O PREÇO DA HONRA PERDIDA NA RUA FORMOSA

 

 

Na cidade de São Paulo, a rua Formosa, que hoje começa na rua Quirino de Andrade e não passa de um pequeno apêndice do que se tornou o Vale do Anhangabaú, existe desde que o presidente da província era José Antônio Saraiva, ou seja, desde o ano de 1855. Ligava o Açu (Av. São João) ao Piques (Praça da Bandeira) e era um caminho ladeando os charcos do Anhangabaú. O povo denominou‑a Formosa embora fosse um caminho estreito e agreste. No ano de sua abertura ocorreu ali um estupro cujos autos repousam no Arquivo do Estado.

No sumário de culpa, o Delegado afirma ter tomado conhecimento de que no dia quatro do mês corrente (novembro), mais ou menos pelas oito horas da manhã, passando pela rua Formosa em direção ao Seminário das Educandas onde ia assistir à aula pública de primeiras letras, Maria do Rosário, menor, branca, filha de Antônia Maria da Conceição, foi deflorada pelo preto João, escravo do Doutor Rafael de Araújo Ribeiro. A informação chegou à delegacia através de testemunhas moradoras da região. Diante dos fatos e da própria vítima, que lá chegara pouco depois do ocorrido, acompanhada de três mulheres atordoadas, o Delegado não teve outra alternativa que convocar os médicos para o exame apropriado ao caso.

Nos autos de corpo de delito descreve‑se que no dia quatro de novembro de 1855, às duas horas da tarde, no Seminário e Educandário desta Capital, estavam presentes o Delegado de Polícia, Dr. Francisco Maria de Souza Mendonça Furtado, o Cirurgião‑mor Salvador Machado de Oliveira, o Cirurgião‑mor Joaquim Antônio Pinto, ambos profissionais, moradores, o primeiro na rua do Imperador e o segundo no largo da Cadeia. Estavam presentes as testemunhas Maria Leocádia do Sacramento, moradora no mesmo Seminário de onde era diretora, e Ana Antônia da Costa Guimarães, também moradora no Seminário. Sobre as Sagradas Escrituras, os profissionais juraram responder no primeiro caso, o da honra, se houve defloramento e violência para fins libidinosos, e qual o meio empregado; e no segundo caso, o físico, se havia ferimentos ou ofensa física, se o mesmo era mortal, qual o instrumento que o ocasionou, se houve mutilação ou destruição de algum membro ou órgão, se o mal resultante do ferimento ou ofensa física produziria grande incômodo de saúde, se impossibilitaria serviços e finalmente qual o valor do dano causado. O Delegado determinou que os peritos fizessem os exames e investigações que desejassem, sem se esquecer de que o corpo de delito se procedia em uma inocente vítima, imolada no furor mais brutal, tendo apenas doze anos incompletos. Assim sendo, as indagações necessárias deveriam ser feitas com a decência que tal ato requeria, na presença do Delegado de Polícia e de duas respeitáveis matronas.

Apesar de seu corpinho onde timidamente se insinuavam as turgências da feminilidade, a entrada de Maria do Rosário, vestida de branco, iluminou o sério salão onde figuras tão respeitosas esperavam‑na para a árdua tarefa. Alegre, com os olhos muito abertos e vivos, ela sujeitou‑se ao penoso exame sem mostrar espanto ou timidez. Após as devidas investigações, os peritos deram seu parecer: As alvas roupas, que atestavam a honestidade, mantiveram‑se imaculadas. A região pubiana, o monte de Vênus, ainda não povoado pelos arautos da puberdade, apareciam em um estado anormal, isto é, intumescido e de um tamanho fora do comum, o que fazia crer que aquela parte havia sofrido fortes compressões. Os grandes lábios encontravam‑se intumescidos e com uma cor alterada pela mesma causa. As ninfas e o clitóris, em vez de uma cor anacarada, sobressaíam‑se em um vermelho profundo e negro, sinais estes que justificavam terem aquelas partes passado por um ato prematuro e ofensivo à boa moral. Viam‑se rasgões e solução fecundante em diversas partes da vagina que vertia sangue. E, julgando suficientes estes sinais para chegarem ao perfeito conhecimento dos estragos que a vítima havia sofrido, deixaram de levar mais longe suas investigações a fim de conhecerem o estado do hímen, membrana tantas vezes falha, que levava a lastimáveis enganos. Com inabalável convicção, atentos aos sinais por eles observados, os peritos afirmaram que a inocente estava completamente deflorada e que, além do encontrado nas partes acima referidas, ainda acharam outros sinais como pequenas arranhadelas no ombro direito, que poderiam ter sido feitas por um gato ou um galho de árvore. Respondendo às perguntas da justiça, declararam que houve o defloramento e que o meio empregado foi o instrumento que a natureza indicava para tais atos. Quanto ao físico, descontada a parte do corpo já mencionada, não havia mutilações ou ferimentos mortais, nem muito menos ferimentos que a impossibilitassem de continuar seus afazeres. Com referência ao valor, não conheciam o preço da honra de uma mulher.

No dia seguinte, frente às mesmas testemunhas, Maria do Rosário, a ofendida, respondeu a um interrogatório afirmando que tinha doze anos, era solteira, filha de Antônia Maria da Conceição e do falecido Francisco de Castro, ambos nascidos em São Paulo, e que sua ocupação era freqüentar a referida aula de primeiras letras. Vivia na freguesia de Santa Ifigênia. Após dar essas informações sobre sua pessoa, a menina Maria do Rosário, com o mesmo ar alegre e descontraído do dia anterior, que por momentos chegava a ficar concupiscente, contou que, a caminho da escola, passando pela rua Formosa, que era uma rua recém aberta e dava de fronte ao Seminário, o preto João chamou‑a e empurrou‑a na direção de um capãozinho, pelo que ficara ofendida no ombro. Com gestos adequados ao caso, mas estranhos aos sérios doutores e matronas, a vítima declarou que o negro jogara‑se sobre ela, fazendo‑a escorregar até a posição propícia para seus desejos. Tirou‑lhe o vestido e lhe metera dentro, indicando com as próprias mãos o local.

Controlada a muda comoção que a presença e os gestos da vítima causaram, foram feitas as devidas convocações do réu acompanhado do seu dono, assim como as testemunhas para efetuar‑se a audiência pública.

A primeira testemunha foi Firmino José Soares, de quarenta e sete anos, empregado público, casado. Depois dos juramentos, disse que, estando nos gerais da Academia, ouvira dizer que o preto João, escravo do Dr. Rafael de Araújo Ribeiro, tinha conduzido uma menina, filha do falecido Francisco de Castro, da freguesia de Santa Ifigênia, a um capão da rua Formosa, para violentá‑la. Isto lhe fora contado por um filho de Fortunato Antônio da Silva; que ouviu da própria mãe da vítima. Passando ela pela sua porta, falou‑lhe que o negro havia arrombado sua filha e que a menina se achava bastante machucada, embora a dita menina estivesse em sua companhia e não demonstrasse, em nada, ares de enferma. O filho de Fortunato afirmara que a menina mostrava muito boa saúde e disposição, assim como um belo sorriso nos lábios e um brilho bastante acentuado nos olhos.

