Lantejoulas no meu tédio, Camila Buzelin, Registro Fotográfico | Foto: Márcia Rennó
 
 
 
 
 
 

 

 

A imagem do alimento parece apropriada para estabelecer certas analogias sendo que nos alimentamos também da leitura, devoramos livros quando estamos com fome, salivamos ao ler a descrição de uma cena. No emaranhado de emoções e lembranças de uma infância que não nos abandona (lembrando Benjamin) é que relembramos certas imagens alimentares como ingredientes de muitas histórias já bem conhecidas: da cesta levada à vovó por Chapeuzinho Vermelho à devoração do lobo, das migalhas de pão à casa comestível em João e Maria, do banquete servido pelo Rei ao sapo em Henrique de Ferro (mais conhecido como A princesa e o sapo), das ceias de Ano Novo vistas pelas janelas pela Pequena vendedora de fósforos aos delírios da fome, dos feijões em João e o pé de feijão, dos potes de mingau em Cachinhos Dourado e os três ursos, do gato devorando o ogro e da ceia com o Rei em O gato de botas, ainda da devoração em O lobo e os sete cabritinhos, do comer e do beber em Alice no país das maravilhas, do Soldadinho de Chumbo na barriga do peixe que ia à mesa1. Nessas narrativas, o ato de comer poderia ser dividido em dois momentos: personagens que comem e personagens que são comidos.

Da antropofagia à estética da fome, da devoração à comensalidade, eis o que se apresenta: o comer solitário e o comer em grupo — comer não só por fome, mas também por prazer e por tradição. Para a Sociologia, o ato alimentar não é só biológico, é também representação de certos valores culturais. A simbologia da comida e do ato de comer pode trazer-nos a compreensão de valores culturais ou históricos. Cabe então algumas perguntas: como e por que a imagem do alimento fez e faz-se tão presente nos textos voltados para a criança? Ao longo do tempo o alimento se atualizou nas histórias ou permanece com as mesmas funções? E quais funções seriam estas?

 

***

 

Câmara Cascudo afirma que o primeiro depoimento sobre alimentação indígena no Brasil é a Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de primeiro de maio de 1500. Vários dos sermões analisados no Brasil entre os séculos XVII e XVIII eram baseados fundamentalmente em metáforas alimentares. Em uma sociedade na qual a oralidade era a principal forma de difusão do conhecimento, tais metáforas eram muito recorrentes. Pe. Antônio Vieira, no Sermão de Nossa Senhora do Rosário, no ano de 1654, fundamentou seu sermão numa analogia do corpo — o corpo de Cristo que é alimento para alma. A analogia entre o ato de comer e o ato de pregar remonta à tradição medieval que oferece a palavra do pregador como alimento espiritual para as almas necessitadas e famintas. São Bernardo (1090-1153), Abade de Claraval, afirma que

 

um alimento indigesto, mal cozinhado, produz maus humores e, em vez de nutrir o corpo, corrompe-o, assim também pode dar-se o caso de o estômago da alma, que é a memória, ao ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram pelo aparelho digestivo da alma (apud MASSIMI, 2006, p. 259).

 

Marina Massimi afirma que o uso dessas metáforas baseava-se em dois pilares fundamentais: Aristóteles e Platão. Desse modo, segundo a autora, os sermões constituíram-se numa modelagem dos comportamentos sociais e adquiriram grande significação em relação à história do uso de metáforas alimentares com função antropológica, pois comparam o processo de conhecer ao de ingerir alimentos. Neste sentido, essas metáforas ajudavam a fundamentar o ciclo pedagógico dos sermões. Na hierarquia da primeira Idade Moderna, a comida era destinada e classificada segundo o grau de nobreza do consumidor, pois se acreditava que cada um deveria consumir o alimento adequado à sua natureza. Assim, alimentos próximos da terra eram considerados inferiores e destinados às classes sociais mais pobres, em oposição aos alimentos elevados na direção do céu que eram considerados superiores. Os voláteis, por exemplo, eram considerados comida adequada para príncipes e reis — os nobres consumiam mais perdizes e carnes delicadas, pois se acreditava que isso conferia mais inteligência e sensibilidade em comparação aos que comiam porco, por exemplo (MASSIMI, 2006).

