Estamos no que se estabelece ser "o ano Euclides da Cunha", pelo fato de registrar o centenário de sua morte, a 15 de agosto de 1909. Mas a exemplo do que deve ser da mesma forma oficializado para todos os grandes nomes da literatura brasileira, "todo ano é ano de Euclides da Cunha". No mínimo, como justa reverência a um dos maiores intelectuais do País, um excepcional pensador a merecer olhar, estudo e difusão mais acurados e mais abrangentes, porquanto poucos como ele, em seu tempo, dedicaram-se tanto à reflexão e interpretação do Brasil, inclusive, sob diversas lentes da literária à política, da artística à sociológica em algumas delas manifestando-se um verdadeiro pioneiro, anunciador, prenunciador e antecipador de muitas questões hoje existentes e debatidas. [Mauro Rosso]

 

Euclides da Cunha — não um, mas muitos e múltiplos Euclides da Cunha: matemático, politécnico, engenheiro, geólogo e geógrafo autodidata e prático; positivista, cientificista, evolucionista, socialista; jornalista, articulista, ensaísta, escritor, poeta — sobretudo, pensador e intelectual; na obra, a literatura, a ciência, a história, a filosofia, e ainda a geografia, a geologia, a botânica, a engenharia, a técnica; propugnador do primado da ciência e das "elites dotadas", mas empenhado nas questões sociais; ardoroso republicano, desapontado, desiludido, cáustico crítico depois; Euclides dos primeiros tempos, Euclides de Canudos Euclides de São José do Rio Pardo/Vale do Paraíba, Euclides da Amazônia; Euclides político, Euclides ecopolítico, Euclides etnopolítico, Euclides geopolítico; Euclides simétrico, Euclides "geométrico". Acima de tudo, um brasileiro de primeiríssima linha na história cultural — também política, social — do País.

 

Construiu uma obra eclética em conteúdo — temática e variedade genética — e brilhante em forma, escrita e linguagem. Obra, em todas suas partes e no conjunto não só adiantada para seu tempo como dotada de impressionante atualidade. Aliava a riqueza e excelência de suas linguagem e escrita, seu vocabulário apurado, sua sintaxe precisa, à "riqueza" da observação, compreensão e perfeita interpretação dos elementos sociais e da condição humana do brasileiro, seus dramas e vicissitudes, aspirações e necessidades. A par das questões políticas, a questão social inscreve-se no pensamento euclidiano como um dos componentes, ou ingredientes, ou constituintes mais intensos e atuantes.

 

Os escritos euclidianos têm como pano de fundo os acontecimentos políticos, institucionais e sociais que se deram como um processo evolutivo: acreditava e sustentava ter sido a República um processo,  uma revolução ocorrida no decorrer do século XIX, não como um fato pontual ligado à Abolição ou à imediata queda do Império. Seus textos abrangem observações, reflexões, indagações, questionamentos, confrontações não apenas sobre esse processo evolutivo propriamente dito, mas também sobre a injunções étnicas, formação e características da mestiçagem, diferenças entre o homem do sertão e do litoral  e sobre a natureza e o meio ambiente e suas correlações com a política.

 

Uma "existência múltipla", digamos assim,  que tem política e filosoficamente suas  origem  e  base no binômio positivismo (então ideologia prevalente, sobretudo, nas camadas sociais mais elevadas e entre a intelectualidade) — cientificismo (emprestado do "darwinismo social", buscando encontrar leis de organização da sociedade brasileira ), cultuado a partir da Escola Militar e praticado na sua crença devota na República — e  detém seus corolários e conclusão  no socialismo — sob um processo de geração de outros níveis de consciência — ecopolítica e etnopolítica — a partir de Canudos e em seguida de  São José do Rio Pardo/Vale do Paraíba e da Amazônia, três basilares vetores, ou vivências, de inflexão em sua vida intelectual e profissional. Na trajetória, um primeiro Euclides ardoroso, doutrinário, propagandista, devotado à República e crente no futuro; depois,  desiludido,  desalentado, cético com o regime e os políticos; em seguida,  estarrecido com o que testemunhara em Canudos e profundamente reflexivo e revisionista; por fim, ao mesmo tempo extasiado e preocupado com a Amazônia, "um paraíso perdido", "deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo". Em todos eles, um Euclides lúcido, consciente, empenhado em formular rumos e destinos para o  País, um Euclides pioneiro e precursor no trato de questões absolutamente atuais.

 

 

A política em Euclides

 

A política desde cedo exerceu irresistível atração em Euclides. Sua biografia e sua bibliografia se confundem  com a própria história social e política brasileira do final do século XIX e início do século XX. Como ser político, preocupava-se e envolvia-se com tudo não apenas a ordem institucional, o regime político, mas com o homem brasileiro, o habitante do litoral, do interior, do sertão e da Amazônia, com o povo, com a história e geografia brasileiras e sul-americanas, com o Brasil como nação, com  a nacionalidade (cuja definição exata constituía, a seu ver, "nossa missão").