A segunda testemunha foi Ignácio Plácido da Silva, de vinte e cinco anos, empregado público, solteiro, morador no Pátio de Santa Ifigênia, e que declarou ter tomado conhecimento do ocorrido pela boca de Fortunato de Tal. Este lhe contou que indo pela rua nova, chamada Formosa, ouviu a gritaria da mulherada da vizinhança para que se pegasse o negro que arrombara a menina. Pouco depois, Fortunato viu sair do mato, que fica mesmo fronteiro aos fundos da casa de Antônia Navalhada, um negro que o mesmo Fortunato disse conhecer ser João, escravo do Dr. Rafael de Araújo Ribeiro. Saindo do mato, com as calças manchadas, o mesmo negro pediu a Fortunato que não dissesse a ninguém que o vira ali. A seguir, Fortunato viu sair a menina, com a expressão bastante ressabiada, porém com as roupas limpas e sem mostras de violência. A pedido do negro, naquele dia, Fortunato não falou sobre o ocorrido.      

Foram, então, interrogadas duas testemunhas informantes, ou seja, testemunhas autorizadas por lei a depor no juízo criminal sem correr o risco de serem acusadas de perjúrio. A primeira delas chamava‑se Antônio Lopes, de doze anos, filho de Felisberto José Lopes e de Eduarda do Espírito Santo, aprendiz de carpinteiro e solteiro, morador na freguesia de Santa Ifigênia, na rua do Hospital pegado à casa de Antônio Gomes. Passando pela rua nova e achando‑se no fim das taipas, fundos da casa do senhor Santos, viu o escravo João, que era pedreiro e que morava no Pátio de Santa Ifigênia, sair do mato da casa do dito senhor Santos, abotoando as calças e tendo entre as pernas, no lugar do pente (local que a testemunha designou apontando com as mãos), manchas escuras. Negro João saía ressabiado, após ouvir vozes gritando para que ele largasse a menina. Mais tarde ouviu dizer que o João contara não ter conseguido fazer a introdução completa do pênis por causa da gritaria das mulheres da vizinhança.

A segunda testemunha informante foi Pedro Antônio Rodrigues de Oliveira, de vinte anos, Cabo da Esquadra do Corpo de Municipais, morador na travessa da ladeira do Porto Geral. Contou ele que ao entregar a notificação ao réu e seu dono para comparecerem em juízo, encontrou somente a senhora que afirmou estar seu esposo na fazenda de sua propriedade no Jaraguá, e que João havia ido com ele. A senhora disse também que João era um escravo de inteira confiança, e tal era o crédito nele depositado que costumava sair e entrar muitas vezes ao dia, sem que lhe pedissem satisfações de onde ia nem do que fazia. E ela não acreditava no que se dizia a seu respeito. Ele era uma pessoa nascida e criada em sua casa, sabia ler e escrever e jamais arrombaria uma criança de doze anos.

A terceira testemunha juramentada foi Gertrudes Umbelina Eugênia de Camargo, de quarenta anos, que vivia de suas costuras, solteira e moradora na rua de São José. Declarou ela que em sua casa, que dá fundos para a rua nova, estando na varanda juntamente com Josefa Emília Prado, foi chamada aos gritos por sua vizinha, Angélica de Toledo. Aos prantos, Angélica gritava que um negro havia trazido para o mato uma menina bem bonitinha que ela conhecia de ver passar por ali todos os dias. Gertrudes correu ao fundo do quintal e, ao ver o negro sobre a menina, começou a gritar com quantas forças tinha. O diabo do negro largou a menina, saiu do mato e dirigiu‑se rua Formosa acima em direção ao Açu, e, quebrando para a outra banda do quintal do cortume que passara a pertencer a João Sertório, pulou o muro e desapareceu. A seguir, viu que a menina foi saindo do mato assustada porém vestida, com a roupa sem marcas de violência, tomando diretamente o caminho para o Seminário. Gritando, Angélica reuniu‑se a ela e às outras mulheres da redondeza para levar a menina à delegacia.

A quarta testemunha foi Josefa Emília Prado de quarenta anos, mais ou menos, que vivia de suas costuras e engomados, solteira e moradora na rua São Bento. Estando na casa de Gertrudes Umbelina de Camargo, na varanda, esperando por uma xícara de café, ouviu a gritaria da vizinha. Repetiu tudo o que a testemunha anterior já havia dito e acrescentou que viu sair do mato a menina bem vestidinha e penteada, sem indícios de que acabava de ser violentada por um negro. De qualquer forma, ajudou a socorrê‑la e acompanhou‑a à delegacia.

A quinta testemunha foi Angélica de Toledo que, tendo também ajudado a socorrer a vítima, narrou todo o ocorrido, sem acrescentar nada de novo ao caso.

Testemunhou João Antônio de Jesus, de dezesseis anos, alfaiate, solteiro, morador do Pátio de Santa Ifigênia. Declarou que passando pela porta do Dr. Rafael de Araújo Ribeiro, dono de João, encontrou o filho mais velho do referido doutor, que lhe afirmou ser o preto João um escravo de muita estima e que só havia se deitado com a menina porque ela lhe pedira com muita insistência. João sabia que era negro e escravo e conhecia o seu lugar. A gritaria da mulherada da vizinhança atrapalhara o pedido da menina, fazendo com que ele só tivesse tempo de introduzir a cabeça do pênis.

A seguir, ocorreu o testemunho de Clementino, escravo de Dona Teresa Alvim, de vinte e seis anos, mais ou menos, servente de obras, solteiro, morador com sua senhoria na rua Boa Vista. Estando a construir uma pilastra perto do local, viu chegar João com a aparência de ter corrido, com as calças brancas ensangüentadas em circunferência na altura das partes genitais, com uma jaqueta de cuja cor não se lembrava. Na ocasião, viu o mestre de obras Manuel de Tal, que mora numa das casas em frente à do homem que acende lampiões, perguntar a João o que era aquilo. João afirmou que andara brigando e pôs‑se a pegar barro do chão e esfregar na mancha da calça. Até então, a testemunha não conhecia João, mas perguntou ao seu companheiro de serviço José, escravo de Dona Catarina do caminho da Luz, e este lhe contou que João pedreiro era escravo do Dr. Rafael de Araújo Ribeiro. Só no dia seguinte ouviu o falatório do arrombamento. Falou a respeito com João e este lhe disse que tivera relações com uma mulher, não só com o consentimento, mas com o insistente pedido da dita mulher, e que ela estava regrada.

Depois de Clementino, vários escravos que trabalhavam num pilar da casa de dona Antônia Navalhada testemunharam e não disseram muito mais além do que já se sabe. Viram João, correndo e cansado, entrar por um buraco que as águas tinham feito por baixo do baldrame e no dia seguinte ouviram contar por pessoas, de cujos nomes já não se lembravam, que na véspera uma menina havia sido arrombada por um negro.

