmaiada...

 

— Uma mulher? Mas, essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?

 

Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.

 

— É uma defunta.

 

Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida, ainda.

 

— Vede — disse eu.

 

O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...

 

— Boa-noite, moço. Podes seguir — disse ele.

 

Caminhei. Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...

 

Quando eu passei a porta, ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...

 

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos, meus companheiros, que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.

 

Fechei a moça no meu quarto e abri.

 

Meia hora depois eu os deixava na sala, bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem a minha ausência.

 

Quando entrei no quarto da moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso, como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la.

 

Dois dias e duas noites levou ela de febre, assim.

 

Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

 

À noite, saí. Fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.

 

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto e, com as mãos, cavei aí um túmulo. Tomei-a, então, pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda e fria, beijei-a e cobri-a, adormecida no sono eterno, com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele,

 

Um ano — noite a noite —, dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia, o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...

 

— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te disse que era uma virgem que dormia?

 

— E quem era essa mulher, Solfieri?

 

— Quem era? Seu nome?

 

— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?

 

Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

 

— Solfieri, não é um conto, isso tudo?

 

— Pelo inferno, que não! Por meu pai, que era conde e bandido! Por minha mãe que era a bela Messalina das ruas! Pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Ei-la!

 

Abriu a camisa e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

 

— Vedes-la? Murcha e seca, como o crânio dela.

 

 

 

 

Alcântara Machado, modernista popular  

 

"Apólogo brasileiro sem véu de alegoria", verdadeiramente antológico, uma das obras-primas da literatura brasileira, faz parte da coletânea Contos Avulsos, edição póstuma de 1961, e exprime com precisão o estilo característico de Alcântara Machado, ao mesmo tempo "espontâneo e forte", no dizer de Mario de Andrade, original, sobretudo, por estar vazado numa nova linguagem, que trouxe as expressões mais típicas e o modo de falar ítalo-paulistano. Sua escrita ágil e viva, composta de períodos curtos e rápidos, é exemplo bem acabado da prosa urbana límpida pregada pelo Modernismo.

 

 

 

 

 

O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.

 

Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e-mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:

 

— Vá pisar no inferno!

 

Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.

 

O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.

 

Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.

 

Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir.

 

Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz:

 

— O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?

 

O rapaz respondeu:

 

— Não sei: nós estamos no escuro.

 

— No escuro?

 

— É.

 

Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:

 

— Não tem luz?

 

Bocejo.

 

— Não tem.

 

Cuspada.

 

Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:

 

— O vagão está no escuro?

 

— Está.

 

De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:

 

— Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!

 

E a luz não foi feita. Continuou berrando:

 

— Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia.

 

Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:

 

— Que é que há?

 

Baiano velho trovejou:

 

— Não tem luz!

 

Vozes concordaram:

 

— Pois não tem mesmo.

 

*

 

Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não torna? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo.

 

Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:

 

— Ele é pobre como a gente.

 

Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.

 

— Foguetes também?

 

— Foguetes também.

 

— Be-le-za!

 

Mas João Virgulino observou:

 

— Isso custa dinheiro.

 

— Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:

 

— Dois quilos de lombo!

 

Cortou outro e disse:

 

— Quilo e meio de toicinho!

 

Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.

 

— Quantas reses, Zé Bento?

 

— Eu estou na quarta, Zé Bento!

 

Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.

 

— Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?

 

Baiano velho respondeu:

 

— É por causa das trevas!

 

O chefe do trem suplicava:

 

— Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.

 

João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.

 

— Aqui ainda tem uns três quilos de colchão-mole!

 

O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às Armas Cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão.

 

Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair, foi o chefe muito pálido.

 

*

 

Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada.

 

Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.

 

Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:

 

— Qual a causa verdadeira do motim?

 

O homem respondeu:

 

— A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.

 

O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:

 

— Quem encabeçou o movimento?

 

Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:

 

— Quem encabeçou o movimento foi um cego!

 

Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.