imagem: kerouak on the road, by martin pincher
 
 
 
 


 

A Síndrome de Kerouac

 

Na literatura, como no amor, não há clímax sem preliminares

 

O imaginário do Ocidente pós-revolução sexual passou a dar atenção crescente às preliminares. O que vem antes da conjunção carnal propriamente dita é considerado cada vez mais uma parte indispensável do ato sexual. Para essa forma de pensar, que é a da grande maioria das mulheres de hoje e de um número crescente de homens, sexo sem preliminares não é satisfatório. Disso se pode deduzir, sem grande esforço de imaginação, que o amante que domina a arte de amar é o que estimula a parceira, durante a fase preliminar, a atingir o estado que a torna capaz de vivenciar ao máximo o clímax da fusão de corpos que virá em seguida.

Há semelhança estreita entre a arte de amar e o processo de composição literária. Levando-a em conta, o iniciante pode melhorar sua performance. Assim como a conjunção carnal deve ser o último ato no script das relações amorosas, tomar da caneta ou ir para o teclado deve ser o último passo no trajeto de criação a ser seguido por quem se inicia na arte de escrever. Na prosa, antes dos dedos, é preciso fazer amplo e irrestrito uso dos olhos, dos ouvidos, do nariz e da pele. E é necessário transformar tudo o que os sentidos captam num conjunto racionalmente organizado de observações.

Essa necessidade é tão velha quanto a literatura. No entanto, lembrá-la parece especialmente válido para a blogosfera literária. A facilidade do texto virtual, cuja publicação é possível no instante seguinte à colocação do ponto final, pode estimular, como de fato tem estimulado, um certo espontaneísmo encontrável em muitas produções. O resultado disso geralmente é constituído por boas idéias com más realizações. Nesses casos, sobrou vontade de publicar rápido e marcar presença no meio virtual. Mas faltou capacidade de planejar tanto o que será dito, quanto a maneira de dizê-lo.

Sem planejamento, o iniciante arrisca-se a cair no que se pode chamar de Síndrome de Kerouac, um procedimento relapso de composição. Sua base conceitual está numa compreensão equivocada da escrita automática popularizada pelo norte-americano Jack Kerouac em obras como "On the Road", clássico do movimento beatnick, e por outros autores que produziram antes e depois dele. É um atrativo perigosamente fácil, pelo qual o iniciante, tomando a rapidez de publicação como um valor em si mesmo, condena-se a ser sempre iniciante pela falta de tempo para a elaboração.

O leitor poderá se perguntar se essa crítica ao espontaneísmo não termina por colocar uma pedra no caminho do experimentalismo, que é, afinal, a força de renovação e transformação da literatura. Não acredito que seja assim. O que é realmente novo em literatura não surge espontaneamente. É antes o produto final de uma longa elaboração consciente por parte dos autores. Qualquer curioso em literatura sabe, aliás, que experimentar e inovar dão muito mais trabalho, quando feitos com seriedade, do que simplesmente seguir ou aperfeiçoar modelos consagrados. Por isso são poucos os inventores em literatura.

A escrita automática dos beatniks, por exemplo, é o termo de um processo de evolução em que se valoriza a improvisação. Não por acaso há afinidades  entre os beatniks e o jazz, gênero musical em parte baseado no improviso. Mas esse improviso é feito de modo calculado. Ele funciona, nos exemplos mais felizes, como um trajeto alternativo entre o começo e o fim da melodia, que são conhecidos de antemão pelo improvisador, assim como o autor que experimenta deve conhecer bem os limites e possibilidades técnicas cabíveis no experimento.

Para quem se inicia na prosa com a disposição de produzir com seriedade, a rapidez de publicação na blogosfera é um canto da sereia, uma ilusão perigosa. As diferenças entre o texto virtual e o texto impresso estão em recursos de mídia e possibilidades de combinação que o papel não comporta. Elas não estão, e não há razão para pensar que um dia haverão de estar, na velocidade de publicação.  No papel ou na tela do computador, a literatura séria é muito mais do que o produto de um exercício de digitação criativa. Sem as preliminares, representadas pelo planejamento meticuloso, o texto literário jamais chegará ao clímax.

 

 

Lendo se aprende a escrever?