Dias depois, quando o réu e seu dono retornaram do Jaraguá, foram ambos intimados a dar seus depoimentos. No auto de qualificação consta que João era filho de tia Joaquina e de Joaquim, ambos escravos, bem como ele, do Dr. Rafael de Araújo Ribeiro, de dezenove anos mais ou menos, solteiro, pedreiro e pintor. Disse ele que, tanto a menina que se dizia vítima, como sua mãe, tinham feições de alemãs; que eram ambas muito claras e bonitas e faziam diariamente aquele caminho. Naquele dia, viu quando a mãe acompanhou a filha até o chafariz do Cadete Santos. Sozinha, a menina tomou o rumo do Açu que era também o seu. Chegando‑se a ele, ela contou‑lhe que tinha doze anos, e que ela e a mãe moravam na rua da Palha. Perguntou‑lhe então para onde ia, ao que ele respondeu que levava uns pregos para um conserto na casa. Em seguida, a menina disse‑lhe que tinha uma cousa para lhe dar e ele perguntou que cousa era, e ela disse‑lhe venha cá, e chamou o interrogado para dentro de um capãozinho do lado do quintal do cadete Santos. Ele não queria acompanhá‑la, pois na casa precisavam dos pregos, mas ela insistiu e ele pensou que era por uns minutos e foi. Chegando no capãozinho, ela disse ao interrogado que se deitasse com ela, isto é, que fizesse matrimônio com ela. Ele disse que não podia por o estarem esperando com os pregos e especialmente por ser ela uma menina branca e ele um negro. Ela olhou‑o com olhos arregalados e disse que não tinha importância porque não precisava ninguém saber. E ela muito insistiu, puxando‑o pelo braço. Então, apesar do medo que sentia, ele pôs‑se a fazer‑lhe a vontade. Tirou‑lhe o vestido e colocou‑o sobre um arbusto, deitou‑se com ela e, depois de uns poucos agrados, por ela muito lhe pedir, começou a introduzir a cabeça do pênis nas suas partes. Pelas manchas, que logo observou em suas calças, percebeu que ela estava regrada, mas ela afirmou que não tinha importância, que continuasse fazendo o que lhe pedia. E ela o olhou com olhos tão cheios de pedido que ele não podia negar‑lhe o favor. Ela mordia‑lhe o pescoço e a orelha enquanto ele ia se introduzindo nela e sentindo muito gosto. Ouviu então uma tremenda gritaria da mulherada da vizinhança e deixou de forcejar. Sabia das conseqüências e sentiu um medo muito grande. Suas pernas amoleceram, pois era difícil qualquer um acreditar que estava fazendo aquilo a pedido da menina. Saiu do capãozinho o mais depressa que pôde e encontrou o amigo Fortunato. Pediu‑lhe que não dissesse nada a ninguém sobre o que vira. Sob os gritos enlouquecidos das mulheres da vizinhança, fugiu em disparada. No dia seguinte, o seu dono o levara para o Jaraguá, pois tinha muito serviço a fazer por lá. Perguntado porque tirou o vestido da menina, o interrogado respondeu que não tirara o vestido pensando em sangue, pois nem sabia que ela estava regrada, mas pensando em ela não se sujar com a terra, pois a menina tinha de ir à escola e o vestido era branco. Por fim, acrescentou que o que mais o entristecia era ver uma menina branquinha como aquela mentindo na frente de tanto doutor importante. Ele só fez o que fez, atendendo a um pedido muito insistente da menina!

A sentença foi a seguinte: "A vítima não tem posição nem fortuna, apenas como dote a honra, e perdida esta, perde ela também o meio que tem de melhorar esta mesma posição". O réu, preto João, foi condenado a três anos de desterro fora da comarca, quinhentos açoites, e a trazer um ferro no pescoço por um ano. Seu dono, Dr. Rafael de Araújo Ribeiro, sob ordem de prisão, teve de dotar a ofendida com quinhentos mil réis, além de pagar as custas do processo. Se pensarmos que a partir de 1.846 as moedas de vinte mil‑réis tinham o peso de cinco oitavas de ouro, ou seja, quase dezoito gramos, a honra de Maria do Rosário — e sabe Deus se perdida voluntária ou involuntariamente — custou o equivalente a quatrocentos e quarenta e oito gramas de ouro.

 
 

DE  AMOR  E  DE  SELVA

(o ato de escrever)

 

"Era como se a morte fosse o nosso bem maior e final,

só que não era a morte, era a vida incomensurável

que chegava a ter a grandeza da morte". Clarice Lispector

 

 

Num local escurecido pelas frondosas árvores, Cloé reconheceu por entre o gradeado, uma forma animal muito escura. Dois olhos verdes brilhavam, observando‑a por entre as grades. Era um maravilhoso leopardo negro, que começou a caracolar, possuído por uma frenética excitação que ela não tentou decifrar. Não sabia, não podia saber que ele intuía amor e crueldade, e o caloroso prazer de despedaçar.

Cloé sentiu grande desejo de alisar‑lhe o pelo lustroso. Quis enfiar a mão através do gradeado da jaula, mas o medo a estancou. Passada a excitação de olhá‑la pela primeira vez, a fera se impôs como uma estátua negra, com gelados olhos verdes pregados nela. Sobrepuseram‑se a eles, os olhos de um homem que aparecia em sua imaginação e a tocava, excitando‑a, alvoroçando‑lhe os instintos, até que a penetrou com um membro forte e quente, embebendo‑lhe o corpo em golfadas de prazer. Todo o seu ser estava repleto de delícias e estremeceu ao soar da campainha do telefone. Cloé tateou ao redor. Quem haveria de ser naquela hora! A campainha era insistente e a despertou com seu tilintar vibrante. Ela colocou o fone no ouvido. Era a telefonista do hotel a acordá‑la no horário que ela própria estipulara. Droga!, pensou. Era preciso sair do aconchego do sonho, levantar‑se e começar a trabalhar na reportagem. O computador se sobressaía na penumbra esverdeada do quarto. Ela lançou‑lhe um olhar odiento e pulou da cama direto para o banho. A água envolveu‑lhe o corpo.

No dia anterior, Cloé havia embarcado para Manaus contratada para escrever o texto da reportagem que se faria sobre os índios Zuruarás, uma extravagante tribo de suicidas. Sobrevoara a floresta riscada de rios, envolta numa pálida neblina de sonho. Tão logo pôs os pés fora do avião, sentiu a espessura da umidade entranhando‑se em seu corpo, colando‑lhe a roupa na pele ao mesmo tempo em que um êxtase invadia‑lhe a alma. Não conseguiu, no entanto, avaliar o quão fundo mergulharia em tudo aquilo.

No fantástico hotel, na frescura do ar condicionado, no meio do movimento de turistas com seus odores de outras terras, sobrepunha‑se o cheiro da umidade e da folhagem da floresta. No quarto, ela ajeitou a bagagem, tomou um banho e vestiu‑se como os turistas estrangeiros. Penteou os cabelos, refez a maquilagem e saiu, lenta e colorida. O ensolarado do fim de tarde tinha a lentidão desfocada e submarina de um sonho. Os corpos seminus, estirados ao redor da piscina, a atraíram.

