Sacramentos

 

nesta imagem de santa repousam

a noite o dia a nudez

da alma não tem margem

a nudez é a margem da virgem

 

não é luz a luz da lua

como é isenta no altar a luz da vela

como é nula a luz da lâmpada

que não aquece o que ilumina

 

ah imagem tua carne não

é carne é um sussurro dócil de barro

onde cabem e se esvaziam

todas as angústias sérias ou precárias

 

de repente como se o corpo se descobrisse

perecível precário precária matéria

do barro perecível sob a patética

aspiração ao infinito

 

acaricio tua silhueta esbelta

que é canto leve leve eco

de nossa prece de argila

de incenso de madeira ou de ouro falso

 

e me afundo transmudado como

se estivesse submerso em transe anestésico

num aquário de afagos

numa cisterna de sedentos

 

 

 

 

 

 

Canto

 

 

I

 

Se te toco onde

é úmido o segredo

 

cantarolas

orquídeas

azaléias

 

com

     a face

     a fome

     a fonte

 

à completa

espreita

 

 

II

 

Deflagro meu tato

todo em ti.

Fico fácil — até fútil

(animal eriçado

à mercê de tua busca)

 

 

 

 

 

 

Antecipação da manhã

 

A TV a

inda ligada a

lumbra

tua pele nua na cama

e se te levantas tua

nu

dez adoça

a severidade do quarto

 

deixa vertigem na an

tecipação da manhã

 

teu perfume feliz feito

de noite enfim despida

colide com a mobília

 

apesar de já se ouvir lá fora

a velocidade dos veículos

que estragam a aurora

 

como fosse a manhã uma noite

de repente amanhecida

 

 

 

 

 

 

Kika Alvarenga

 

Turmalina

 

desgastar o azul até

encravar a

pedra (turmalina)

no metal

 

cinza

 

de-

pois ficar

à espreita

à espera

de que a cor

caiba ao teor

da pele

 

que uma

nudez

aflore

 

que uma

noite

cante

 

 

 

 

 

 

Kafka

 

Debato-me para

deixar de estar

de bruços, para

retomar minha

inastuta marcha no mundo

impassível e cheio

de lâminas latrocidas

(embrulhadas juntas

em um buquê de meios-dias).

 

 

 

 

 

 

Poema para Adélia Prado

 

Estrelas!

no pomar celeste da boca conso-

lidá-las

foto-

grafar o avesso

da treva do ventre do ferro do trem de ferro

convertido em sentimento

 

os hieróglifos

numa brancura fecunda

de constelar escuros,

de transgredir o tempo

 

mas recito insonte-

mente: besouros são

sementes

de rinocerontes;

 

o lunático com um guarda-chuva,

a virgem com uma cabaça,

a beata com um calvário

atravessam a nado meu poema

 

num olor inato interno que mescla

bois borboletas

Deus: todos os

artefatos álacres

de escavar cosméticos

entre distúrbios

 

que concretos ou telúricos

noitinvadem-me às vezes.

 

 

 

 

 

Voave

 

Os poetas nunca souberam

pastorear as luas,

estas chagas lázaras

na treva-vácuo do infinito.

 

Pastores rudes das fomes plácidas,

inventaram o próprio lobo

para aplacar o rebanho inato,

simulando cosméticos onde florescem cadáveres.

 

Apenas lavram o trigo monetário

na floricultura de idílios,

donde irrompe-se uma flama que se desfaz

em água — sela-se, silencia-se.

 

Do sumo, seiva, néctar miúdo,

resta nódoa no branco infinito

(papel-poema-moeda, fatigado exercício

de testar a textura do finito).

 

 

 

 

 

 

Deus

 

Entre o alfa

e o ômega, o âmago

e o @.

 

 

 

 

 

 

Beija-flor

 

beija    beija

flor      flor

alegre  célere

veio     foi-se

 

e a casa voltou

a ser

rotina

 

 

 

 

 

 

Sede

 

A face

bebe-se

no espelho.

 

 

 

 

 

 

Grilo

 

 

I

 

Cantar

escuridões infecundas.

Cantar-se. Roer

a treva

íntima. Roer-se

impiedosamente.

 

 

II

 

Árido, se rói

incisivamente.

Não cintila:

elide alheias

epifa-

nias.

 

 

III

 

O canto não é profundo

e o nome não é maduro:

 

tenta cavar fuga

arando a matéria

para fora do vidro

da vida escura

que o encerra.

 

 

 

 

 

 

Migalhas

 

1) Concha

Sobre o brilho

esnobe da pérola, me fecho

em treva autofágica.

 

 

2) Identidade

Transgredir a face,

o nome, os signos:

existir nos basta.

 

3) Artefato

Desvelado, o perfume

perfura

a cegueira.

 

4) Noite

Hedionda, a dama

empunha, nua,

a lâmina.

 

5) Deserto

Ou a distância impossível,

a água parca

ou a sede imperecível.

 

6) Viagem

Do tato acesso

à carne em seda na cama à espreita

não há paragem.

 

7)Noiva

A estátua se faz

ave; a nudez alva

se faz noite.

