Desde uma tese que tinha em Russeau seu defensor mais óbvio, Hannah Arendt1acentuava que há um tipo de humanidade que encontra na espécie humana um comportamento natural para destilar um sentimento próximo da fraternidade e que, por ser tão natural, dispensaria ao homem qualquer esforço no sentido de ser algo mais que tão somente "um homem". Quer dizer: desde que esteja naturalmente investido dessa característica, atributos como fraternidade, humanismo, compaixão, etc, viriam a reboque dessa condição em si. Talvez sejam ainda os efeitos dessa concepção prototípica que faz o termo "sincretismo" passar uma ideia de que todos os elementos objetivos e subjetivos que servem de insumos à mistura (racial, cultural, religiosa...) sobrevivem, sem reserva alguma, a esse processo cuja resultante dar-se-ia sem qualquer vestígio de intolerância, como se atuasse aí um infalível mecanismo programado para gerar uma nova consciência.

Por sua vez, palavras como "síntese", "amálgama", "fusão", "integração", já incorporadas ao repertório artístico e às políticas de inclusão social, parecem ferramentas para fechar questão ou simulam situações consolidadas, pouco importando se os agentes reais e históricos envolvidos nessa operação permaneçam em estado de suspense e cautela quanto à dissolução de suas diferenças étnicas e culturais, enquanto a realidade demonstra que os sujeitos dessas aglutinações continuam sendo alvos de um contexto onde o tráfego da fala, da cor, da origem, do sexo, da cultura e do afeto se dá num contínuo de velada intolerância. Na verdade a máquina de produzir nova consciência parece retro-alimentada por uma casta de gestos e atitudes discriminatórios, senão explícitos, pelo menos chancelados pelo hábito.

Contrário àquela visão ideal, é possível afirmar que mesmo no sincretismo tal como visto, um componente de domínio (e contradomínio) persiste como o resíduo de uma discrepância insubmissa à ideia mesma de miscigenação, conceito transplantado da genética para o campo sócio-cultural de forma imprópria, eu diria. De qualquer forma, não é qualquer pré-conceito ou resistência que se dilui no trânsito do sujeito real para a tolerância e seu discurso quase sempre idealista.

Afinal, o que faz um símbolo ou um deus atuar no lugar de outro senão a impostura de um silêncio forçado? A despeito da desfaçatez histórica que coloca o sincretismo religioso como um exemplo didático de resistência espiritual e de assimilação feliz de símbolos e entidades alheias ao acervo da crença original, uma outra ideia desconstrói essa conclusão. Ora, já que os deuses são os mesmos e permanecem fiéis a si, o que seria o sincretismo senão a prova material de um atentado à liberdade de culto?

Essas reflexões me ocorrem a propósito de um poema visual do poeta Ronald Augusto, intitulada Olimpo/Olodum, ainda inédito em livro, peça que nos leva à desconfiança de que, no contexto da arte e da literatura, é possível afirmar que há nas palavras, mesmo no nível de caligrafia, um traço ideológico que a etimologia não consegue dissolver, e que mesmo fenômenos como aglutinação, superposição, derivação e os hibridismos radicais do idioma, por incrível que pareça, conseguem tão somente acentuar mais ainda a presença de um "idioma forte", cuja prevalência é fixada, claro, desde fora do âmbito semiótico. Curiosamente, o poeta Glauco Mattoso, em artigo recente2, indica radicais gregos que não se misturam com os latinos, exceto nos hibridismos.

Com relação à peça em estudo, percebo no caligrama de Ronald Augusto, a pulsação de um conflito espelhado em uma junção não resolvida também no plano da operação intersemiótica. As setas que sombreiam a escrita, a par de poderem ser vistas também como signos em si, avançam como a indicar o percurso de uma deglutição e, logo à frente, uma regurgitação de algo que, desde o princípio (o poeta deixa claro isso na diferenciação cromática dos tipos vermelho e negro) parece estar ali, mas não está: o aparente concílio das falas, a compreensão sem domínio, a dissolução das diferenças, a aceitação até certo ponto. A falácia do concerto étnico é denunciada pela segregação dos étimos. Na realidade, ousaríamos afirmar que algo in/solvido (como uma reserva que resiste ao abraço) persiste depois da cópula radical do tipo periférico com a fonte totalizante, branca, onde cabe praticamente "toda a literatura do Ocidente" (lembra Oswaldo de Camargo3). O poeta, sutilmente, expõe na própria rasura tipográfica esse ma/logro e, paradoxalmente, a frustração dessa "compreensão mútua" não alcançada (na verdade, não referendada) na e pela realidade vivida pelo indivíduo negro. O compósito resultante dessa fratura léxica dá conta muito bem desse impasse.