A equipe que faria a reportagem reunia‑se ali. Ao encontrar os companheiros de trabalho, Cloé foi apresentada a um missionário vindo de um país nórdico e gelado, ele e mais dois companheiros eram os únicos seres civilizados a pesquisarem e escreverem sobre os Zuruarás. De imediato, ele causou‑lhe uma sensação de estranheza e de fascinação com seu olhar verdíssimo e uma amabilidade excessiva. Pareceu‑lhe um homem vindo de outro planeta, com a pele clara castigada pelo sol, os cabelos de uma palha de milho rebelde e, mesmo sorrindo, seus olhos mantinham‑se gelados. Amabilíssimo, ele cumprimentou‑a, convidou‑a a sentar‑se e serviu‑lhe bebida.

Entre golinhos de cerveja, com o sol do fim da tarde que tornava as pessoas ao redor da piscina iluminadas e felizes, foi‑se falando que estava em moda fazer reportagens sobre índios. Bom seria trabalhar com os índios treinados para encantar turistas!, logo ali ao redor do hotel, dançando e se vestindo ao gosto de quem os filmava. Não fosse o fato de serem bem pagos, jamais se embrenhariam até onde viviam os Zuruarás, o cu‑do‑mundo! As águas do rio estavam baixando, assim que chegassem a um nível razoável, adentrariam a mata e assistiriam a um suicídio! Até lá, poderiam contar com o missionário, arquivo vivo e único de sua história. Os outros dois companheiros haviam retornado ao seu país.

As vozes se misturavam na brisa da tarde, e o missionário ouvia tudo com um sorriso enigmático, como se fosse um homem sem passado, sem história, como se visse o mundo pela primeira vez. Foi ao narrar sua vida na selva e o contato com os índios suicidas que se humanizou. Com um sotaque pedregulhoso, informou que também ele, ao vir pela primeira vez visitar os Zuruarás, sentiu‑se em outra galáxia. Teve de se embrenhar fundo na selva para tomar gosto! A tribo era estranhíssima. Não no modo de ser, mas filosoficamente! Acreditavam que a morte era o único caminho para um mundo de fartura e felicidade. Tinham como meta se suicidar enquanto jovens, e a maioria o fazia. Enquanto viviam, os velhos que não haviam tido coragem ou oportunidade de beber o extrato de raízes venenosas, sabiam que seus espíritos estavam condenados a vagar sem paz por toda a eternidade.

Por ser Cloé a encarregada do texto, o missionário dirigia‑se especialmente a ela. E seus olhos verdíssimos e gelados a atraíam de uma maneira irrevogável. Os relacionamentos de Cloé sempre tiveram uma distância que seus parceiros pareciam não sentir, mas que se interpunha em sua felicidade. No clima úmido da selva, visualizou que no olhar do missionário, no fundo das palavras que a informavam sobre índios suicidas, animava‑se um outro reino, respirava um homem diferente, que lhe exacerbava a capacidade do sonho. Seria ele um homem capaz de lhe proporcionar o mesmo gozo do sonho? Tal pensamento provocou‑lhe um susto que fez com que voltasse a sentir a água do chuveiro escorrendo-lhe pelo corpo. Naquela primeira noite na selva sonhara o leopardo negro e seus olhos gelados eram os mesmos do missionário. Tal certeza a atordoava. Mas, terminado o banho, Cloé estava refeita das imagens da noite e pronta para o dia.

No restaurante, fartou‑se na mesa de iguarias do café da manhã e foi até a piscina. Lá estava o missionário. Ele abriu um sorriso e convidou‑a para um passeio pelo hotel. Havia um mini zoológico. Mal amanhecera e o sol brilhava e esquentava com toda sua imponência. Ela divertiu‑se com o ar maníaco dos macacos e o olhar amarelo e inteligente da coruja. Por fim, parou na jaula dos leopardos malhados. Nenhum dos dois tinha a ferocidade do negro animal do seu sonho. Enfeitavam o hotel e distraíam os turistas com sua beleza de gatos gigantes.

Enquanto caminhavam por entre as jaulas, ela foi se dando conta que assistia a um teatro de imagens selvagens dentro de tantas jaulas, ladeadas por frondosas árvores da selva que faziam fundo à outra imagem de alegres jeans e camiseta branca do missionário. Ele ia se detendo exatamente à distância que seu olhar requeria, voltando‑se com um e outro comentário sobre as feras. Então foi ela quem não pôde perceber que sua lenta e reflexiva passagem de jaula em jaula a transformavam em uma mulher muito querida a ponto de obrigar o homem ao seu lado a fechar os olhos e lutar para não toma‑la e apertá‑la nos braços, levando‑o à loucura de beijá‑la frente a todas aquelas feras!

Sem perder o ar de homem vindo de outro planeta, o missionário lamentou o exíguo espaço em que viviam os leopardos. Cloé pensou em interrompê‑lo para lhe dizer o quanto ele a fascinava. Percebeu a tempo que o queria demais para trincar com palavras a superfície de felicidade que ia se criando.

Retornando à piscina, ela sentiu‑se excitada pela revelação de que uma coisa imensa e irreparável começava a acontecer em sua vida. Encontraram o pessoal falando sobre o equipamento necessário para filmar os Zuruarás e a espera pelo baixar do nível das águas. A possibilidade de assistir e filmar um suicídio os excitava. Tomariam um pequeno avião, e depois ainda teriam dois dias em canoa. Cloé deparava‑se com o desafio de contar sua história de forma dramática a fim de captar a atenção do público! O missionário era o único civilizado a falar a língua dos Zuruarás. Era o arquivo vivo e tinha resposta para tudo que lhe era perguntado. Por um momento, Cloé pensou que ele poderia estar inventando boa parte do que falava. A filmagem do espetáculo do suicídio se sobreporia às duvidas. Cabia a ela as palavras que intensificassem as emoções de um público que estaria passivamente em frente ao aparelho de TV. Seria ela a escrever a história de uma tribo que não conhecia a escrita.

Ao mesmo tempo em que idealizava o texto, Cloé pensou que, no clima da selva, o missionário lhe exacerbava as querências da carne, o que lhe inspirava um novo ânimo. Seria o desejo por um homem o ímpeto da vida? A razão profunda de tudo! E a voz daquele homem explicava que os Zuruarás não se matavam num ímpeto de vida, nem mesmo numa batalha, ou num ato terrorista. Cortavam a raiz de uma planta e ficavam batendo e jogando água até extrair‑lhe o veneno. Era um espetáculo lento e agoniado. A tribo se reunia para participar da cena. Engolido o veneno, num ritual extravagante, levantavam os braços do moribundo numa oferenda melancólica. Tinham plena convicção de que a morte os levaria para uma vida melhor. Não se matavam alucinados pela paixão. Eram prisioneiros da própria tradição.