 

A imprescindível arte de ruminar influências

 

Um dos motivos que explicam o fato de bois, cavalos e vacas chegarem a desenvolver uma forte musculatura comendo apenas ervas está no fato de eles serem ruminantes. Ruminar o capim permite-lhes aproveitar ao máximo seus ingredientes nutricionais, o que não ocorreria se o digerissem rapidamente. É por esse motivo que as mães insistem com os filhos para que aprendam, desde crianças, a mastigar bem os alimentos.

É também por esse motivo que as obras literárias que um autor iniciante lê em busca de inspiração devem ser ruminadas por ele, sob pena de não serem bem assimiladas e produzirem uma indigestão de idéias. A pergunta clássica "Lendo bons autores se aprende a escrever?", feita tanto por literatos quanto por estudantes, só tem uma resposta válida: a possibilidade de aprendizado dependerá da ruminação da obra que se lê.

Ler sem ruminar é como viver sem refletir. Nos dois casos, os erros não ensinam e as virtudes não são percebidas como tais. A ruminação de uma obra inspiradora é, para os escritores iniciantes que encaram seu ofício com seriedade, a única forma de superar o estado de ingenuidade, que se caracteriza pela produção sem reflexão crítica, na qual o autor não tem idéia clara do valor daquilo que está produzindo.

Surge então o problema dos débitos que o iniciante tem para com outros autores. É a velha questão das influências literárias, uma questão que, se não for bem compreendida, precipita até mesmo talentos promissores em práticas reles de plágio, muitas vezes sem que eles próprios se dêem conta de que estão plagiando. Essas práticas são favorecidas naquelas circunstâncias em que leitura e escrita são feitas no mesmo ambiente e na mesma ocasião.

Ora, a blogosfera é, por natureza, um ambiente em que simultaneamente se lê e se escreve, podendo-se afirmar que parte considerável dos leitores é constituída por pessoas que são, elas próprias, autores. Essa circunstância favorece a intertextualidade num nível nunca alcançado no período anterior ao advento da web. E potencializa o risco do plágio involuntário decorrente das influências literárias mal assimiladas.

O hábito de pensar que o plágio se dá apenas quando se deixa de fazer a devida referência à autoria de frases transcritas impede o iniciante de perceber que o problema pode se apresentar de modo mais sutil. Existe a possibilidade de o plágio se fazer por transcrição não de trechos de um autor, mas do seu processo composicional. Nesses casos, não se plagia um texto, mas um pacote de procedimentos para produzir textos. Copia-se uma receita.

As prateleiras das bibliotecas e livrarias estão cheias de receitas famosas, e a blogosfera literária as tem aplicado quase todas em meio virtual, com menor ou maior cerimônia. É isso que explica o fato de já serem quase incontáveis na blogosfera as réplicas dos monólogos de apelo psicológico de Clarice Lispector ou da poética sofisticadamente despojada de um Manoel de Barros ou filosoficamente refinada de um Fernando Pessoa, para ficarmos com os mais conhecidos.

Os autores dessas réplicas, na melhor das hipóteses, acreditam que há em sua produção uma certa influência, quando o correto seria verem a cópia servil em que incorreram. Na pior das hipóteses, eles nem chegam a se dar conta dos modelos que estão a copiar, pois obtiveram a influência por via indireta, retirando-a de um autor da blogosfera que pode, por sua vez, tê-la retirado de outro, numa sucessão de cópias servis.

O procedimento de cópia fica claro por sua falta de criatividade. O copista tende a copiar o despojamento da poesia de Manoel de Barros num texto, com seu vocabulário e sintaxe típicos, e, num outro texto, pode replicar um monólogo de feição psicológica à moda de Clarice Lispector. Mas dificilmente pensará em algo como um monólogo de exploração psicológica composto com o linguajar de Manoel de Barros ou num poema despojado com a densidade da prosa de Clarice.

Esse tipo de mistura geralmente não é feito porque supõe estudo dos textos-matrizes para se fazer uma assimilação criativa deles. Esse estudo exige ruminação das influências, algo incompatível com a assimilação passiva e acrítica que os copistas fazem dos textos de que gostam. Ruminação dá trabalho, não pode ser feita pela lei do menor esforço. Mas o que é, afinal, ruminar uma obra para aproveitar-lhe os nutrientes sem que isso resulte em plágio?