 

Euclides tratou de política sob as mais variadas formas — até mesmo na cogitação para candidatura a deputado constituinte de São Paulo, formulada por Julio Mesquita em 1890, e deputado federal por Minas Gerais, sugerida por Francisco Escobar em 1908 — e expressões, entre artigos publicados originalmente em jornais (A Província de S.Paulo — origem de O Estado de S.Paulo, onde publicou a maioria de seus artigos — Democracia, O Paiz, Jornal do Commercio, Revista Brasileira, O Rio Pardo, Kosmos, Revista Americana), textos e ensaios integrados às  coletâneas Contrastes e confrontos (1907), À margem da história (1909), Peru vs. Bolívia (1907) e — inseridos na Obra completa (1966) — em "Outros contrastes e confrontos", "Fragmentos e relíquias" — até na poesia — haja vista os poemas dedicados a Danton, Marat, Robespierre e Sain-Just, líderes jacobinos da Revolução Francesa — bem como em conferências, como  "Castro Alves e seu tempo" (1907), e discursos, em sua posse na Academia Brasileira de Letras (1906) e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1903), em cartas a amigos e correligionários, nas marcantes correspondências com o sogro Sólon Ribeiro, e especificamente quando de sua vivência (1898-1901) em São José do Rio Pardo, no programa do jornal O Proletário (1899) e o manifesto de 1º de maio de 1899.

 

O propagandismo republicano que engendrou e praticou — pelo menos até a metade da década de 1890 — era para Euclides antes e acima de tudo propagandismo científico, irrevogavelmente convicto da superioridade da ciência sobre todas as demais formas do saber. A par desse duplo propagandismo, propugnava pelos ideais de uma sociedade humanitária, justa,democrática, moderna e civilizada — seu projeto de "Pátria humana", como resultado possível e desejável do progresso material e científico engendrado no século XIX, a intensificar-se no século XX — sob uma evolução,sustentava ele, contínua, linear, conjugando o industrialismo com a edificação de uma sociedade progressista, justa: era convictamente entusiasta do "curso irresistível do movimento industrial", para ele a lídima consumação do liberalismo econômico, indissoluvelmente acoplado ao liberalismo social que sustentava com tanta ênfase — o liberalismo, advindo do positivismo e cientificismo, na verdade, muito mais evoluído. Para ele, somente o progresso, gerador do crescimento material, econômico, tecnológico, seria capaz de propiciar e garantir o equilíbrio e a justiça social.

 

Havia em Euclides, essencialmente, uma espécie de romantismo libertário, combustível de sua crença política na República — acima mesmo de interesses pessoais — ou no republicanismo, como o único meio de o Brasil vir a ser uma Nação desenvolvida e moderna e o único modelo de organização política e social verdadeiramente democrático, por eliminar privilégios e permitir ascensões e inclusões sociais. A  posterior desilusão com a República foi muito mais e antes de tudo o desalento com o fracasso do ideário de liberalismo social e a  certeza da não-consecução do projeto político-ideológico-científico. Talvez na sensibilização anos depois, com as teses socialistas visse nelas o  suporte ideológico, não o socialismo per se,que propiciasse a realização daquele ideário — em comum, o elo humanitário e o ideal de justiça social.

 

Passou da militância pela República à descrença com os rumos do novo regime — distanciamento gradativamente se revelando na sequência de artigos que publicou, entre 1890 e 1892  em O Estado de S.Paulo, em diversas cartas, a primeira ao pai, em junho de 1890 — expressando sua avaliação de que  o país estava entrando em um "desmoralizado regime da especulação, em que se pensava  em tudo, menos na Pátria" (muito de seu desalento vinha também do Encilhamento e sua "orgia especulativa, e a  ambição fiduciária dos sequiosos das rendas de novos cargos") — depois ao sogro, major (à época) Sólon Ribeiro, em 1895 — dizendo que "a situação é justamente de espertos, daí o grande desânimo que me atinge. (...) Às vezes creio que a nossa República atravessa os piores  dias" — a João Luís Alves, em maio 1897, poucos meses antes de seguir para Canudos — como uma espécie de testamento de pessimismo, lamentando "esse descalabro assustador, ante essa tristíssima ruinaria de ideais longamente acalentados (...), a República agora paraíso dos medíocres, nela o triunfo das mediocridades e preferência dos atributos inferiores". O que mais o inconformava era o desvirtuamento dos ideais republicanos — que tinha ao fundo e na essência, não custa reiterar, a frustração no que tange às proposições inerentes ao liberalismo social.

