Apresentam-se depois os dois maiores, quer contistas quer cronistas, da chamada  Belle Époque: João do Rio (pseudônimo de  Paulo Barreto) e Lima Barreto — ambos, muito mais que outros de seu tempo, extremamente lúcidos e preocupados com o Brasil de então, recém-abrigado sob o regime republicano, cujas contradições, conflitos e decepções tanto alimentaram os escritos — sempre críticos (ao "País do Sol" ou a "Bruzundanga"; à República: aos políticos; à "falsa" modernização da cidade do Rio de Janeiro), apimentados por fartas doses de ironia, sátira e até mesmo sarcasmo; acidez, sim senhor, no caso de Lima — desses dois escritores, perfeitos retratistas tanto do País como em especial do homem brasileiro, mais do que do início do século XX, de todos os tempos.


Entre os dois estabeleceram-se elos significativos de "afinidades", a par de literário-filosóficas, digamos, alguns de ordem cronológica: ambos nasceram em 1881, Lima a 13 maio, João a 5 agosto; e morreram bem "próximos", João em 1921 (23 de junho) e Lima em 1922 (1º de novembro). E se o primeiro livro de Lima Barreto veio de uma edição portuguesa (vide adiante), o último de João do Rio também: Rosário da ilusão (Lisboa-Rio de Janeiro: Americana, 1921), que contém como primeiro conto este  antológico  "O homem da cabeça de papelão". E mais: no ano de falecimento de João do Rio, Lima Barreto apresentou sua candidatura — depois retirada por iniciativa própria — à Academia Brasileira de Letras na vaga de... João do Rio.  Sob tal égide, João do Rio deu-nos este jocoso — primorosa sátira política — "O homem de cabeça de papelão", e Lima Barreto legou-nos o curioso — singelo, para dizer o mínimo, exemplar de humor negro — "Carta de um defunto rico" [interessante e instigante, caro leitor, proceder a um exercício de comparação, de temática e enfoque, entre essa "narrativa póstuma" barretiana e aquela célebre, de mesmo estirpe,  machadiana...]. Em tempo: não há por que deixar de comemorar neste 2009 o centenário de publicação em livro — antes publicado em folhetins na revista Floreal, fundada por ele, de 25 outubro a 31 dezembro de 1907, quando a revista encerrou sua curta existência  — do primeiro romance barretiano, o inesquecível Recordações do escrivão Isaias Caminha (por A. M. Teixeira, Lisboa, dezembro 1909; a 2ª edição, já brasileira, veio a lume em 1917, a 3ª em 1943, a 4ª em 1949), e aliás, também 90 anos de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado em "edição primorosa" — para a época — por Monteiro Lobato, Edição da Revista do Brasil, em fevereiro 1919 — que recebeu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras em  1921, ano em que o livro ganhou segunda edição (ano também em que João do Rio morreu);  a 3ª edição veio em 1943, a 4ª em 1949 (Editora Mérito, Rio de Janeiro) — na qual este conto foi publicado originalmente (60 anos, portanto).
 [Mauro Rosso

 

 

 

 

 

No país que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

 

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarés fatigados, jornais, trêmueis, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda e um aborrecimento integral. Enfim, tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso ! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

 

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

 

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrário do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

 

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos, e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

 

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os trâmites legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

 

— Ouça! — bradava o tio. — Bacharel é o  princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

 

— Mas não quero ser nada disso.

 

— Então quer ser vagabundo?

 

— Quero trabalhar.

 

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

 

— Eu não acho.

 

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

 

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o  aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por quê? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

 

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez :

 

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

 

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

 

— A perigosa mania de seu filho é pôr em prática idéias que julga próprias.

 

— Prejudicou-lhe, sr. Praxedes?

 

— Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

 

No País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os  patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social, compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto não o tinham explorado.

 

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

 

— É doido, mas bom.

 

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

 

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal... ..

 

— É da tua má cabeça, meu filho.

 

— Qual?

 

— A tua cabeça não regula.

 

— Quem sabe?

 

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antonia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antonia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antonia foi condicional.

 

— Só caso se o senhor tomar juízo.

 

— Mas que chama você juízo?

 

— Ser como os mais.

 

— Então você gosta de mim?

 

— E por isso é que só caso depois.

 

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos.

 

Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

 

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

 

— Traz algum relógio?

 

— Trago a minha cabeça.

 

— Ah! Desarranjada?

 

— Dizem-no, pelo menos.

 

— Em todo o caso, há tempo?

 

— Desde que nasci.

 

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regularem bem...

 

Antenor atalhou:

 

— E o senhor fica com a minha cabeça?

 

— Se a deixar.

 

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que não posso andar sem cabeça...

 

— Claro. Mas, enquanto arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

 

— Regula?

 

— É de papelão! — explicou o honesto negociante...

 

Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua. Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava pôquer com o ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porém, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

 

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antonia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos espartaquistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo Presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o Presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

 

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

 

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

 

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

 

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

 

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

 

— Ah! — fez Antenor.

 

— Tem-se dado bem com a de papelão?

 

— Assim...

 

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

 

— Mas a minha cabeça?

 

— Vou buscá-la.

 

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

 

— Consertou-a?

 

— Não.

 

— Então, desarranjo grande?

 

O homem recuou.

 

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulara no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, e o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

 

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

 

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

 

— Não a coloca ?

 

— Não.

 

— V. Exa faz bem. Quem possui uma cabeça assim, não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

 

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

 

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma talvez prejudique.

 

— Qual! V. Exa terá a primeira cabeça.

 

Antenor ficou seco.

 

— Pode ser que V. Exa, profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. Exa com ela. Eu continuo com a de papelão.

 

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

 

 

 

 

 

 

"Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n° 7... , da 3ª quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.

 

Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas móbidos, purificar-me no ar superior —  bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.

 

Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.

 

Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado.

 

Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma ; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.

 

Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro.O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma ; é com as emanações de sua vitalidade, e com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.

 

É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si, etc., etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.

 

Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego.

 

De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.

 

Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos.

 

Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.

 

Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da super-existência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.

 

Os que não conseguem isso — ai deles!

 

Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra.

 

O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.

 

Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos.

 

É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode — é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.

 

O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, alem de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o  portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.

 

Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.

Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.

 

Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.

 

Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...

 

Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher ! Se não fizeres... ai de ti !

 

Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.

 

Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre...

 

Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.

 

Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó?

 

Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficara muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado um obra de caridade.

 

Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do

 

José Boaventura da Silva.

 

N.B. — Residência, segundo a Santa Casa: cemitério de São João Batista da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. — J.BS"

 

Posso garantir que transladei esta carta para aqui, sem omissão de uma vírgula.