Ruminar uma obra consiste, em primeiro lugar, naquilo que costumo chamar de desmontar o brinquedo. Para digerir um texto de modo a poder aproveitar o que ele tem de interessante, assimilando-o de modo criativo, é preciso conhecer sua estrutura, a técnica com que foi composto, os recursos que nele foram empregados pelo autor e os que ele não quis empregar. Numa palavra, é preciso abri-lo para ver como suas peças se ajuntam e interagem no funcionamento.

Depois, é preciso saber classificar o texto lido, apontando-lhe gênero e espécie. E questionar: Qual a posição que o autor ocupa na história evolutiva de seu gênero e sua espécie? É um autor inovador, que inventou formas novas? Ou é um aprimorador, que refinou modelos existentes? No que consiste sua inovação ou aprimoramento? Esses, entre vários outros, são questionamentos cabíveis.

A ruminação estará concluída quando o leitor/autor puder dizer a si mesmo, com segurança, quais são as características do texto que lhe despertaram a atenção e qual seria o uso que poderia vir a fazer delas em sua própria produção literária, o que inclui a sabedoria para harmonizar tais características com outras do seu projeto literário. Quando chegar a isso, o iniciante estará em condições de engolir as influências sem ser engolido por elas.

 

 

O longo caminho até a própria voz

 

Estilo: da naturalidade à construção

 

Conta-se de Graciliano Ramos que foi descoberto nos anos 20 do século passado pelo escritor Augusto Frederico Schmidt. Prefeito de Palmeira dos Índios, no sertão de Alagoas, o autor de São Bernardo enviou relatórios administrativos à Biblioteca Nacional cumprindo exigência do governo federal. Um deles caiu nas mãos de Schmidt, que admirou o estilo do texto e quis informações sobre aquele administrador público que inovava no uso da linguagem e que viria a desenvolver nos anos seguintes a mais clássica prosa do modernismo brasileiro.

O Graciliano prefeito revelou o Graciliano escritor, que havia escrito muito e já estava maduro, ainda que na gaveta. A revelação não decorreu do tema dos relatórios, que deve ser bastante semelhante ao dos que foram produzidos pelos prefeitos da época. Ela decorreu do estilo em que os textos foram compostos. Estilo é forma de dizer. É nele, não no conteúdo, que mora a literatura. Isso faz com que até um relatório administrativo possa ser composto com feição literária, assim como o podem ser cartas comerciais ou manuais de eletrodomésticos.

Até aqui não há nada que surpreenda o iniciante na arte de escrever. Desde as aulas de literatura do colégio, todos sabemos que a arte literária se presta a todos os conteúdos e que não está em nenhum deles em especial. Ela está na forma e na intenção com que o conteúdo é apresentado. Existe literatura quando, entre outros requisitos, a intenção do autor é chamar a atenção não apenas para o que diz, mas também para o como se diz, de modo que uma das riquezas dos escritores se encontra na peculiaridade de sua forma de expressão.

Os redatores de relatórios administrativos e outros documentos não literários não têm, obviamente, compromisso com questões de estilística e até preferem se ajustar a modelos prévios que lhes dispensam de reflexão e lhes poupam tempo. Ao contrário deles, o escritor deve ter sempre presente, como problema em aberto, o seu estilo individual. Afinal, repita-se, o estilo é um dos requisitos indispensáveis para a existência da literatura. E é por meio dele que se mostram os outros requisitos, como o caráter lúdico e a invenção de novas realidades.

Para quem se dispõe a produzir literatura, a primeira coisa a fazer, em se tratando de forma, é colocar em questão, por falta de fundamentos, a idéia de que cada autor tem seu estilo natural de escrever, assim como tem um estilo natural de falar e de andar, adquiridos ao longo do tempo por aprendizado ou genética. Não existe naturalidade no estilo de um escritor, pelo fato de que estilo não é um dado da natureza e sim uma construção feita por quem escreve, com tudo o que isso implica em termos de opção por certos recursos em detrimento de outros.

Ao se dar conta disso, o iniciante percebe que o estilo é conquista e, ao mesmo tempo, risco. Para entender seu caráter de conquista, é preciso antes considerar as fases pelas quais passam todos aqueles que se aventuram a produzir literatura. Num primeiro momento, como o adolescente que está oitavando, o aprendiz de autor luta para fixar sua voz, sua forma peculiar de se expressar. Quando ela enfim se fixa, ele descobre que é preciso analisá-la a fim de saber se é mesmo a sua própria voz ou a imitação de alguma outra voz que lhe ficou na memória após leituras.