 

O idealismo republicano de Euclides diluiu-se ao longo dos anos subsequentes, e sua crítica aos desvios da política republicana (o rompimento definitivo veio por ocasião da Revolta da Armada, 1893, quando denunciou publicamente a violência da repressão ordenada por Floriano, os desmandos e as arbitrariedades do governo), radicalizou-se em Os sertões, em que a par de outros elementos que conhecemos, discutia a fundação da República por meio de um golpe militar e os problemas que tal origem trouxeram ao novo regime, criticava de forma aguda quer o militarismo dos primeiros governos, quer o liberalismo artificial de uma Constituição que as elites civis violentavam por meio de fraudes e manipulações eleitorais: o Estado, "tomado" e manipulado ostensivamente pelas oligarquias políticas e econômicas, o arrivismo financeiro desenfreado pelos especuladores, o empresariado e cafeicultores valendo-se acintosamente dos recursos públicos, deputados e senadores valendo-se da distribuição de cargos e sinecuras para familiares, amigos, protegidos e cabos eleitorais. O público e o privado integrados — quando justo a separação entre eles consistia num dos elementos da própria identidade do liberalismo.

 

Na essência, as críticas traziam implícita a revisão de algumas de suas próprias posições políticas, marcadas originariamente pela adesão a um conjunto de crenças científicas e filosóficas materializadas no movimento republicano, mas que foram paulatinamente, a par dos desmandos praticados no  novo regime, se incorporando a um processo de  conhecimento e consciência inerentes a sua vivência em Canudos — testemunha ocular e física dos cenários de miséria, opressão, violência, injustiça social — e  depois em São José do Rio Pardo, quando e onde entrou em contato com um movimento ideológico — de resto já grassando em partes do mundo e entre muitos intelectuais brasileiros — então emergente  na cidade.

 

Em São José do Rio Pardo, enquanto escrevia Os sertões, refletia sobre a imperiosidade de "refundar a República", corrompida pelo militarismo, o arrivismo financeiro-monetário, o falso liberalismo em que as elites civis cometiam toda sorte de fraude eleitoral e corrupção, e praticavam a conciliação. Mergulhado num processo de revisionismo profundo — reformulador, inclusive, de uma teoria sobre o Brasil, construída a partir do positivismo-cientificismo-evolucionismo — descartava a interpretação corrente de uma conspiração política anti-republicana e pró-monarquia, acusava o Exército, a Igreja e o governo pela destruição de Canudos, mencionando também o massacre de prisioneiros sobre o que antes mantivera silêncio e omissão.

 

Não pode deixar de se considerar, dentro do espectro ideológico euclidiano, a questão do socialismo, assumido explicitamente a partir de 1899 — mas convém  saber que já por volta de 1894 entregara-se com fervor aos estudos brasileiros e interesse pelas ideologias renovadoras que já encontravam eco no Brasil republicano, entre políticos, intelectuais e literatos. Mas o socialismo abraçado e assumido por ele sem qualquer teor, digamos, dialético: "Nada de idealizações; fatos e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestrada em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidade de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para o alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade".

 

Euclides efetivamente se achegou ao grupo socialista de São José do Rio Pardo — é certo, por exemplo, que elaborou junto com o amigo Francisco Escobar o programa de O Proletário, órgão do "Clube Internacional Os Filhos do Trabalho", mas uma plêiade de opiniões conflitantes cercam sua atuação e participação como militante (as interpretações controversas vão de Francisco Venâncio Filho — que assevera ter Euclides fundado na cidade o partido socialista, a 1º de maio de 1901 —, o biógrafo Eloy Pontes — que coloca Euclides à frente de comícios socialistas —, o escritor Silvio Rabelo e o jornalista e político Freitas Nobre — que afiançam ter Euclides redigido o manifesto de fundação do partido socialista riopretano, o escritor e político Abguar Bastos — que sustenta até ter Euclides fundado com Francisco Escobar e Paschoal Artese  o "Clube Internacional Os Filhos do Trabalho" e reitera sua autoria no manifesto de 1º de maio de 1899 —, o poeta e escritor Menotti del Picchia — que retrata "(...)  um cortejo encabeçado por estandartes de corporações de artesãos, grupos de proletários cantando hinos,bandas de música e homens de prol à testa da parada,em que se destaca um orador falando àquele grupo de trabalhadores, Euclides da Cunha , que já no manifesto de primeiro de maio de 1901 marca o encontro de seu autor com idéias que estão imanentes em toda sua obra (...)" — até, no lado contrário, o promotor Aleixo José Irmão, rigorosamente o único que, embora com argumentos falhos e artificiais, contesta em Euclides a condição de socialista militante, mas não consegue desmentir a de simpatizante das idéias socialistas...).

