"As cores mágicas, quase dramáticas do outono britânico descem de Londres para o sul, cobrem os campos e as ovelhas, cruzam estradas, atravessam pequenas cidades como Ashurt, Shorehame Partridge, com suas casas de tijolos com janelas brancas, e chegam a Hove e Brighton, típicos balneários europeus, beliscados por gaivotas famintas e pontilhados de hotéis confortáveis e iluminados". – Rodolfo Konder, "No Outono de Sussex", O Destino e a Neve

 

 

É na densidade plástica das paisagens de neve que Rodolfo Konder alicerça a maior parte das trinta e quatro belas narrativas que compõem seu recém-lançado livro O Destino e a Neve (São Paulo: RG Editores, 2009, 111 p.). Nesta vigésima-primeira obra, o jornalista combativo e premiado escritor apresenta crônicas — gênero de que é um dos mestres na literatura contemporânea —  enriquecidas por memórias e reflexões concernentes a fatos históricos relevantes do Brasil e do mundo.

Na confluência entre seus misteres de professor, ativista político e jornalista — faces notoriamente conhecidas nas quase cinco décadas de incessante trabalho — brota o escritor sensível, que tece um estilo narrativo marcado por singularidades. Da mescla entre o rigor aprendido com o pai, Valério Konder, médico sanitarista e destacado membro do Partido Comunista Brasileiro, e a descontração e a irreverência experimentada sob o sol tropical nas areias de Ipanema, na adolescência e juventude, ergue-se um intelectual sempre alerta, ativo e combatente, que, mesmo diante das maiores  adversidades, perseguições, prisões e exílios, jamais perdeu a ternura e o humor.

A estrutura narrativa deste novo livro é construída a partir de uma sintaxe especial, em que as palavras ultrapassam as rotas secretas do real e meramente referencial e encontram a magicidade das reflexões sobre a existência, o futuro, a diversidade. Os temas eleitos pelo autor compreendem muitas das principais questões  do século vinte e início do século vinte e um: a resistência política, a proteção aos direitos humanos, o desmoronamento dos governos totalitários, a liberdade de convicção, o esfacelamento das utopias, a intolerância religiosa, o desarmamento, o multiculturalismo, a voz da pluralidade e da diversidade como signos de  um novo modo de o homem ser e estar no mundo.

Rodolfo Konder propõe ao leitor uma viagem por dois discursos, o roteiro geográfico, que passa pelos Estados Unidos, Guatemala, Canadá, Finlândia, Irlanda, África do Sul, Portugal, Canadá, França, Espanha, Inglaterra, Japão, Suécia – registros de encontros, congressos, missões especiais, reportagens, e o roteiro subjetivo e complexo, que evoca a imprevisível mudança de ótica decorrente de sua rica experiência profissional.

Em O Destino e a Neve, Konder descreve o bairro de sua infância, na zona sul carioca:

 

Havia o bairro, que na verdade começava no Arpoador, crescia, internamente, a partir da Praça General Osório, avançava pela Visconde de Pirajá, chegava até a Lagoa Rodrigo de Freitas e terminava no Bar Vinte, logo depois do Cine Astória, onde o bonde e o vento faziam a curva. Algumas ruas ainda eram de terra. A Nascimento e Silva era asfaltada, mas só a partir da Farme de Amoedo. Morei ali, na casa de número 87. Na esquina de Barão da Torre e Farme de Amoedo, "seu" Afrânio tinha um açougue ("As areias de ontem", O Destino e a Neve, p. 109).

 

Vislumbra-se neste toque autobiográfico a construção do tecido a que se refere Jorge de Sá1:

 

... O elemento autobiográfico funciona como linha costurando o tecido da vida, tecendo a renovação do imaginário, através do qual o homem se reafirma como ponte para outras formas de conhecimento e convivência (grifo nosso).

