[Cinco fragmentos do livro inédito Depois da breve vértebra]


Fragmento 22

 

o poema — esses meus fragmentos de fala, relances de rosto — agora me antecipa o tédio, esvazia tudo que há ao redor, me despeja sozinha em ruas longe da maior direção. a propriedade tóxica da linguagem e os desesperos de escapar a melancolia para colidir o real. o toque rugoso com o real é que me agride, toma a minha voz, arrebata o meu silêncio,

 

átimo, 

 

em que todo signo está por um triz,

 

agressivamente real.

 

sabemos que toda fala nunca é suave, até mesmo o silêncio despedaça porque é lúcido. tudo é impiedoso, excessivo no seio, no tórax, nos membros pálidos, na existência artesanalmente posta sob a contenção da experiência.

 

 

estendo o poema, então,

retiro tudo, furto todo

corpo

palavra

 

o silêncio lúgubre,

o torpor,

a transpiração além de um pássaro

o pio, a potência

 

(voz que violenta

possibilidades de mar

e asila a sede

em retalhos de deserto)

 

 

 

 

 

 

Fragmento 23


é o desejo de tatear as suas vontades que me provoca o poema, me tira o sossego da audição pacífica, do despreparo, do conforto do que não é pensamento, do que não é tradição ou tempo. o meu tédio histórico, noturno, cheira nossos movimentos escassos, interrompidos pelos meus outros rostos. não que alguém me deva o entretenimento, não que alguém me deva o verbo, nem mesmo a palavra, uma palavra que rompa o espaço eterno. sem cheiros, sem livros, sem ainda ou breves espasmos de laços. devolva-me as possibilidades de fala, de mar, de um fim para esta casa vazia. e o olhar que perdi numa viagem, numa infância. e o olhar permanece breve. que a linguagem se guarde tóxica e o meu chão receptivo ao rosto pálido. eu carrego, sim, um desespero comigo, sozinha e perpétua — que ninguém padeça só de si, de nomes, ausente de línguas. e que não nos falte orações, ainda que vãs, ouvidas em sussurro ou em promessas. eu que não morro jamais tenho a razão nesses órgãos precarizados pelo asfalto que me fragiliza quando me atrito com a vontade de despertar e, arranjados pelas necessidades de me eximir da existência, da atuação. sou especular, côncava. os órgãos, a febre endógena, o cheiro dos malefícios da continuação e do estar contemporâneo ao corpo só pavimentos, interrompido além de ocupado como as gôndolas dos supermercados repletas de lacunas. eu mesma arrependida prefiro esse dispêndio esse amargo do asséptico a viver com o rosto inundado ou os membros submersos na sua poesia viril. o que te aproxima, marcos? penso no cheiro do lodo ou da própria efemeridade que também pouco te consterna. suas ausências igualmente plásticas. mais ainda, o que te habilita, marcos? — se o seu nome me soa cada pronuncia mais pesado. em algum momento, um dos silêncios se propaga e todo eco arremata isso que um dia se chamou sedução mas tanto foi esticada que se manteve frouxa, inutilizável. quando digo afeto quero dizer solidão e quando te deserto de palavras não é que eu não tenha falas, é como violento o seu corpo e preencho o seu tempo de mim.

 

 

 

 

 

Fragmento 24

 

mais uma vez o desejo a me acometer no toque e tentar calcificar a ausência diagnosticada pelo próprio peito. é entre o gozo e a agonia que se instala a exaustão, esse grafo como assinatura de desassossego. as minhas bocas só por um instante, depois nunca mais e, em seguida, sempre mais um relance. se é verdade que além das roupas brancas te percebo monotonia? se é poeta me entende: meu medo seria maior se eu mesma me dissesse. e é por isso que durante esses anos tenho me ensinado completamente: as lições no corpo, na leitura do verso em seu olho já nítido. tenho tentado ser intensa e febril e por mais que eu peça silêncio, nunca se distraia de mim e se cegue. ou nunca perdoarei seu rosto-menino, sua complacência com a minha brevidade. é porque devo te habilitar a usar minha voz que me instalo diariamente ao seu lado, dentro dos ouvidos, nasço continuamente na sua cabeça. sei que você me repete e em surdina decora poemas meus. é mesmo assim que deve ser: eu ilha e você só travessia, fulgor de mim, diligência em meu discurso cicatrizado.

 

 

 

 

 

 

Fragmento 25


porque assim como a falta de sono e a repetição, me enjoa o insípido:

 

                não é a mim que você dirige seus afetos, moço — a gente se chama moço moça e raramente  digo o seu nome a você e raramente digo o meu nome e raramente nos tocamos

 

não é a mim que você se dirige quando olha o meu rosto e exalta a minha poesia ou o meu corpo. por mais que pareça surda às suas palavras, admiro secreta sua eloqüência, mas por que se ocupa tanto de mim, se não sou o que prefere tocar, tampouco quem prefere ouvir? nossa existência ficará sempre posta sob um signo de dúvida — ora da minha pertinência ora da sua perspicácia.                 um livro e o que mais devo esperar, poeta? conselhos e ouvidos? mas é o fôlego que me falta, a fome que por um instante suponho ter cessado. como repor a fome ou doar o fôlego? como você me salvaria, poeta? se te pedisse o ato irreparável de me amar sem que peça a um arauto notícias minhas — seria esse tolo? poderia descumprir promessas, moço? tocar realmente meu rosto sem enaltecer a ausência que tanto te arrebata? só me interessa o que pressupõe a perda é por isso que, apesar deu nunca estar com você, te reconheço meu noviciado e  ouço atenta cada ambigüidade do seu gesto. estamos um para o outro por um triz e é isso que faz com que não nos percamos. é a palavra, moço,  na guerra perpétua, que media nossa cumplicidade. de outras faces, de paz, não sou cúmplice, sou guerra.

 

 

 

 

 

Fragmento 26


meus rostos frágeis e minha linguagem-altivez não confundem ausência com poesia, poemas com miragens, fulgor e corpo. não me elabore, então, lúgubre, quando peço silente sua compreensão tenaz. registre, além dos versos, minha lucidez.

 

 

 

(imagens ©adamamator)

 

 

 

 

Marcos A. Ramos nasceu em 1988, é graduando em Letras-Português na Universidade Federal do Espírito Santo, em Psicologia na FAESA – Faculdades Integradas Espirito-Santenses e integra, desde 2006, o grupo de pesquisa Narrativas modernas e contemporâneas (CNPq). Tem colaborado com diversos textos poéticos e críticos em revistas e periódicos. Em 2010 publica os livros O corpo de uma linha (poesia) e Depois da breve vértebra (poesia).