 

 

A ecopolítica em Euclides

 

De olhar voltado prioritariamente para o interior do país, Euclides da Cunha foi rigorosamente o primeiro intelectual brasileiro a cultivar e externar preocupações com o meio ambiente, inclusive fazendo da ecologia um tema político, de  propostas de ação política. Como não poderia mesmo deixar de ser, face à sua formação consolidada, é sob o prisma e lentes do positivismo que registra, observa e critica os embates entre uma civilização, sempre improvisada, com a natureza do país: críticas essencialmente liberais, que essencialmente se constituem num projeto de sem pretensões de mudar o mundo, ou mesmo os governantes — mas sobretudo lançando as bases, inéditas no país, avançadas ao extremo em seu tempo e antecipadoras dos conceito e elementos do desenvolvimento sustentável, na permanente preocupação euclidiana no conciliar progresso com a preservação ambiental.

 

Ainda com 18 anos, lavrava um protesto em seu primeiro trabalho no jornal O Democrata, de 4 abril 1884 — pequeno jornal dos alunos do Colégio Aquino, onde estudava desde 1883, no qual inclusive foi aluno de Benjamin Constant, professor de matemática, que iria em 1886 reencontrar na Escola Militar e nele insuflar os ardores republicanos. No artigo,  externando o interesse e apreço pela natureza que estaria presente em toda sua obra,ao lado de descrever em viagem de bonde para o colégio as maravilhas do cenário natural que descortinava,as matas e florestas da cidade do Rio de Janeiro, criticava o progresso representado pela estrada de ferro que degradava a natureza. "(...) Ah! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador, mas clamarei sempre e sempre: o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem B grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa (...) Tudo isto me revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a flor".

 

Depois, nos textos "Fazedores de Desertos", publicado originalmente em 1901, em O Estado de S.Paulo, e "Entre as Ruínas", em O Paiz, 1904 cuja primeira versão, sob o título "Viajando", é de 1903, em O Estado de S.Paulo suas críticas não se dirigem particularmente a ninguém, muito menos a um governo, e sim "credita" ao próprio avanço humano o efeito maléfico na vegetação, nos recursos hídricos, nos solos, no clima e por extensão, segundo ele, na própria civilização, provocado pelas  queimadas provocadas por uma agricultura ainda com métodos herdados do período colonial (clamor que Monteiro Lobato também expressaria anos mais tarde, quase que com as mesmas palavras e discurso da mesma forma que o faria quanto às "cidades mortas", a que Euclides já se referia, precursoramente, ao relatar a decadência da região do Vale do Paraíba, isso no início da década de 1900). Como na maioria de seus textos sobre o tema, Euclides confronta riquezas passadas e farturas naturais com uma realidade arruinada "temos sido um agente geológico nefasto e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia" explica, algo didaticamente, o processo de agricultura itinerante, que ia tornando a terra cada vez mais desabrigada e pobre, e evoca a história ao atribuir a devastação florestal, como um ciclo desde os primórdios, ao indígena brasileiro, continuada pelo colonizador, feito um "terrível fazedor de desertos", fosse  o garimpeiro, "atacando a terra nas explorações mineiras a céu aberto, esterilizando-a com o lastro das grupiaras, retalhando-a a pontaços de aluvião" ou lavrador, "eliminando, a partir do mau ensinamento aborígene [a queimada] as grandes extensões de matas e florestas e aviltando o clima", tornados ambos herdeiros de um modelo nefasto de uso da terra, agravando-o a ponto de esterilizar sua fertilidade e tornar a paisagem uma ruína só, de natureza e de pessoas, inclusive, desencadeando fenômenos climáticos e geológicos na formação de desertos e do regime das secas as quais dissecaria como ninguém ao dedicar-se ao sertão. Euclides contestava um modelo "peculiar e oportunista" de desenvolvimento, então incipiente com a implementação da República, que "povoa despovoando", "não multiplica as energias nacionais, desloca-as", fazendo "avançamentos que não são um progresso", indo "ao acaso, nesse seguir o sulco das derribadas, deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas cidades decaídas circundadas de fazendas velhas".