Uma parte considerável dos autores, constituída pelos diletantes, não passa da primeira fase e termina como poetas e prosadores de fim de semana, produzindo cada vez com uma voz diferente. Os poucos que chegam à segunda fase podem dizer que falam com a sua própria e inconfundível voz. É a esses que está reservado o risco do estilo. É o risco de o autor se sentir numa zona de conforto em relação à sua maneira de escrever e "naturalizá-la" de modo mais ou menos inconsciente, considerando-a algo que, uma vez estabelecido, torna-se imutável.

É como se o estilo chegasse a um ponto de maturidade a partir do qual não se modifica, tal como a estatura não se modifica além de determinada altura. Esse risco é tanto mais significativo, quanto maior o reconhecimento do autor. Por motivos fáceis de compreender, quem já está publicado e, pelo menos, razoavelmente conhecido tem dificuldade em mexer no time estilístico que está ganhando. Isso explica o fato de haver autores consagrados que repetem a si mesmos a cada livro, ainda que se esforcem por mudar radicalmente a temática entre uma obra e outra.

O que se perde nessa repetição acomodada é justamente o caráter lúdico e experimental da literatura. Perde-se a capacidade de arriscar, a mesma capacidade que levou o autor, anteriormente, a conseguir fixar sua própria voz e distingui-la das demais. É claro que, em boa medida, um conjunto de características estará sempre presente na produção de um autor, pois reflete traços definidos num nível profundo de sua personalidade e estão relacionados à sua visão de mundo e às suas opções estéticas e ideológicas. O problema não está na presença desses traços invariáveis, sem os quais não há unidade autoral. Ele está é no estancamento da inovação.

O leitor poderá fazer a esse raciocínio a objeção de que é indefinido, afinal de contas, o limite entre o estilo individual e a repetição de si mesmo, e isso é verdade. Também é verdadeiro que não há uma regra para que a prática do estilo individual não degenere em repetição de si mesmo. A única estratégia que a tradição mostrou ser eficaz é baseada numa auto-análise rigorosa, radical e constante, que torne o autor capaz de apontar para si mesmo suas recorrências em termos de recursos e características literárias, incluindo palavras, construções, figuras, idéias e outros elementos.

Essa avaliação de repertório estilístico tem algo de uma auto-psicanálise. Ao se dar conta de suas fixações e do porquê de elas existirem, o autor está pronto para vencê-las e assumir conscientemente a manutenção de certos recursos e o abandono ou modificação de outros, partindo do pressuposto de que o estilo é dinâmico e pode reagir aos estímulos recebidos pelo escritor. Depois dessa tomada de consciência, o autor torna-se capaz de falar com sua própria voz literária em todos os textos que redigir, ainda que eles sejam enfadonhos relatórios administrativos. 

 

 

Do diálogo à dialética

 

A dor e a delícia de receber comentários

 

Um dos atrativos da blogosfera está no seu sistema de comentários. Podendo ser feitos segundos após a publicação do texto que lhes deu origem, eles favorecem uma interatividade que funciona como estímulo poderoso para que os autores iniciantes não se sintam isolados e à deriva no mar cada vez mais vasto e profundo de páginas pessoais.

Acredito, entretanto, que à pergunta "Os comentários são bons para quem começa a escrever?" não devemos responder tão apressadamente com um "sim" ou com um "não". Os comentários são como o vinho. Em doses razoáveis, fazem bem ao organismo e proporcionam prazer. Em excesso, por melhores que sejam, causam dores de cabeça.

A questão volta-se, portanto, não para quem comenta, mas para quem recebe comentários. Não é um problema de quem produz, mas de uso correto e produtivo por parte do destinatário. A primeira constatação de quem navega pela blogosfera é a de que há um crescente número de autores iniciantes dependentes de comentários.

Eles começam saboreando o prazer de receber um sinal de vida vindo de algum ponto do mundo virtual para lhes dizer que fazem diferença e devem continuar. E terminam embriagados da opinião alheia, ao ponto de ligarem o computador, assim que acordam, já com a vontade incontrolável de saborear uma dose de elogio.

