*

 

O que existe

fala

 

não há silêncio possível

para o que nasce

 

fossa abissal

cosmo delirante

em forma manifesta

 

Se hieróglifo e não podes

traduzi-la,

se a presença prescinde que saiba,

calma

 

O que existe fala

mesmo inominável

 

 

 

 

 

 

*

 

Vertical

é a árvore

não seu intento

 

Vertical

é o prédio

não seu rumo

 

Vertical

é o humano

não seu voo

 

 

 

 

 

 

*

 

Luciferino desejo:

 

ao dizer folha, sol e azul

que repentina

a amendoeira

verdíssima

filtrando luz

sob este céu-agosto

varasse-te a pupila

feito um êxtase

 

 

 

 

 

 

*

 

Desimporta

que o grão do instante

vivo intenso

depois pó

se perca e

menos que nada

se anule

existir também é isso

 

como se não tivesse sido

 

 

 

 

 

 

Nu

 

A ordem gritada e a

possibilidade cumprida:

 

— Sem roupa!

— Sem pele!

— Desossa!

 

A ordem esganiçada pela

impossibilidade de cumpri-la:

 

— Sem alma!

 

 

 

 

 

 

*

 

Dar, não posso

mas esta manhã

implora agasalho

completa intimidade

sem posse

 

Dou o que em mim

rutila:

barro

sonho

saliva

 

Dar, não posso

mas como quem

exaurido

do gesto-falência

não se veda

e outra vez

se arremessa

 

 

 

 

 

 

Aula

 

 

Aprende:

 

o gesto gratuito

sem esperança de níquel

do menino-semáforo

 

Ensina:

 

a luz também lacera

o silêncio pode corromper

 

 

 

 

 

 

*

 

Fluxo não é jorro

 

exemplo:

Heráclito

 

Sentir não se piegas

 

vê:

acácias

 

Suave pode ser aresta

 

exemplo:

vértebras

 

 

 

 

 

 

*

 

Nudez nenhuma é completa

e o que desconhece

além da veste-pele-alma?

 

Acaso teus espelhos morais

darão-te o reflexo puro?

Que bisturi desvelaria

tua verticalidade?

 

Deita-te sem espera

(mas prepara-te)

no teu sofá-penitência

suavizada

pela nudez semiaberta

 

 

 

 

 

 

*

 

A Criação é um peso

no trabalho divino,

nem Deus é livre

em seu ofício

Serão os pássaros

sobre as acácias

no espaço do pátio?

 

Duvido

 

 

 

 

 

 

*

 

Interessa-me Absurda

tudo o que tocas:

cristal ou saliva

e a natureza gasosa

do que inominável

te aproximas

em tuas

alucinadas formas

 

 

 

 

 

 

Pancetti

 

Tento mas o mar não cede:

 

fímbria de espuma

onda chiando na areia

distância equórea 

 

O mirante ri

do tentame,

que quando muito

resvala no limite

translúcido

 

Tento mas o mar não cede:

 

debuxo em safira

desfronteirado entre

céu e água

 

Lição: o sal sulcando o rochedo,

derrota convertida em memória

 

 

 

 

 

(imagem ©toko)

 

 

 

 

 

 

Lúcia Delorme (São Paulo/SP, 1974). Formada em Psicologia, vive em Salvador/BA. Autora do livro de poemas Raízes aéreas, inédito. Escreve o blogue Raízes Aéreas.