Para Flandrin & Montanari, em História da alimentação (1996), a função religiosa da alimentação remonta ao terceiro milênio antes de Cristo na Mesopotâmia, onde a homenagem aos deuses era feita por meio de oferendas alimentares (carnes, pão, leite, cerveja e vinho). Segundo os autores, a função social do banquete, muito ressaltada no mundo grego e romano, girava em torno do convívio e da troca de cortesias ocasionando um importante elemento de distinção entre o homem civilizado, o bárbaro e os animais:

 

O homem civilizado come não somente (e menos) por fome, para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas também (e sobretudo) para  transformar esta ocasião em um ato de sociabilidade [...]" (FLANDRIN; MONTANARI, 1996, p. 108).

 

Nesse contexto, o Banquete (ou Simposium) de Platão, como lembra Massimi, é caracterizado como expressão da função social e cultural do convívio à mesa.

No primeiro e segundo tomo de História da alimentação no Brasil (1967; 1968), Câmara Cascudo expõe o percurso da sociologia do alimento no cardápio tradicional indígena, africano e português em relação à constituição do comum na comida nacional e se refere sempre à alimentação e não à nutrição, pois conforme suas pesquisas do alimento na contemporaniedade, percebeu que os padrões alimentares estão mais ligados à tradição do que à nutrição, bem como a predileção de certos sabores:

 

o povo guarda sua alimentação tradicional porque está habituado, porque aprecia o sabor [...]. Pode não nutrir mas enche o estômago. E há gerações e gerações fiéis a esse ritmo (2004, p. 15).

 

A escola faz muito isso com nossas crianças, fornece a literatura como alimento tradicional, apenas para encher o estômago, para cumprir os conteúdos estabelecidos e não para nutrir o leitor. Carmem Alberton já assinalava na década de 1980, em Uma dieta para crianças: livros, que a leitura restrita a livros escolhidos pelo adulto e apresentados sobre forma de tarefa escolar transformava-se em um trabalho penoso e limitativo ao ser imposto pela escola (1980, p. 7).

Benjamim lembra-nos, nos textos recolhidos em Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2004), que as crianças sabem jogar e brincar e atribui aos adultos (convencido sobre a pobreza da experiência) uma certa incapacidade de magia. O escritor ainda adverte sobre a polissemia do jogo, o duplo sentido, tanto jogo como brincadeira:

 

a essência do brincar não é um "fazer como se", mas um "fazer sempre de novo", transformação da experiência mais comovente em hábito", assim "comer, dormir, vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira lúdica, com o acompanhamento do ritmo de versinhos" (2004, p. 102).

 

Gianni Rodari, escritor italiano, discute sobre o jogo que se põe à mesa na hora das refeições e os personagens criados pelos pais — o que dá ao ato de comer um significado simbólico: "comer torna-se um ato estético". Com os capítulos "Comer e brincar de comer" e "Histórias à mesa" do livro Gramática da Fantasia. Rodari sugere o híbrido de fábulas que podem ser criadas à mesa, como a Madame colher e suas aventuras românticas com um garfo e sua terrível rival, a faca:

 

Madame  Colher  era  bem alta   e  muito  magra,  e  tinha  uma  cabeça  tão grande  e tão pesada  que  não  parava em pé, ela  achava mais cômodo andar de ponta–cabeça. Assim  via  todo  mundo  ao  contrário e só tinha idéias  do avesso... (1982, p. 96).

 

Rodari assinala a fome como uma das grandes tragédias do século XX — fome tanto do corpo como da alma. O escritor afirma que ambos (corpo e alma) precisam ser nutridos — talvez por isso seus textos reflitam essa profunda ligação com o alimento. Clarice Lispector também apontou essa duplicidade da fome:

 

a fome é nossa endemia, já está fazendo parte do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que, na verdade estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome (apud ANDRADE, 1993, p. 59).

 

Rodari envolve o leitor no saboroso mundo da leitura por intermédio de uma escrita lúdica e surreal. Prosa e verso unem-se aos textos críticos e contribuem para tornar o ato da leitura uma degustação, nos termos do escritor, fantástica. Segundo Italo Calvino, a obra de Rodari sublima a atemporalidade da fantasia, pois sempre haverá um lugar para a atmosfera mágica das fábulas, das lendas e dos mitos porque na alma do adulto restará em estado latente a criança que nos habita com seu imaginário fértil. Numa produção de mais de trinta anos, Rodari oferece ao leitor infantil e juvenil, aos professores e estudiosos um verdadeiro banquete literário com textos atuais que tratam de algo muito presente em nosso quotidiano: o alimento.