É desnecessário dizer que, nessa fase de compulsão, os comentários deixam de ser positivos. Ainda que tenham sido feitos com a melhor das intenções, e geralmente o são, eles alimentam um mal que pode trazer dois riscos. Um é o risco de o iniciante se frustrar pela falta de comentadores. O outro, o de ele ter uma overdose de comentários.

A falta é mais comum em razão do essencialmente volúvel interesse humano. O fato é que na blogosfera existem páginas da moda. Considerando os extremos, pode-se dizer que quem está em voga terá sempre mais comentaristas do que daria conta de responder de modo adequado. E quem sai de moda poderá não ter nenhum.

Não são raros os autores que abandonaram seus blogues quando descobriram que, em razão de modismos, não são tão comentados quanto gostariam. É curioso observar que muitos deles têm, por meio de sistemas de registro disponíveis na web, a certeza de que estão sendo lidos. Mas querem manifestações, mais do que leitores. E se frustram.

Essa frustração, acredito, está baseada na suposição de que, num universo de 70 comentários, haja mais do que 7 que, por seus méritos de análise crítica, tenham ido além da amizade e da momentânea simpatia. Não creio que haja base segura nos fatos para sustentar essa suposição. O inverso me parece mais plausível.

Os bons comentaristas não são tão comuns quanto quer a nossa vã filosofia. Uma parte considerável, mesmo que se interesse verdadeiramente pelo texto, não tem condições de ir além da mera curiosidade momentânea, da troca baseada no "eu comento sua página para você comentar a minha" ou da disposição de amizade.

Curiosidade, amizade e disposição de troca não são coisas ruins em si mesmas. Aliás, são muito boas. Mas não constituem base segura para que alguém decida sobre a qualidade do próprio trabalho, ao ponto de julgar que ele é ruim demais ou bom demais. Esse julgamento tem que partir de parâmetros mais consistentes.

Quem começa a escrever na blogosfera por necessidade ou vocação deve, pois, estar pronto para enfrentar a contingência de não ser comentado. Mais: deve estar pronto a enfrentar de cabeça erguida a possibilidade de não ser lido num dado momento. Não custa lembrar que mais de um clássico da literatura teve que perseverar para vencer a indiferença.

O segundo risco, o de receber comentários demais, não é menos danoso. Em primeiro lugar, ele exige um tempo longo para se responder com a devida educação, nos casos em que a resposta é cabível, a quem fez a gentileza de comentar nossos textos. Não é raro que o tempo de produzir conteúdo seja diminuído em função do tempo de comentar os comentários.

Em se tratando de escritores iniciantes, o risco é ainda maior. A blogosfera é mundial, mas isso não mudou a tendência humana de formar círculos de convivência. Nessas paróquias literárias costumam pontificar um sacerdote ou sacerdotisa, que em geral é alguém com personalidade literária já definida, mas ainda em fase de afirmação.

O dano que os elogios derramados dos fiéis comentadores podem fazer involuntariamente à produção do sacerdote ou sacerdotisa de sua paróquia virtual é enorme, talvez até maior do que o dano feito pela ausência radical de comentários. Se for um escritor ou escritora em formação, o destinatário dos comentários terá que ficar vigilante.

Se não vigiar, correrá o risco de perder a noção entre o comentário-crítica e o comentário-amizade, tomando este como se fosse aquele e esquecendo-se de que os amigos, embora sejam um dos tesouros da existência, nem sempre são bons críticos literários, porque sabem que as críticas sinceras costumam abalar as mais sólidas amizades.

Mesmo quando os elogios são sinceros e bem fundamentados, há um risco: o de o destinatário se conformar a eles e parar de pesquisar. No caso de aspirantes sérios à carreira de escritor, a ausência de pesquisa é algo tão comprometedor quanto parar de crescer. Quem não pesquisa repete-se a si mesmo indefinidamente, julgando que o que é válido hoje continuará a sê-lo sempre, já que as mudanças do mundo seriam muito menos significativas do que parecem à primeira vista.

O desejável é que o autor seja maior do que os comentários feitos à sua obra. Ser maior significa, entre outras coisas, que o autor deve ter a capacidade de dizer a si mesmo, quando julgar cabível, que aquilo que os comentaristas elogiam é justamente o que mais detesta em si mesmo e que o que eles deploram é justamente o que existe de melhor em sua produção.