A equipe se excitava com a possibilidade de filmar o suicídio e Cloé vivia um êxtase de regalias do hotel e da selva. Divagava que ao ter se casado aos dezoito anos, sentira a vida dividida. De um lado, o mundo de crianças berrando e serviços domésticos, por outro, não desistia de ser gente. Quis ter um trabalho onde pudesse criar. Conseguira uma pequena coluna num jornal de bairro, onde passou a escrever pequenos textos para distrair mulheres como ela. Levou algum tempo até que, paralelamente, se tornasse corajosa a ponto de colocar no papel uns poucos sentimentos. Começou sendo superficial e insincera. Mesmo distante de épocas de censura e ditadura, ela colocara lâminas imaginárias sobre certas faixas da vida e recusava‑se terminantemente a descobri‑las. E foi quando uma dessas faixas estancou‑lhe os pensamentos que ela viu na reverberação da água da piscina a figura do missionário. Voltou‑se para sua figura real, estirado numa espreguiçadeira e fitou‑o com despudor.

Os integrantes da equipe tinham de esperar as águas do rio baixarem para que a canoa pudesse circular pelos pequenos riachos e matavam o tempo entre cervejas, petiscos e ondas artificiais da piscina. Ela se interessava por tudo o que diziam, mas seus sentidos estavam no missionário. O falar sobre uma tribo de suicidas, a água do rio, a brisa morna e úmida da selva faziam com que uma transparência paulatina a afundasse nele, tornando‑o cada vez mais um homem sonhado. Como se um jogo de nuvens no céu alterasse bruscamente as luzes e as sombras da paisagem, o clima de selva levava Cloé para além de si mesma e mostrava‑lhe que aquele homem se despojava de alguma coisa e, por um momento, entrava em um mundo imaginário, o mundo que tentava escrever, embaralhando‑se no assunto de índios suicidas, e fazendo‑se mais e mais querido.

O dia seguiu entre muita cerveja e conjecturas sobre a possibilidade de filmarem o suicídio até que se fez a noite, e um raríssimo luar melado de luz inundou o hotel se sobrepondo ao sol que queimara fogo o dia todo. A cor do céu estava negra como o pêlo de uma pantera e continha um turbilhão imóvel de estrelas. Cloé havia bebido além do costume e ficou muito falante, acreditando que fazia coisas importantes e que iria escrever algo além do texto para a reportagem, algo mais profundo, algo capaz de desvendar o que ela própria censurava.

Na hora de ir para o quarto, sem dizer uma palavra, o missionário acompanhou‑a. Sob o luar, com o corpo levitante, ela caminhava ao seu lado sem fitá‑lo. Sua simples presença era um convite. Era quase impossível suportar o seu olhar, a certeza de que ele via-lhe na cara o deslumbramento da confirmação. Porque nos tantos homens que desejara, muito havia sido refreado por um presente de cidade e moderação. Mas a selva, o calor e a umidade introduziam‑lhe uma realidade desconhecida. Uma realidade em que o instinto era soberano.

Enquanto casada, Cloé jamais conseguiu um relacionamento razoável. Ao se separar, levou algum tempo até se adaptar ao mundo sem a insistência de um marido a exigir‑lhe dedicação. Perpassou pela cama de uns poucos homens interessantes, mas nenhum deles era o homem do sonho. E, naquele clima de resfolego de rio e selva, com a mão daquele estranho missionário segurando‑lhe o pescoço, Cloé sentiu os ossos virando espuma. Finalmente entraram no quarto, olharam‑se e aproximaram‑se. Foi um beijo voluptuoso, denso, com muito mais força que carinho. As mãos procuraram pelo fecho do sutiã e ela ajudou‑o a abri‑lo. Ele buscou umidades e os dois estremeceram. Ela sentiu‑se dividida em milhões de partículas elétricas. Estava sendo varrida e invadida como só a água barrenta do rio pode varrer e invadir. Com um desconhecido carinho, ele deitou‑a e penetrou‑a com um membro excitado, forte e quente, invadindo‑a, inundando‑a de gosma, mergulhando‑a e molhando‑a até que afundaram num rio de gozo que lhes pareceu de outro mundo.

Reacomodando‑se nos travesseiros, com um suspiro de animal satisfeito, as mãos de Cloé tatearam a mesa de cabeceira e acenderam o abajur. O ar ficou dourado e ela olhou o missionário. A umidade do rio estava no prazer que se sobrepujava ao seu olhar gelado. Adormeceram entre as últimas carícias murmuradas. Ao afundar na modorra, Cloé sentiu a língua áspera da pantera lambendo seu corpo. O quente bafejar com o terno focinho peludo, a grande língua de enormes papilas lambendo‑lhe os pés, as pernas, o ventre, os seios, a fenda entre as coxas levaram‑na a estertores de gozo. Entre sono e vigília já não sabia ao certo quando o prazer com o missionário terminara e surgiu o devaneio com a pantera.

Antes que regurgitasse de prazer, soou a campainha do telefone. Ela tateou ao redor. Quem haveria de ser naquela hora! O som era insistente. Cloé despertou e colocou o fone no ouvido. Era a telefonista do hotel a acordá‑la no horário solicitado. Droga!, pensou. Mais uma vez a campainha interrompia o sonho. Era preciso sair do aconchego das imagens, levantar‑se. Por um momento buscou o homem pelo quarto. Embora seus olhos estivessem tão nítidos no sonho, ele já não estava ao seu lado. Silenciosamente, deixara o quarto em algum momento da noite.

Atordoada com tudo aquilo, Cloé não saiu do quarto para o café da manhã. Sentou‑se frente à telinha do computador. Escreveu que os índios se suicidavam jovens enquanto a vida era impulsionada pelo desejo. Viver uma paixão com intensidade era como o ato de escrever, despedaçava e recompunha de outra forma. Fazia com que não se soubesse como existir no mundo de antes. Talvez não fosse só isso. Havia jovens que pegavam o carro e pisavam no acelerador para sentir uns momentos eletrizantes. Os terroristas suicidas criavam seu próprio holocausto e eram engolidos por ele. Como os Zuruarás, também eles matavam‑se na esperança de um melhor viver! A possibilidade de ser o causador da própria morte talvez lhes trouxesse uma sensação mais intensa do que o orgasmo.

Contente com aquelas idéias que, ela acreditava, despertariam o interesse da audiência, Cloé foi para a piscina. As águas do rio ainda não haviam baixado o suficiente e a equipe bebia cerveja elocubrando sobre o nada. Ao avistar o missionário, um desejo quase irrefreável invadiu‑lhe o corpo. Ela disfarçou bebendo cerveja e misturando‑se à idéia da pouca dramaticidade que os Zuruarás punham no suicídio. Para uma boa reportagem, melhor seria que se atirassem de penhascos ou ateassem fogo ao corpo. Ou que tivessem um motivo maior para a grandeza do gesto de acabar com a vida!

