O surfe é uma prática diária em uma cidade praieira como a nossa — Rio de Janeiro — e em um país como o Brasil, cujo litoral é inteiramente propício a essa arte. Além disso, temos e tivemos inúmeros campeões de várias categorias. Em uma conversa com o Rodrigo de Souza Leão, descobrimos que ambos tínhamos poemas inéditos, realizados a partir de nossa admiração pelo surfe. Lembrei em seguida que Antonio Cicero, outro grande amigo, também tem um poema, publicado no livro Guardar, que tematiza o surfista. Assim, resolvemos juntar nossos poemas e dar visibilidade ao conjunto. [Alberto Pucheu]

 

 

 

 

 

Na faculdade, escutei que alguém, tempos atrás,

teria dito: tudo é água. Quando o jet ski

me reboca, largando-me no topo

destas ondas anteriormente começadas

e não escolhidas por mim, máquina, mar e eu

somos apenas um, a mesma entidade viva

respirando uma ausência qualquer de limites.

Sei que posso morrer a cada instante

no improviso. Que, perdido no terror

de uma mandíbula, sem saber

de que lado está a cava nem de que lado,

a crista, triturado dentro desta mastigação

por uma avalanche de águas,

uma onda pode me matar. Sei que a máquina,

com o companheiro a acelerando em vão,

igualmente imersa em bolhas, solavancos

e espumas muito mais potentes do que ela,

ainda pode falhar, não rebocando mais uma vez

a minha vida, deixando-a espatifada

em algum rochedo próximo ou num coral submerso.

E quem tem força para matar

é sempre muito perigoso. É tão assustador

que acho mesmo que já morri

algumas vezes

no caldeirão de água espumante

onde, no fim das contas, não existe segurança.

Renasço, a cada dia, de dentro do caldo

do esquecimento e da vala do sono.

Surfar nem sempre é o mais difícil; o mais difícil

é conseguir sobreviver. Este mar é o local

em que homens e meninos se distinguem.

Em que homens recebem suas medidas

sobrehumanas. Em que homens

eram menores do que ele, até conseguirem surfá-lo.

Não venham para cá se não puderem contar

com seus próprios culhões. E com algo mais.

Não venham para cá, se, pelados pelas ondas,

não se garantirem. E, mesmo assim, não venham...

Não venham para cá se não puderem

morrer. Se não puderem ser um com o mar.

Se não souberem que a prancha que me separa —

mínima linha no abismo, quilhas e bordas

em manobras, cortes, idas

e vindas sulcando o muro infinito —,

é a mesma que me une ao sol de água:

a prancha da coragem e da perícia

que, usando a força para lidar com a força,

me preserva num ínfimo já líquido de mim.

Aqui é o único ambiente em que,

enquanto os homens se sentem horrorizados,

eu, bicho marinho, me sinto em casa.

Aqui é o limite entre o prazer, o êxtase

e a morte. Mesmo com o barulho do motor

da máquina marítima, do vento forte

dificultando tudo ainda mais, da zona de impacto

nos arrastando submersos na água gelada

por mais de 200 metros, do helicóptero

que espreita com suas câmeras por cima,

da prancha vibrando seu impacto

no estalo repetido contra a superfície aquática

e no ritmo ofegante das batidas do coração,

aqui é o lugar mais silencioso que existe:

escuto a circulação do sangue dos golfinhos,

tubarões e gaivotas, o sistema nervoso

das areias, horizontes e céu, a voz rudimentar

de algas, ostras, conchas e ouriços.

Por isso, volto sempre para cá,

para essas ondas monstruosas

em cujos topos me sinto maior

do que os penhascos que me espreitam

por sobre as cidades dos homens e arranha-céus,

sabendo que, aqui, o estilo não é nada

senão o imposto a cada um pela necessidade

da vida em seus extremos.

Não temo os 30 metros que me cobrem

(nem o bafo que se estende por 100 metros),

mas as coisas mesquinhas dessa vida.

 

 

 

 

 

 

                (Tauchen mußt du können, mußt du lernen

                                                                   […])

 

É preciso aprender a ficar submerso

por algum tempo. É preciso aprender.