O caráter rizomático dos escritos de Rodari apresenta um hibridismo tanto dos personagens como das histórias: personagens que percorrem várias histórias em diferentes livros e pequenas narrativas ou poemas que se tornam livros independentes. Histórias para brincar foi recentemente traduzido para o português e apresenta esta característica. O título do livro é também um capítulo da Gramática da Fantasia no qual Rodari afirma:

 

As histórias 'abertas' — isto é, incompletas ou com um final a escolher — têm a forma do problema fantástico: com base em certos dados, decide-se sobre sua combinação resolutiva.(1982: 150).

 

Em Histórias para brincar, o autor apresenta vinte histórias, cada uma com três finais diferentes, porém nas instruções de uso adverte que o leitor pode até mesmo descartar as três e criar uma nova — o livro é definido como um "exercício de fantasia". O livro Fábulas por telefone, com uma edição brasileira em 2006, apresenta histórias curtas porque são contadas por um caixeiro viajante, pelo telefone, à sua filha antes de dormir. No livro temos a ocorrência de uma mansão de sorvete, uma cozinha espacial, os homens de manteiga, a febre comilóide, a senhora Apolônia de geléia, a rua de chocolate, a história do reino da comilança, o caramelo instrutivo. No conto "Os homens de manteiga", Rodari conta a história de um grande viajante que explorou um país no qual todos os homens eram de manteiga, que nos lembra o mito da caverna de Platão:

 

esses homens derretiam ao se expor ao sol, eram obrigados a viver sempre na sombra, e moravam numa cidade em que, no lugar de casa, havia um monte de geladeiras (2006, p. 38).

 

Em "A mansão de sorvete", o teto era de chantili, a fumaça das chaminés de algodão-doce, as portas, as paredes e os móveis de sorvete:

 

Um menino bem pequenininho agarrou-se aos pés de uma mesa e lambeu um de cada vez, até que a mesa caiu em cima dele com todos os pratos (2006, p. 21).

 

A maioria dos estudiosos analisa a obra de Rodari numa perspectiva relacionada apenas ao mundo infantil, desconsiderando a experiência do adulto com este tipo de literatura. Embora Rodari buscasse uma especificidade do texto infantil, seus textos não eram voltados somente para os pequeninos. Essa leitura limita os textos de Rodari e sua capacidade criadora a uma interpretação superficial que desconsidera os intertextos, a ironia, a metáfora, a sátira e os pressupostos teóricos implícitos nas suas brincadeiras com as palavras.

Benjamin usa uma imagem muito interessante que é da criança lambiscando

 

pela fresta do guarda-comida entreaberto sua mão avança como um amante pela noite (...) como o amante abraça a sua amada (...) da mesma forma o tato tem um encontro preliminar com as guloseimas antes que a boca as saboreie (2004, p. 105-106).

 

Esse encontro entre a criança-leitora e o alimento (o livro) parece cada vez menos apaixonado com o passar dos anos escolares, é preciso acordar os sentidos para a boa degustação: o tato ao pegar um livro, a visão ao apreciá-lo, a audição ao ouvir uma história, o paladar ao saborear um texto literário; é preciso lambiscar mais, devorar mais.

Atualmente, os jogos de linguagens propostos pelos escritores atualizam cada vez mais a inserção do alimento no texto — é algo muito próximo da criança e do adulto, pois faz parte de nosso quotidiano, mas isso já é conteúdo de outro artigo onde também serão discutidos os questionamentos mencionados. Procuramos apenas mostrar como pode ser nutritivo e divertido saborear textos que trabalhem com imagens alimentares. Enquanto na crítica literária ou educacional a imagem do alimento aparece como metáfora, na literatura, destaca-se como uma imagem que é, por sua vez, mais atrativa ao olhar. Quando penso na palavra imagem, penso em Deleuze. As imagens agem e reagem, relacionam-se, encadeiam-se, criam rizomas. Penso numa imagem que é sempre dupla. No livro infantil, a imagem posta e a imagem visionada. Por imagem alimentar entende-se a evocação do alimento e seus múltiplos sentidos e significados, do pão ao ato de comer: degustação, paladar, nutrição, devoração, antropofagia, sabor, náusea e o que mais vier da boca.

 

 

 

Nota e Referências

 

 

 

junho, 2009

 
 
 
 
Daniela Bunn (Florianópolis/SC). Escritora, ensaísta, professora de Metodologia do Ensino e doutoranda da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Desenvolve pesquisa no campo da literatura infantil. Tem estudos inéditos no Brasil sobre o jornalista, ficcionista e poeta italiano Gianni Rodari (1920-1980), um dos maiores escritores infantis do século passado.