 

Alguns personagens reais se destacam nesta ótica:

 

Havia a gente do bairro. Primeiro, os meninos sem sobrenome que moravam em cortiços e brigavam de gilete na mão. Joaquim, o Quim, tinha um quisto supurado na bochecha esquerda, por onde expelia a fumaça do cigarro, se lhe dessem 500 réis (p. 118).

 

Noutras crônicas o elemento histórico prepondera: 

 

O conquistador espanhol Hernán Cortez chegou à América em 1519. Barba ruiva, montado a cavalo, dono do aço e da pólvora, avançou com os seus 500 homens sobre a capital do Império Asteca, a Cidade do Lago, hoje cidade do México. ("A serpente emplumada", p. 55).

 

Os fatos históricos relembrados e revisitados não recebem tratamento convencional. Sua leitura prazerosa, jamais árida, seduz o leitor, implicitamente convidado a viajar com o cronista, pelo tempo e pelo espaço, até mesmo "de volta para o futuro", desafiando a lógica da linearidade, expandindo as fronteiras do pensamento, na leitura política do mundo e no templo sagrado da arte.

Influenciado pelo "new journalism", Konder começou a publicar suas obras de ficção em fins da década de setenta, obras inicialmente escritas no Canadá (Montreal) e nos Estados Unidos (Nova York), época de seu segundo exílio2.

A clareza de pensamento revela a vocação de Rodolfo Konder para a atividade docente, enquanto a veemência na defesa dos direitos fundamentais do homem e a seleção dos temas presentes no livro denunciam o combatente jornalista e líder político, que, nos anos oitenta, presidiu a Seção Brasileira da Anistia Internacional, uma das mais importantes entidades destinadas à intransigente defesa dos direitos do indivíduo, nascida em 1961, com o propósito de criar uma ajuda prática às pessoas presas em razão de convicções políticas ou religiosas, ou em virtude de preconceitos raciais ou linguísticos. Como dirigente da Anistia Internacional, em sua seção brasileira, Konder cumpriu missões diplomáticas de destaque, colaborando, com a firmeza de sua palavra, para a eclosão e a consolidação do conjunto de crenças humanistas tecidas no período posterior aos anos do maniqueísmo estreito, redutor e vazio que marcou o tempo da chamada "guerra fria".

Em textos como "O Destino e a Neve" (que dá nome ao livro), "Tristezas de Gelo", "Neva sobre Nova York" e "Rastros na Neve", escritores, monges, poetas, estudantes e líderes políticos escrevem seus passos em trajetórias de gelo. Os olhos do cronista descortinam, em meio a essas figuras, o voo de uma gaivota ou o hálito de um vulcão adormecido, fazendo ressurgir, no reino polivalente e polissêmico das latências, a música de estradas, exílios e regressos.

A crônica, gênero amplamente utilizado por grandes intelectuais e escritores brasileiros, desde Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Luís Martins, Rubem Braga, entre tantos outros, encontra em Konder um terreno fértil para seu desenvolvimento. Camadas e subtextos de diferentes matizes erigem um policromatismo ímpar: o encontro entre os aspectos factual, afetivo e filosófico, uma das principais estratégias do autor.

Na pele do ilógico tempo, a estrada alquímica de Rodolfo Konder é reveladora de uma escrita singular, fruto de engenho e sensibilidade. Transpondo a paisagem visível, o autor conduz o leitor por rumos onde contempla e ilumina as mais significativas frestas da contemporaneidade. Entre descobertas, batalhas, lendas e emoções, com a elegância de um pintor e a plena consciência de seu tempo,  escreve Konder:

 

Há uma ideia de rio que precede o batismo dos rios. Ela corre à frente do rio real, é símbolo e metáfora, jamais nos abandona, nem sequer no sono. Os rios de hoje passam pelos labirintos da razão antes de desaguar nos oceanos ("Amazônia Revisitada", p. 72).

 

 

 

Notas

 

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O livro: Rodolfo Konder. O destino e a neve. São Paulo: RG Editores, 2009.

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dezembro, 2009

 

 

 

 

 

Rodolfo Konder em Germina

> Entrevista, por Beatriz Amaral

 

 
 
 

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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