 

Escritor avançado para o Brasil dos 1890/1900, fortalecido pelo espírito científico, enriquecido pela cultura sociológica, esmerado pela especialização geográfica e geológica, Euclides viu os sertões com um olhar mais amplo, abrangente e profundo que o de um geógrafo puro, mais do que de um simples geólogo, muito mais que de qualquer antropólogo. Desenha, disseca e "interpreta" pioneiramente o cenário dos sertões, descrevendo com rigorosa exatidão a formação, estrutura e nuances geológicas e climáticas da região a "terra ignota". A partir daí, compõe sua reflexão sobre a seca, a incapacidade geral do país em resolver o problema evocando exemplos bem-sucedidos de soluções corretoras dos efeitos das secas adotada por povos ("a exploração científica da terra, coisa vulgaríssima hoje em todos os países, é uma preliminar obrigatória do nosso progresso"). Em diversos escritos, propõe soluções técnicas, dessa ordem, para a questão no Brasil, afastando-se em parte do determinismo geográfico original de sua formação: se é capaz de criar desertos, o homem poderia também extingui-los e a utilização política da seca, que  tem servido para "a retórica de congressos e conferências, para projetos mirabolantes, para justificar uma burocracia voraz, perfeitamente digna de salvar o Nordeste nas esquinas da Avenida. [Assim] O Brasil não resolve seu grande problema, que não é apenas administrativo porque é igualmente moral, social e político".

 

E ninguém antes de Euclides dedicou-se com tanta ênfase, profundidade e esforço inclusive, vivenciando graves vicissitudes e em especial pioneirismo, à  Amazônia. Foi o primeiro dos literatos brasileiros a expressar o efetivo intento de conhecê-la in loco e entre todos a, de um lado, retratar e revelar, dramaticamente, aquele "paraíso perdido" um marcante trecho, de seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 18 dezembro 1906, o atesta de outro  despertar, em textos "reivindicantes, vingadores", o conhecimento e a discussão dos gritantes problemas que afligiam (afligem) a região segundo ele, um outro Brasil, aliás um novo Brasil .

 

Sob o escopo de seu projeto de integração nacional, a Amazônia com a exuberância de seus espaços e riquezas naturais ainda inexplorada, seria o destino inevitável dos contingentes saídos de outras regiões por adversidades climáticas, geológicas, geográficas e, especialmente, sociais e econômicas, constituindo-se na "mais dilatada diretriz de expansão de nosso território", para seus olhos embevecidos o "deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo" daí vindo a ser um dia  objeto de cobiça estrangeira, vítima do expansionismo e ambições territoriais das potências mundiais ("a expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento... e a conquista dos povos é uma simples variante da conquista de mercados"), o que exigia, sustentava Euclides, imediata e eficaz ação por parte das autoridades e do Poder Público para completas defesa e integração da Amazônia — um trecho de carta a Francisco Escobar, em 13 junho 1906: "(...) Sei que os litígios em andamento são gravíssimos e capazes das maiores e mais dolorosas surpresas para nós. Imagina um caso único: um quinto da Amazônia opulentíssima, que, de uma hora para outra, por um desgarrão de estadista canhestro, ou capricho de um árbitro, vá passando para as mãos dos peruanos. Não sei se o futuro presidente cogitou dessas coisas (...)". Em suma, atestado da atualidade de muitas de suas reflexões, prevendo o debate que iria surgir no mundo mais tarde, pleiteava uma civilização brasileira que confrontasse os interesse globais, pois temia que "a Amazônia, mais cedo ou mais tarde se destacará do Brasil, como se destaca um mundo de uma nebulosa".

 

Na Amazônia, por Euclides, a ecopolítica recebe novas lentes: o olhar euclidiano sobre a região e seu "destino no Brasil e no mundo" envereda e lança as primeiras luzes para a geopolítica, rigorosamente nos moldes, diga-se, dos mais atuais e importantes debates.

 

 

A etnopolítica em Euclides

 

A etnia brasileira foi um dos temas que mais mobilizaram Euclides para a formulação de reflexões sobre a nacionalidade, per se um tópico já excepcionalmente preponderante em seu arcabouço intelectual no que, entre outra considerações e  proposições, preconizava "a definição exata e o domínio franco (...) da nossa nacionalidade; aí está a nossa verdadeira missão".

 

A princípio, lastreado nas  teorias do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz ( um dos pilares filosóficos, ao lado de Spencer, do pensamento evolucionista de Euclides)  não julgava possível um único tipo étnico no Brasil "não temos unidade de raça, não a teremos nunca; até porque nenhum país a tem igualmente, por toda parte os cruzamentos sucessivos impediram a conservação do tipo primitivo" enquanto que  "(...) a  mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial (...)" sendo "(...) a mestiçagem extremada um retrocesso (...)", uma vez que "(...) não se compreende que após divergirem extremamente através de largos períodos, entre os quais a história é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um longo trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou se destroem, segundo os caracteres positivos e negativos em presença (...)".