No final da tarde ela foi até o saguão do hotel. Era a hora em que o calor amainava e um ônibus saía num "tour" pelos locais que valiam a pena ser vistos. Cloé embarcou. Depois de uns tantos pontos turísticos, chegaram ao zoológico formado de animais apreendidos pelo exército em suas explorações pela mata. Num local escurecido pelas frondosas árvores, reconheceu por entre o gradeado uma forma animal mais escura. Fitando‑a por entre as grades, dois olhos verdes resplandeciam. Cloé estremeceu ao reconhecer o leopardo do sonho. Passada a excitação de olhá‑la pela primeira vez, a fera se impôs como uma estátua negra, com os olhos verdes fulgurantes pregados nela.

Ao redor, as pessoas perpassavam por uns tantos animais enjaulados. Ela permaneceu deixando‑se hipnotizar pelos olhos verdes do leopardo negro. Retornou ao hotel com aquela imagem na mente. A visão aumentava seu desejo pelo homem de olhar gelado. E ele estava à sua espera com um programa de jantar a dois num dos restaurantes do hotel e depois dançar na boate. Foi o começo de mais uma noite do fausto do gozo.

O missionário já não lhe parecia um homem vindo de outro planeta, mas saído do seu sonho. E, embora tivessem se amado ao delírio, ela despertou no meio da noite com um resíduo de tristeza na alma. Ele não estava ao seu lado. Ela levantou‑se corajosa, ligou o computador e escreveu sobre si. Sobre a loucura de entregar‑se a um homem que a fazia vivenciar uma desconhecida paixão, mas que quando despertava não estava ao seu lado. Com a dor de amassar raízes para extrair‑lhes o próprio veneno, escreveu até acreditar ter chegado ao âmago. Mas, ao reler o que escrevera, sentiu que era preciso mergulhar mais fundo. Saiu do quarto. Esgueirando‑se pelos corredores vazios, chegou ao mini zoológico. A lua derramava seu clarão melado sobre tudo. O cheiro, a respiração das feras adormecidas, o resfolego do rio a comoviam. Os olhos da coruja eram amarelos, únicos vivos na escuridão da noite. Embora seus pés quisessem levá‑la para outro local, não teve coragem de ir mais longe.

Voltou ao quarto e, como não conseguisse mergulhar mais fundo na própria alma, imaginou a viagem de canoa pelos pequenos rios afundados na selva, e se pôs a escrever sobre a tradição dos índios se suicidarem. O jovem era um ser ébrio de vida que jamais previa a morte. Mesmo se lançando em campos de batalha, corridas de automóvel ou acrobacias aéreas, negava a morte em cada uma de suas atitudes e esperanças. Se morria era sem saber, como se recebesse um choque ou um espasmo. Os velhos viviam pensando na morte, preocupados com o câncer, o tumor cerebral ou o ataque cardíaco, controlando o funcionamento de cada órgão, como se fossem necessários tantos preparativos para encorajar o corpo gasto e arruinado a enfrentar o inevitável.

Quando bem jovem, também ela sentira uma vontade tão grande de vida que, na impossibilidade de realizações, engendrava a morte. Os Zuruarás não se lançavam ao suicídio ébrios de vida. Acreditavam que o melhor estava por vir, no avesso da existência. Lentamente fabricavam o próprio veneno. Sabiam que se não o bebessem, seu corpo vagaria sem razão pelo mundo e sua alma seria amaldiçoada.

Cloé adormeceu pensando nas razões dos Zuruarás. Na manhã seguinte, a campainha do telefone pegou‑a acordada. Sem sair da penumbra do quarto, ligou o computador. Começou a dedilhá‑lo. Já não lhe bastava fazer um bom texto para a reportagem. Por todo o dia, escreveu o que a alma lhe impôs. Ao reler, percebeu que rescrevia a vida como se pudesse vivê‑la sem ser prisioneira de si mesma, entregando‑se à leveza de existir. Pela primeira vez compreendeu que a linguagem não servia apenas para nomear as coisas, mas para evidenciar a loucura da alma. Sempre buscara um homem que lhe desse a mão sem reservas e encontrava‑o completo no ato de escrever. 

De palavras muito simples, surgia um homem sem rosto que aparecia lentamente quando as cores da tarde se misturavam e passava as mãos pelo seu corpo, eriçando as pontas dos seios, a penugem do ventre. Sua língua lambia‑lhe os pés, as pernas, o ventre, os seios, a fenda entre as coxas. Sua pele era um veludo delicioso de se afagar. As mãos passeavam por suas coxas, seu umbigo. Sua respiração era ansiosa. O hálito quente queimava‑lhe os seios. Ele não só lhe oferecia a mão, como permitia que ela se visse muito linda em seus olhos gelados, mergulhando de corpo e alma em sua loucura.

Ao reler o que escrevera, percebeu que além de pôr a loucura à mostra, escrever causava‑lhe mais prazer do que se masturbar no sonho. Mais prazer do que fazer amor com o missionário. Era um prazer que não embutia tristeza. Escrever era uma paixão que a deixava ébria de vida, exatamente no ponto em que a morte não seria mais do que uma das convulsões do orgasmo. Com um profundo suspiro, percebeu que, depois de um amor tão completo, já não saberia como voltar a viver no mundo de antes. Se o fizesse, seria como os velhos Zuruarás que erravam pelo mundo com almas amaldiçoadas! Estava condenada a continuar escrevendo.

Cloé abriu a janela. Um raríssimo luar de intensa luz prateava a mata. A cor do céu estava negra como o pêlo da pantera. Ela pôs a atenção em cada ruído misterioso daquele mundo impenetrável. Saiu do quarto. Esgueirou‑se até o pequeno zoológico do hotel. Ele não era suficiente para aquela noite. Convencida de que, se havia tido a coragem de escrever, poderia ter também a coragem de viver, deixou que seus pés a levassem para onde bem entendessem.

Seguiu numa caminhada onde projetava a imagem de sua mente nas sombras da floresta. Sentia na respiração das árvores a essência da vida. Ocorreu‑lhe que, quando jovem, sonhara com um homem capaz de ouvir‑lhe a reinvenção completa da própria vida. Agora que conseguira escrever, já não tinha coisa alguma a dizer a um homem, queria perder‑se nele, no seu corpo, deixar de ser ela, ser transportada ao céu num orgasmo maior do que o mundo.

Após uma longa caminhada, onde só contava com o clarão da lua e o instinto de seus pés, viu‑se no local escuro, ligeiramente penetrado pelo luar. Reconheceu por entre o gradeado, uma forma animal mais escura do que a noite. Dois olhos verdes brilhavam, olhando‑a por entre as grades. O leopardo mantinha a posição de estátua negra, os olhos faiscando alguma coisa gelada. Quando o animal imponentemente se movimentou, ela viu a silhueta do seu corpo erguida, apoiando as patas dianteiras no gradeado, emitindo um som diretamente para ela, convidando-a para o seu mundo.