Há dias de sol por cima da prancha,

há outros, em que tudo é caixote, vaca,

caldo. É preciso aprender a ficar submerso

por algum tempo, é preciso aprender

a persistir, a não desistir, é preciso,

é preciso aprender a ficar submerso,

é preciso aprender a ficar lá embaixo,

no círculo sem luz, no furacão de água

que o arremessa ainda mais para baixo,

onde estão os desafiadores dos limites

humanos. É preciso aprender a ficar submerso

por algum tempo, a persistir, a não desistir,

a não achar que o pulmão vai estourar,

a não achar que o estômago vai estourar,

que as veias salgadas como charque

vão estourar, que um coral vai estourar

os miolos — os seus miolos —, que você

nunca mais verá o sol por cima da água.

É preciso aprender a ficar submerso, a não

falar, a não gritar, a não querer gritar

quando a areia cuspir navalhas em seu rosto,

quando a rocha soltar britadeiras

em sua cabeça, quando seu corpo

se retorcer feito meia em máquina de lavar,

é preciso ser duro, é preciso aguentar,

é preciso persistir, é preciso não desistir.

É preciso aprender a ficar submerso

por algum tempo, é preciso aprender

a aguentar, é preciso aguentar

esperar, é preciso aguentar esperar

até se esquecer do tempo, até se esquecer

do que se espera, até se esquecer da espera,

é preciso aguentar ficar submerso

até se esquecer de que está aguentando,

é preciso aguentar ficar submerso

até que o vulcão de água, voluntarioso,

arremesse você de volta para fora dele.

 

 

 

 

 

 

  

 

A pele salgada daquele surfista

parece doce de leite condensado.

Como seu olhar, o mar é narcisista

e, na vista de um, o outro é espelhado

e embora, quando ele dança sobre as cristas,

goste de atrair olhares extraviados

de banhistas distraídos ou artistas,

é claro que o mar é seu único amado.

Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,

ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste

e usa do outro uma gata e um brinco e assiste

serenamente ao horizonte inflamado

e a brisa o alisa e enfim ele não resiste

à beleza e diz "sinistro!" e ouve eco ao lado.

 

 

 

 

 

 

 

                À Márcia Maia e Carlos Burle

 

o eterno está sempre voltando

junto com as ondas que escondem as pedras

ou às vezes as anáguas de água se afastam

para que uma onda construa alguma gota de fim

naquele infinito derrame que é o crepúsculo de sangue

 

sabe quantas notas no rodapé de um poema

podem explicar o que não é outra vida

ou o que a eternidade demarca como limítrofe

dizendo sempre que se evade no final da tarde

ou que navegar é viver do que é necessário e preciso

 

o eterno é sempre um abismo com plumas

nos esperando se alçados à condição de seres além

do que normalmente penso que existo pois penso

quem criou a cadeia de eternidade aberta ao ódio

quero é olhar muito além do mar do arpoador

 

e eu trocava eternidade se ela for o que ela é

por ter surfado aquela onda que o médico surfou

pois já tive ódio dos surfistas porque eles vivem

cada dia como se a eternidade voltasse como o mar

salgado, ó mar, quanto sal é Portugal?

 

cada onda como se fosse a última que é e cada

palavra como se não tivesse a importância que tem

para os letrados como os donos da face escura

pois surfista surfa a sua loucura sem pensar no poder

que pode estar numa palavra de trinta metros

 

 

 

 

junho, 2009
 
 
 
Alberto Pucheu (Rio de Janeiro/RJ). Escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, os livros A fronteira desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007) Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007 e Pelo colorido, para além do cinzento;  a literatura e seus entornos interventivos(Ensaios. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007). Mais em seu site.

 

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Poemas

 
 
 
Antonio Cicero (Rio de Janeiro/RJ). Poeta e filósofo. Publicou, entre outros, o livro de poesia Guardar (Rio de Janeiro: Editora Record, 1996), que foi vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura, na categoria Estreante e o disco Antonio Cicero por Antonio Cicero (Rio de janeiro: Editora Luz da Cidade, 1997), em que recita poemas de sua autoria. Poemas seus constam da antologia bilíngüe Outras praias / Other Shores (São Paulo: Iluminuras, 1998, organizada por Ricardo Corona); da antologia Esses poetas (Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 1999, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda); da antologia 41 poetas do Rio (Rio de Janeiro: Editora Funarte, 1999, organizada por Moacyr Félix); e da coletânea de textos Mais poesia hoje (Niterói: Editora Universidade Federal Fluminense, 1999, organizada por Célia Pedrosa, Cláudia Matos e Evando Nascimento). Edita o blogue Acontecimentos.
 
 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há flores na pele, e de Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008) entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita o blogue Lowcura.

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