 

Posteriormente, sob o revisionismo pungente que elaborou, passou a ter o sertanejo segundo ele, um tipo étnico-social diferenciado como o único elemento de esperança de constituir no Brasil uma população homogênea, porquanto "as vicissitudes históricas o libertaram, na fase  delicadíssima de sua formação, das exigências desproporcionais de uma cultura de empréstimo". Revisionismo que, de resto, à reformulação das concepções étnicas euclidianas pós-Canudos se acresceria a revisão advinda da vivência amazônica, em que a presença do homem e sua relação com o meio era afirmada pela mestiçagem étnica, o mestiço amazônico não mais visto como desenhara o sertanejo nordestino biologicamente incapaz, assim tido antes de Canudos, descrito no Diário de uma expedição, não aquele sertanejo depois exposto em Os sertões o Euclides da Amazônia mais "evoluído" ainda com relação ao Euclides dos sertões, que, por sua vez, já se diferenciava do Euclides antes de Canudos.

 

A rigor, as concepções e considerações étnicas de Euclides acoplam-se, interagem e se intertextualizam com seus conceitos de civilização e o "movimento civilizador" que preconizava ou processo civilizatório para o qual a República teria sido um decisivo passo. Desde seus primeiros textos, com efeito, o termo e o conceito de  "civilização" aparecem uma força histórica e como uma lei natural, até porque inerentes ao ideário positivista e evolucionista, a civilização como o modelo de desenvolvimento para a humanidade.: "a civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; (...) o seu curso, como está, é fatal, inexorável". Via-a  como instrumento de luta intelectual pela construção de uma identidade nacional, que se queria livre de fórmulas invasoras: "Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos".

 

O certo é que permeando e perpassando todas as fases e estágios de sua vida e todas as linhas e entrelinhas de seus escritos, depoimentos e palavras até mesmo aqueles eixos e figuras geométricas mais do que matemático, engenheiro, geólogo, geógrafo, historiador, jornalista, articulista, ensaísta, em especial, um pioneiro no que tange a questões ligadas à ecopolítica, e à etnopolítica no Brasil, prevalece o Euclides pensador, um intelectual  empenhado, permanentemente, na reflexão e formulação de propostas para fazer do Brasil uma nação moderna e afinada com a civilização.

 

 

 

  

 

Ondas

 

Correi, rolai, correi — ondas sonoras

Que à luz primeira, dum futuro incerto,

Erguestes-vos assim — trêmulas, canoras,

Sobre o meu peito, um pélago deserto!

Correi... rolai — que, audaz, por entre a treva

Do desânimo atroz — enorme e densa —

Minh'alma um raio arroja e altiva eleva

Uma senda de luz que diz-se — Crença!

Ide pois — não importa que ilusória

Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...

— Escalai o penhasco ásp'ro da Glória...

Rolai, rolai — às plagas do Porvir!

 

[1883]

 

 

 

 

 

Tristeza

 

Ai! quanta vez — pendida a fronte fria

— Coberta cedo do cismar p'los rastros —

Deixo minh'alma, na asa da poesia,

Erguer-se ardente em divinal magia

À luminosa solidão dos astros!...

Infeliz mártir de fatais amores

Se ergue — sublime — em colossal anseio,

Do alto infinito aos siderais fulgores

E vai chorar de terra atroz as dores

Lá das estrelas no rosado seio!

 

É nessa hora, companheiro, bela,

Que ela a tremer — no seio da soedade

— Fugindo à noite que a meu seio gela —

Bebe uma estrofe ardente em cada estrela,

Soluça em cada estrela uma saudade...

 

É nessa hora, a deslizar, cansado,

Preso nas sombras de um presente escuro

E sem sequer um riso em lábio amado —

Que eu choro — triste — os risos do passado,

Que eu adivinho os prantos do futuro!...

 

[1883]

 

 

 

 

 

Eu quero

 

Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos

Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas

Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos

Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas...

 

Eu quero aí viver o meu viver funéreo,

Eu quero aí chorar os tristes prantos meus...

E envolto o coração nas sombras do mistério,

Sentir minh'alma erguer-se entre a floresta de Deus!

 

Eu quero, da ingazeira erguida aos galhos úmidos,

Ouvir os cantos virgens da agreste patativa...

Da natureza eu quero, nos grandes seios túmidos,

Beber a Calma, o Bem, a Crença ardente a altiva.

 

Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas

Das asp'ras cachoeiras que irrompem do sertão...

E a minh'alma, cansada ao peso atroz das mágoas,

Silente adormecer no colo da so'idão...

 

 [1883]

 

 

 

 

 

Rebate (aos padres)

 

"Sonnez! sonnez toujours, clairons de la pensée".

                                                                          V. Hugo

 

Ó pálidos heróis! ó pálidos atletas

Que co'a razão sondais a profundez dos Céus

Enquanto do existir no vasto Saara enorme

Embalde procurais essa miragem Deus!...

 

A postos!... É chegado o dia do combate...

As frontes levantai do seio das so'idões _

E as nossas armas vede os cantos e as idéias,

E vede os arsenais cérebros e corações.

 

De pé... a hora soa... esplêndida a Ciência

Com esse elo a idéia as mentes prende à luz

E ateia já, fatal, a rubra lavareda

Que vai de pé heróis! queimar a vossa Cruz...