Ela procurou uma fenda por onde pudesse chegar mais próxima ao animal. O cadeado não estava totalmente fechado. Ela soltou‑o com facilidade e o leopardo puxou a corrente de ferro com dentes pontiagudos. A passos muito lentos, Cloé entrou na jaula e estancou diante de dois olhos verdes fulgurantes, parados na noite. Um desejo de vida a impulsionava por aquele caminho. Não havia o que fazer senão seguir. O cheiro morno e acre da jaula a excitava. O pêlo preto do leopardo seria invisível na noite não fosse o reflexo da lua. Seus olhos verdes fulgurantes fitavam‑na sem compreender, mas vendo além de toda a compreensão.

Por um instante, como nas primeiras vezes em que tentara escrever, o medo tomou conta do seu ser e Cloé quis dar um passo atrás. Nesse preciso momento, o brilho fulgurante dos olhos verdes se extinguiu. De olhos fechados a fera se aproximou lentamente. Ela sentiu‑lhe o quente bafejar com o terno focinho peludo, a grande língua de enormes papilas lambendo‑lhe os pés, as pernas, o ventre, os seios, a fenda entre as coxas. Seu medo se esvaiu no desejo. A língua, áspera e úmida, roçava o seu ventre. A fera bafejou. Estava sedenta, inquieta. A respiração descompassada. O veludo de seu pêlo passeava por suas coxas, seu umbigo. O hálito quente queimava‑lhe os seios.

Quando novamente viu‑lhe os olhos, Cloé deixou‑se envolver em seu fascínio. Sem medo, delirava de prazer nos movimentos daquela língua cheia de volúpia. Corajosa, foi se entregando com determinação. Por um momento, o leopardo se afastou. Com seus olhos verdíssimos, ele observou‑a como se através dos olhos pudesse sentir toda a sua súplica e soubesse satisfazê‑la, adentrando‑lhe a loucura. Ele deu um salto e ela ainda pôde sentir a grandiosidade da vida quando dentes carnívoros e mornos fincaram‑se em seu pescoço.

 
 
 
 

A  SABEDORIA  DE  CLEMENTINA

 

Alforriada, a negra Clementina vivia ao norte da Sé. Todas as manhãs, depois de percorrer umas tantas casas recolhendo roupa suja, ela dirigia‑se às quebradas do Tamanduatei. Ali, as lavadeiras se reuniam para diluir a sujeira das roupas e dar consistência aos boatos. Desde que se instalara a Academia de Ciências Sociais e Jurídicas do Largo de São Francisco, era o resquício das estripulias dos estudantes o que mais alvoroçava a conversa. Na pacata e garoenta São Paulo, os moços revolucionavam os costumes e renovavam as fantasias, entregando‑se às orgias e excessos de toda espécie. Da Europa vinham ecos da era vitoriana, em São Paulo reinava a Marquesa de Santos, ex-amante do Imperador. Depois da esfregação, deixando as roupas a quarar sobre a relva, as lavadeiras iam até o chafariz. Era ali que paravam as tropas a fim de matar a sede dos homens e dos animais. Também era ali que negros, escravos e alforriados se reuniam para ouvir e recontar as novidades que, no correr do dia, se espalhariam por toda a cidade.

Naquela manhã, ao chegar ao chafariz, Clementina deparou‑se com um fato inusitado. Falava-se sobre as estranhas proezas da cruz preta, enorme crucifixo fincado num pedestal de pedras, em frente a um sobrado de uma rua que tinha o seu nome: Rua da Cruz Preta. Durante a noite, uns poucos negros que se aventuraram a andar pelo nevoeiro, juravam tê‑la visto perambulando pelas ruas. Com as pernas fraquejando diante do milagre, não tiveram forças para acompanhá‑la. Quando se recuperaram do transe, aos tropeços, chegaram ao pedestal e a cruz havia retornado. A partir daquela visão, tentavam explicar o inexplicável, dando margem às imaginações mais alvoroçadas. Retomando o trabalho nas quebradas do Tamanduatei, com as saias arrepanhadas entre as pernas, as negras paravam de esfregar as roupas dos sinhozinhos e das sinhás, e se benziam conjeturando sobre aquela extravagância de uma cruz andar pela cidade. As águas corriam entre suas pernas e o serviço ia por água abaixo. Só pensavam e falavam no milagre. No final da tarde, com o ocorrido a preencher todos os interstícios da imaginação, Clementina comandou uma romaria de lavadeiras até a cruz preta. Comovidas, as negras se ajoelharam. Um imenso cordão de velas acesas ia, aos poucos, isolando os devotos da cruz, e, a cada vela, correspondia o pedido de uma graça.

Passados poucos dias, mal a comoção havia arrefecido, a cruz andou mais uma vez. Desta vez, mesmo atormentados com a possibilidade do milagre, os negros que estavam na rua conseguiram acompanhá‑la. Viram‑na movimentar‑se até a casa de um importante plantador de açúcar que possuía duas filhas solteiras. Mas não sabiam ao certo por quanto tempo a cruz havia parado ali, talvez só houvesse passado pela porta. O milagre os pusera de tal forma pasmos, que não observaram a cruz com os olhos da realidade. Viram‑na contra o clarão do luar que impunha um ar de mistério por toda a cidade.

Na lavagem de roupa da manhã seguinte, Clementina aventou a hipótese de a cruz estar indicando as moças a serem beatificadas, idéia logo incorporada às conversas das ruas e chafarizes. Dias depois, a cruz foi novamente vista em andanças, desta vez para outros lados, parando na casa de um importante senhor que possuía filhas solteiras. Também desta vez, a luz da lua vencia a neblina e clareava a noite.

A cada andança da cruz, a cidade se assombrava e o populacho caía de joelhos ao redor da cruz. Sentindo em cada músculo o resplendor do milagre, senhoras da sociedade dignavam‑se a ir ao pedestal da cruz acender sua vela. Na esperança de resolver os tantos casos pendentes de sua vida, Clementina ia diariamente ao pedestal. Se a cruz indicava as moças que seriam beatificadas, acalentava‑lhe o sonho de que, mesmo sendo negra e tendo dado à luz a vários filhos de amores diversos, algum dia ela chegasse até sua casa.

Aos poucos, os passeios da cruz em noites de luar foram se transformando num hábito. Sempre havia alguém que via a movimentação e, apavorado diante do milagre, não conseguia explicar o itinerário. A cada dia, terminada a lavagem de roupa, Clementina se chegava às casas escolhidas pela cruz e deixava‑se ficar no local impregnado de fluídos divinos. Olhava o céu e rogava à Virgem que a cruz também a visitasse. Mas seu pedido não era atendido. Então, com a audácia nata que a vida ia aprimorando, resolveu que se a cruz não ia à sua casa, seria ela a segui‑la. Todas as noites, acomodava os filhos em casa e ia postar‑se pelas imediações do pedestal. Nem as garoas, nem o frio, nem o cansaço pelo trabalho do dia a desanimavam. Postava-se na porta de uma selaria próxima ao sobrado onde ficava a cruz e aguardava. Finalmente, numa noite enluarada, ela estava bem desperta quando o assombroso pio de uma coruja a avisou que algo estava para acontecer. Com os olhos bem abertos, viu a cruz estremecer e, em seguida, sair do pedestal.