O mais provável é que os bons comentaristas, aqueles que demonstram real interesse pelo texto virtual e que têm bagagem cultural e crítica suficiente para comentá-los, acertem quanto às qualidades e defeitos do autor. Neste caso, podem e devem ser levados em conta como parâmetros para quem cria, transformando-se no estímulo a uma dialética.

Mas mesmo esses comentaristas podem não ver no texto valores e defeitos que o autor descobre em si mesmo e cuja descoberta é fundamental para a continuidade de sua evolução. Ou seja: o iniciante sério tem que ser o mais rigoroso comentarista da própria produção. Para tanto, precisa ser um leitor impiedoso, porém justo, de si mesmo.

 

 

7 teses sobre a blogosfera

 

1ª Tese

Se é verdade que a blogosfera literária, de um modo radical e positivamente subversivo, eliminou os intermediários entre o autor e o leitor, trazendo a ambos uma visibilidade até então inesperada e democratizando a comunicação, também é verdade que essa eliminação nivelou todos aqueles que produzem conteúdo, no que isso tem de positivo e de problemático.

 

2ª Tese

Ao contrário do que se chegou a afirmar de modo demasiado rápido, a noção de autoria na blogosfera literária não foi eliminada ou mesmo relativizada. O que de fato mudou foi o diálogo intertexual entre autores, que se intensificou num nível até então inédito. Essa intensificação aponta para a necessidade de um movimento que caminhe no sentido de estabelecer, com respaldo legal, uma ética da citação, da glosa, da paráfrase, da resenha e do comentário de texto.

 

3ª Tese

A blogosfera literária já tem nomes consolidados, entre os quais estão aqueles que se assumem essencialmente como autores virtuais e que, por decorrência, não vêem nos blogues apenas eventual plataforma de projeção para o texto impresso. Está reservada a esses autores assumidamente virtuais, mais do que aos outros, a tarefa de alargar os horizontes da blogosfera por meio da pesquisa e descoberta de novos processos de criação.

 

4ª Tese

Embora tenha autores consolidados, a blogosfera ainda não tem uma crítica à altura deles. A rigor, ainda não há um movimento amplo de crítica literária especialmente voltado para a produção literária virtual no que ela tem de diferente dos meios impressos. Esse quadro começa a se modificar, embora lentamente, por força da criação de publicações eletrônicas especializadas.

 

5ª Tese

A ausência de uma crítica à altura da produção literária da blogosfera é mais um indício da falta de sintonia dos meios acadêmicos, de onde vem boa parte dos críticos, com o movimento de renovação vital das artes, inclusive a literatura. A academia está atrasada — às vezes preconceituosa — em relação à blogosfera, assim como no início do século passado esteve atrasada em relação ao cinema e, sob certos aspectos, ainda está em relação à TV.

 

6ª Tese

Contrariamente ao que se chegou a difundir no início do boom da blogosfera literária, sua produção não consiste em mera transposição de gêneros e espécies textuais existentes na literatura de papel. A blogosfera já pode reivindicar a criação de pelo menos um gênero textual, ao qual se pode chamar Diário Multimídia. Misturando textos de vários tipos, imagens, sons e a interação constante com o leitor, o Diário Multimídia representa uma incontestável inovação de gênero no contexto da literatura.

 

7ª Tese

Toda a blogosfera permanece, por suas próprias características constitutivas, inclusive a facilidade de acesso e operacionalização, uma obra essencialmente em progresso, no sentido de ser aberta, contínua e plural.

 

 

março, 2009
 
 
 
 
Márcio Almeida Júnior (Oliveira/MG, 1972). Escritor, empresário do ramo de comunicação e professor de Língua Latina, Literaturas de Língua Inglesa e redação avançada no ensino superior. Licenciado em Letras pela Fundação Educacional de Oliveira (FEOL), obteve à época o primeiro lugar nacional em avaliação de desempenho do MEC em sua área. É editor do jornal UAI! Notícias, redator-chefe do jornal Tribuna e da revista Memória, diretor de jornalismo da Rádio Sociedade AM, todos no Centro-Oeste de Minas Gerais. Escreveu "Crônicas Quixotescas", "ABC da Pesquisa" e outros textos. Mantém o blogue Viver e Contar e dedica-se à crítica literária, com ênfase na literatura virtual.