 

Vos pesa sobre a fronte um passado de sangue.

A vossa veste negra a muit'alma envolveu!

E tendes que pagar ah! dívidas tremendas!

Ao mundo: João Huss e à Ciência: Galileu.

 

Vós sois demais na terra!... e pesa, pesa muito

O lívido bordel das almas, das razões,

Sobre o dorso do globo sabeis é o Vaticano,

Do qual a sombra faz a noite das nações...

 

Depois... o século expira e... padres, precisamos

Da ciência c'o archote intérmino, fatal

A vós incendiar aos báculos e às mitras,

A fim de iluminar-lhe o grande funeral!

 

Já é, já vai mui longa a vossa fria noite,

Que em frente à Consciência, soubestes, vis, tecer...

Oh treva colossal partir-te-á a luz...

Oh noite, arreda-te ante o novo alvorecer...

 

Oh vós que a flor da Crença esquálidos regais

Co'as lágrimas cruéis dos mártires letais

Vós, que tentais abrir um santuário a cruz,

Da multidão no seio a golpe de punhais...

 

O passado trazeis de rastro a vossos pés!

Pois bem vai-se mudar o gemer em rugir _

E a lágrima em lava!... ó pálidos heróis,

De pé! que conquistar-vos vamos o porvir!...

 

[1883]

 

 

 

 

 

Danton

 

Parece-me que o vejo iluminado.

Erguendo delirante a grande fronte

— De um povo inteiro o fúlgido horizonte

Cheio de luz, de idéias constelado!

De seu crânio vulcão — a rubra lava

Foi que gerou essa sublime aurora

— Noventa e três — e a levantou sonora

Na fronte audaz da populaça brava!

Olhando para a história — um século e a lente

Que mostra-me o seu crânio resplandente

Do passado através o véu profundo...

Há muito que tombou, mas inquebrável

De sua voz o eco formidável

Estruge ainda na razão do mundo!

 

[1883]

 

 

 

 

 

Marat

 

Foi a alma cruel das barricadas!

Misto e luz e lama!... se ele ria,

As púrpuras gelavam-se e rangia

Mais de um trono, se dava gargalhadas!...

Fanático da luz... porém seguia

 

Do crime as torvas, lívidas pisadas.

Armava, à noite, aos corações ciladas,

Batia o despotismo à luz do dia.

No seu cérebro tremente negrejavam

Os planos mais cruéis e cintilavam

As idéias mais bravas e brilhantes.

Há muito que um punhal gelou-lhe o seio...

Passou... deixou na história um rastro cheio

De lágrimas e luzes ofuscantes.

 

[1883]

 

 

 

 

 

Robespierre

 

Alma inquebrável — bravo sonhador

De um fim brilhante, de um poder ingente,

De seu cérebro audaz, a luz ardente

É que gerava a treva do Terror!

Embuçado num lívido fulgor

Su'alma colossal, cruel, potente,

Rompe as idades, lúgubre, tremente,

Cheia de glórias, maldições e dor!

Há muito que, soberba, ess'alma ardida

Afogou-se cruenta e destemida

— Num dilúvio de luz: Noventa e três...

Há muito já que emudeceu na história

Mas ainda hoje a sua atroz memória

É o pesado mais cruel dos reis!...

 

[1883]

 

 

 

 

 

Saint-Just

 

"Un discours de Saint-Just donnait tout

de suite un caractère terrible au débat...".

Raffy: Procès de Louis XVI

 

Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,

— Ao forte impulso das paixões audazes —

Ardente o lábio de terríveis frases

E a luz do gênio em seu olhar fulgindo,

A tirania estremeceu nas bases,

De um rei na fronte ressumou, pungindo,

Um suor de morte e um terror infindo

Gelou o seio aos cortesãos sequazes —

Uma alma nova ergueu-se em cada peito,

Brotou em cada peito uma esperança,

De um sono acordou, firme, o Direito —

E a Europa — o mundo — mais que o mundo, a França —

Sentiu numa hora sob o verbo seu

As comoções que em séculos não sofreu!...

 

[1883]

 

 

 

 

 

Verso e reverso

 

Bem como o lótus que abre o seio perfumado

Ao doce olhar da estrela esquiva da amplidão

Assim também, um dia, a um doce olhar, domado,

Abri meu coração.

 

Ah! foi um astro puro e vívido, e fulgente,

Que à noite de minh'alma em luz veio romper

Aquele olhar divino, aquele olhar ardente

De uns olhos de mulher...

 

Escopro divinal tecido por auroras

Bem dentro do meu peito, esplêndido, tombou,

E nele, altas canções e inspirações ardentes

Sublime burilou!