 

8) Oratório

O barro, a vela,

as flores cativam

o rosto transposto.

 

9) Noturno na chuva

Perfura a treva úmida

um cigarro aceso esquecido

na janela esquecida aberta.

 

10) A inocência cruel das criancinhas

Infantil festim cruel

o pássaro (presa) jaz

apedrejado aos pés solenes.

 

11) Fatalidade

De repente a pedra

e a asa não terá mais

passagem.

 

12) Deslimiar

Espelho estilhaçado

enfim minha face

transpõe o aço.

 

13) Deslumbre

Cavalos bebem, na escureza espelhar

do açude, a lua

que adoça a sede deles.

 

14) Fotografias

Precário alento: o tempo ido

já abismo num hiato sem álibi

empacotado em porta-retratos.

 

15) Borboleta

Jóia: a vida secreta: levíssima

faz-se a brisa

com aladas tintas.

 

16) Reencarnação

Cai o copo. Quebra-se.

Os cacos agora

querem ser xícara.

 

17) Instinto

Sendo o boi em si para

sempre ruminando

o inato humano.

 

18) Fantasma

Fui dormir carne (dor

e delícia) acordei

névoa (noite onírica).

 

19) Cama

O labor da noite febril

à espera da

brutalidade solene.

 

20) Orquídea

Floresce plena

mas — perecível —

dura um enigma.

 

21) Ideograma

Quebraste o frasco

de perfume, agora

usas só cacos de vidro.

 

22) Minas

Onde fácil transcendo o óbvio

(translado óbitos

para outros limiares).

 

23) Vidas secas

À mesa parca,

agradecer com uma

prece monossilábica.

 

24) Penumbra

Onde tua matéria fica algo

como que

pura matéria alma.

 

25) Dissimulação

No espelho, as faces apagadas:

apenas cintilam nossas diárias

muitas máscaras necessárias.

 

26) Espelho

Nunca o grito — ainda que,

do outro lado,

o rosto: cataclismo.

 

27) Edifício

O aço não é suave:

translúcida, a vidraça despedaça

o vôo rápido do pássaro.

 

28) Núpcias

A noite é perecível

e a carne é mera via

para que o desejo voe.

 

29) Aliança

À velocidade de ouro

do círculo gastam-se

duas vidas.

 

30) Notícia

No escuro metálico

(silêncio noturno

da casa), um telefone súbito.

 

31) Varal

Despido, teu

vestido dança

ao vento.

 

32) Tempo

Diante de uma foto antiga,

um casal de velhos casados

recalcula o infinito.

 

 

 

 

 

 

Haikais

 

Fonte, sem alheias sedes,

és a mais

triste existência.

 

 

O cão late

a sombra se move

e adere à noite sem bordas.

 

 

Folha seca

uma formiga ilhada

navega o riacho.

 

 

Porta-retrato

atenua ou nutre

a saudade.

 

 

Ferrugem em viagem

o trem de ferro

aturde a paisagem.

 

 

Totens domésticos

espelhos refletem

a mobília inerte.

 

 

Lá fora a chuva

pingos d'água

tecem a música.

 

 

Relâmpago

ilumina um rosto

na vidraça.

 

 

Livro espesso

desidratada rosa

e um resto de cheiro.

 

 

Natureza morta

frutas sobre a mesa

vertigem de estátua.

 

 

À porta da igreja,

dois leprosos

cobrando ingressos.

 

 

Muro alto

de repente um pássaro

em vôo raso.

 

 

Interferência no tráfego

um vira-latas dorme

no asfalto.

 

 

Tevê desligada

espelho por acaso

reflete o silêncio da casa.

 

 

Quem bate à porta?

Ninguém responde

à esmola de respostas.

 

 

Cheiro de chuva

no vento, na terra,

em tua pele nua.

 

 

Nenhuma aliança

mas na pele

nossos cheiros se enlaçam.

 

 

Borboleta no asfalto

e a indiferença

dos carros.

 

 

Aves madrugais

seu canto musica

minha insônia.

 

 

Entre olhares

bocas se armam

para o eclipse.

 

 

Um telefonema

depois a distância

vira um problema.

 

 

Moscas na fruteira

o doce fenecido:

a vida é efêmera.

 

 

Nossa sina

apesar da carne

pôr a alma livre.

 

 

Noite plena

em meio a prece

um cão ladra longe.

 

 

Violão à lua

a carne afaga

a alma nua.

 

 

Febre leve de luar

fazer de rio

uma borboleta.

 

 

Luar de riacho

me banho em sua

nudez alumbrada.

 

 

Prece:

a alma ao

relento interno.

 

 

Noite em grave

enigma gravita em meio

a peças íntimas.

 

 

Com teu insonte

amanhecer ensaio

um pouco a eternidade.

 

 

 

[Poemas do livro inédito, Quebrantos, relances e abismos ao relento]

 

 

 

(imagens ©madziula)

 

 

 

Wilson Torres Nanini (Poços de Caldas/MG, 1980). Poeta por extravio e Policial Militar da PMMG por ofício, vive em Botelhos/MG. Edita o blogue Quebrantos, Relances e Abismos ao Relento.

 

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