Por outro lado, pode-se também ler esse poema pelo viés da malandragem. A pose apolínea é triturada por uma sub-ratio defectiva, desencadeadora de uma nova casta de sentidos. Longe do mero decalque, de uma simples incisão exótica nos tipos, na verdade uma provocação mais radical aqui se realiza. Virando as costas à reverência e ao porte das divindades incrustadas num olimpo semântico, com certo gracejo, o poema, através do enxerto radical de estilemas e códigos, opera sua insubmissão. Não sendo permitido falar desde um pódio de acepções consagradas e autorizadas (o grego), o vocabulário negro engole o grego e o expele, agora sim, num lance de apropriação traquina; afronta matreira de Ogum a Zeus. Para tanto há que se observar a já referida justaposição persistente (em vermelho e negro) dos tipos que funcionam na cena caligráfica como elementos que se miram desde uma proximidade apenas consentida. E é com esse procedimento de ginga que o poeta fabula em cima das falas para, convencionalmente, driblar mais um enguiço im/posto pela tradição.

Claro, tipos gregos parecem gozar do conforto etimológico de comporem palavras, ideias, projetos, ideologias que servem de pilares e conformação às verdades e à ordem pública ocidental. Algo que, se não garante sua imutabilidade, pelo menos assegura, há anos, uma espécie de "autoridade de fonte" quanto ao ponto de partida (e de chegada) das discussões e até mesmo de uma forma de pensar. Daí, a peça de Ronald Augusto comportar também uma estratégia de desconstrução elíptica e crítica dessa ideia tão corriqueira quanto folclórica de hibridismo, mesmo, e também por isso, sendo uma experiência que se dá nas fronteiras gráficas dos discursos: a scriptio defectiva iorubana invade a scriptio lapidar grega, a língua vulgar se imiscui nas saliências da matriz dominante, enquanto instância onde se decide e se decreta o saber, o sabor, a cultura. Não por acaso, em outra versão desse mesmo poema o autor denomina o poema visual de "negro engole grego".

Como fez recentemente Prisca Augustoni4, pode-se ver nessa operação de Ronald Augusto a marca de um elo consolidado de culturas, no caso específico, uma confluência de culturas interagentes, enfim, um sossego na diáspora negra. Mas essa cópula caligramática de códigos antagônicos, retratada no escambo enviesado de seus designs, à primeira vista, evidencia com maior contundência o espectro de um atrito, uma luta decorrente de preconceitos e cismas que vazam desde o tecido sócio-cultural e histórico que lhe enforma e, queira ou não, impõem uma cisão nem sempre notada: língua materna x língua ama-de-leite, língua do mando x língua do mundano, língua do rei x língua do súdito, língua do patrão x língua subalterna.

Esse caligrama ("poema visual escrito a mão", na feliz expressão da poeta Telma Scherer) espelha, portanto, um tenso desafio de culturas e cultos, a subversão de um código dominante ocidental por um código  arredio mas desobediente, encetado com atrevimento nas locas de sua saliência. Além do neologismo que remete a um "imaginário híbrido em termos de referências culturais "(Prisca Augustoni observa), destaca-se aqui uma insolência gráfica incomum, por conta da manipulação travessa dos despojos míticos das duas culturas, sem preponderância de uma ou de outra fonte: com nenhuma reverência o código iorubá vertido na peça rivaliza com a economia apolínea dos tipos gregos. Com isso, o poeta testa também os limites ideológicos dos discursos que estão e não estão ali, desde sua pré-significação ou, melhor dizendo, aquém da superfície dogmática dos conceitos. Essa operação crítica e desfigurante desfaz, a um só tempo, hierarquias semânticas e semiológicas e leva o texto e o contexto a uma conotação suspeita.

Vale lembrar: Olimpo, o lugar onde residiam as divindades gregas. Olodum, diminutivo de olodumaré, senhor dos céus infinitos. Portanto, os cultos multi-profanados pela fatura estética do poema como que coincidem em sua plástica devocional (outra pérola do caligrama!), quanto mais não seja para fixar um acerto de contas no infinito, briga de titãs, para além das contingências políticas e históricas. E, por um instante, graças a essa associação remota, me permito entender melhor esse gesto dos mestres músicos do Pelourinho, em Salvador, quando em plena execução das peças do grupo Olodum, atiram seus tambores ao ar, ainda percutindo-os: a música que cai do alto.

Em resumo, poemas visuais desse tipo se não conduzem a atenção do leitor a um conforto discursivo habitual acerca de sua mensagem implícita e explícita, por outro lado alertam para o fato de que as imposturas ideológicas se dão desde muito antes das evidências barganhadas nele discurso, isto é, abaixo da linha de significação. Quer dizer: nos torneios semânticos, não há campo neutro.

 

 

Notas

 

 

 

 

dezembro, 2009

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Poemas

 
 
 
Cândido Rolim poeta, reside em Fortaleza. Autor de Exemplos alados (1997), Pedra habitada (2002), Fragma (2007) e Camisa qual (2008). Tem artigos e ensaios publicados em alguns sítios e revistas de literatura e crítica na web. Co-editor do blogue Signagem.
 
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