 

Foi ele que a minh'alma em noite atroz, cingida,

Ergueu do ideal, um dia, ao rútilo clarão.

Foi ele aquele olhar que à lágrima dorida

Deu-me um berço a Canção!

 

Foi ele que ensinou-me as minhas dores frias

Em estrofes ardentes, altivo, transformar!

Foi ele que ensinou-me a ouvir as melodias

Que brilham num olhar...

 

E são seus puros raios, seus raios róseos, santos

Envoltos sempre e sempre em tão divina cor,

As cordas divinais da lira de meus prantos,

D'harpa da minha dor!

 

Sim ele é quem me dá o desespero e a calma,

O ceticismo e a crença, a raiva, o mal e o bem,

Lançou-me muita luz no coração e na alma,

Mas lágrimas também!

 

É ele que, febril, a espadanar fulgores,

Negreja na minh'alma, imenso, vil, fatal!

É quem me sangra o peito e me mitiga as dores.

É bálsamo e é punhal.

                               

[1884]

 

 

 

 

 

Amor algébrico [título anterior: Álgebra lírica]

 

Acabo de estudar da ciência fria e vã,

O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,

Acabo de arrancar a fronte minha ardente

Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

 

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente

Que este Saara atroz sem aura, sem manhã,

A Álgebra criou a mente, a alma mais sã

Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

 

Acabo de estudar e pálido, cansado,

Dumas dez equações os véus hei arrancado,

Estou cheio de 'spleen', cheio de tédio e giz.

 

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,

Ir dela descansar no seio venturoso

E achar do seu olhar o luminoso X.

                                          

[1884]

 

 

 

 

 

Mundos extintos

 

São tão remotas as estrelas que, apesar da

vertiginosa velocidade da luz, elas se apagam,

e continuam a brilhar durante séculos.

 

Morrem os mundos... Silenciosa e escura,

Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,

Nas luminosas solidões da altura

Erguem-se, assim, necrópoles sombrias...

 

Mas para nós, di-lo a ciência, além perdura

A vida, e expande as rútilas magias...

Pelos séculos em fora a luz fulgura

Traçando-lhes as órbitas vazias.

 

Meus ideais! extinta claridade

Mortos, rompeis, fantásticos e insanos

Da minh'alma a revolta imensidade...

 

E sois ainda todos os enganos

E toda a luz, e toda a mocidade

Desta velhice trágica aos vinte anos...

 

[1886]

 

 

 

 

 

Calabar [título anterior: Os  holandeses]

 

(.............)

Calabar só. Queda-se pensativo. Surge de um recanto do forte.

Fr. Manuel Salvador

 

Fr. Manuel (à parte) ... Não percamos esta hora.

(Alto, a Calabar)

Pois acreditas tu que é um leão?

(Calabar volta-se, surpreso)

Tu és

Um cachorro açulado às goelas do holandês!

Calabar _ Padre! de onde surgiste? a que vens? e que queres?

E que palavra vil é esta com que feres

A quem sempre submisso ouviu a tua voz?

Fr. Manuel Escuta-me, meu filho... Eu precisava, a sós,

Longamente tratar contigo acerca de árdua

Empresa; e a situação em que te vês, aguardo-a

De muito impaciente...

Calabar Tu achas então que é

Própria a divagações esta hora quando a fé

Que propagas e o Deus, o próprio Deus que adoras

Tem em roda seis mil espadas vencedoras

Do herético holandês... Tu queres gracejar

Ante o perigo, padre!?

Fr. Manuel (tranqüilo) Escuta, Calabar:

Sabes o que traduz este hábito sombrio?

É o túmulo de uma alma! Aqui dentro há mais frio,

Mais sombra e mais horror do que nas solidões

Dos cemitérios... Ouve: Há fundas aflições

De uma agonia atroz, no ser entregue ao duro

Martírio de arrastar este farrapo escuro.

Sabes tu por acaso avaliar o pavor

De alguém que arrasta em vida o próprio túmulo, e a dor

De quem cego da vida às galas soberanas

É um morto a vagar entre as paixões humanas,

Trágico e só 'perinde ao cadáver', só

Feito uma sombra vã e desprezível? Oh!

Se podes calcular a espantosa tristeza

De alguém em frente ao qual, imota, a natureza

Não tem voz, nem luz... Se podes idear

Sequer a ânsia de alguém  destinado a escutar,

Monótona, a bater, a bater agoureira,

A mesma hora a bater durante a vida inteira!

Se podes avaliar tão mísero viver

E sofrimentos tais, deves compreender

Que eu não sei rir sequer, que eu não gracejo nunca!

(...........)

 

[1887]

 

 

 

[De Ondas e outros poemas esparsos, in Euclides da Cunha: obra completa

(org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Aguilar, 1966]

 

 

 

junho, 2009