Apesar da audácia, quase sucumbiu ao pasmo do milagre. Com a alma por um fio, sob a intensa luz do luar, sorrateiramente seguiu a cruz. Aos poucos, o deslumbramento do milagre foi passando e ela começou a ver as coisas com os olhos da realidade. Intrigada, percebeu que a cruz era carregada por homens que gargalhavam e passavam uma garrafa de boca em boca. Vestidos em casacas de gente importante, saltitavam pelas ruas pedregosas, carregando a cruz como se carregassem um objeto qualquer, sem importância. Clementina não tinha coragem de se aproximar o suficiente para ver seus rostos, mas, pela balbúrdia que faziam, com certeza eram estudantes do curso jurídico. Seguiu‑os sem trégua até que se postaram em baixo de uma das janelas do sobrado do Capitão Joaquim Florêncio, homem temido, que possuía duas filhas solteiras. Clementina lavava roupa daquela casa e conhecia as duas sinhazinhas, possuidoras de mãos de fada tanto para os doces como para os bordados, além do desempenho das músicas ao piano. Enquanto imaginava a beatificação, não tirava os olhos da cruz. Viu então que dois dos rapazes, com incrível destreza, escalaram‑na e, ultrapassando a janela do andar de cima do sobrado, penetraram num dos cômodos da casa. Os outros se perderam nas sombras da noite, deixando a cruz solitária, reverberando ao clarão da lua.

Tremendo, com a alma prestes a lhe sair pela boca, pedindo que a Virgem Maria a perdoasse pelo atrevimento, Clementina escalou a cruz. A luz da lua prateava‑lhe a figura, projetando no solo uma sombra descabida. Finalmente ela apoiou os pés nos braços da cruz e, estática, espreitou pela fresta da janela. A princípio ouviu suspiros, farfalhar de roupas. Os suspiros transformaram‑se em gemidos e foram aumentando numa tal intensidade que pareciam tomar a cidade. Quando seus olhos se acostumaram, avistou corpos resfolegantes sobre a cama, cabelos emaranhados. Sem poder tirar os olhos da cena, sentindo rajadas de calafrios a perpassar‑lhe o corpo, viu cada carícia e cada estremecimento, acompanhou a abundância de orgasmos. Com um brilho de gelo alimentado pelo calor do sol, a lua impunha seu mistério sobre a cidade. Ao ver que os rapazes recompunham a vestimenta, Clementina saiu do pasmo e apressou‑se em descer sem fazer barulho.

Atingiu o chão quando outros estudantes se aproximaram. Ao vê‑la, foram eles a se assombrarem, confundindo‑a com alguma alma de outro mundo. Os que estavam no quarto desceram com rapidez, juntando-se aos que estavam em baixo. Como se vissem o diabo, puseram a cruz nas costas e saíram em disparada. Com um hálito de alma penada às suas costas, não retornaram ao pedestal do outro lado da cidade, desceram a ribanceira até o riacho do Anhangabaú e jogaram a cruz nas águas. Clementina não saiu por um segundo do seu encalço. Os estudantes se embrenharam pela escuridão das ruas e ela ficou a noite toda olhando a cruz que se apoiava no lento fluir das águas. Encarava tudo com temor, mas também com esperança e curiosidade. De repente, a lua saiu de trás de uma nuvem e a cruz pareceu afogar‑se num círculo de águas claras. Assombrada, Clementina não fez mais que fixar os olhos naquela imagem, até que os primeiros raios de sol iluminaram o ar.

Na alba do amanhecer, a cidade toda andou até o rio para ver a cruz que, mesmo na correnteza das águas, insistia em ficar de pé. Sem sair da margem do rio, com a estranha sensação de já ter vivido ou sonhado o que via, ela testemunhou a trêmula luz da primeira vela acesa. Com o correr dos dias, as graças alcançadas aumentaram na mesma proporção das velas votivas. E foram tantas as chamas e tantas as graças alcançadas, que uma capela foi construída no local. A cruz foi recolhida das águas e fincada ao lado da capela, e dali só saiu depois que a cidade virou metrópole. Clementina tentou contar tudo o que vira ao seguir a cruz, mas sua voz falhou e ela própria achou que delirava.

Foram muitas as suas noites de incertezas e insônias até que o estranho pio de uma coruja a despertou no meio da noite. Iluminada pela luz da lua, Clementina andou até a capela. Um imenso cordão de velas acesas isolava a cruz. Ela se ajoelhou e sentiu que o calor das chamas iluminava-lhe a alma. Observou a lua cheia refletida sobre as águas na escuridão. E no meio do círculo iluminado, reflexo da lua que refletia a luz do sol, destacava‑se a cruz preta em todo o seu resplendor. Do fogo das velas elevava‑se um murmúrio crepitante que se confundia com o do rio, o que realçava ainda mais o resplendor da cruz. Foi então que, onde o populacho caía de joelhos sentindo em cada músculo a exaltação do milagre, Clementina conseguiu sair da vertigem de incertezas. Mesmo com as andanças da cruz ressoando em sua mente, decifrou que as coisas, os atos e a própria vida não deixavam de ter seu sentido oculto e talvez fosse preciso um determinado tipo de lua cheia refletindo sobre um rio para revelar‑lhes as diversas fosforescências.

 

 

(imagens ©sirkka)

 

 

 

 

Vera Carvalho Assumpção. Escritora, ganhou muitos concursos de contos. Entre eles o Gralha Azul, o segundo lugar no Guimarães Rosa, Barretos, Araçatuba, São Bernardo do Campo, Franca, Ubatuba, Ituiutaba, Paranavaí. Recebeu prêmios em Portugal. Com a monografia "A História Exemplar de Uma Família Cafeicultora de Origem Portuguesa", passou duas semanas na Universidade de Évora e teve seu trabalho publicado. Com a "Crônica da Fundação da Casa de Portugal", ganhou uma bolsa na Universidade de Trás-os-Montes para os seminários de verão. Tem muitos contos publicados em antologias, inclusive um na revista Semente, da Universidade de Évora, e outro na Universidade do Colorado na antologia Contemporary brazilian literature. Seu primeiro romance publicado foi Maria Eugênia (T.A. Queiroz Editora). Quando a internet começou a ter editoras virtuais, foi uma das pioneiras a publicar no HotBook, com o livro A locomotiva na era virtual. Depois foi A feiticeira redescoberta (policial), Virgínia e seu labirinto (policial) e A pesca milagrosa (romance). Em 2003, foi publicado pela Editora Landscape o policial Paisagens noturnas, apresentando o detetive Alyrio Cobra. Em 2004, saiu pela Larousse o romance juvenil A viagem virtual e, em seguida, dentro da coleção Viajando pela História, o romance juvenil Na caravela virtual. A próxima aventura do detetive Alyrio Cobra vem sendo publicada no formato de folhetim, ou seja, um capítulo a cada dois dias, dentro do seu site. Quem quiser acompanhar, clique aqui.