Em cima: Rodrigo Rosa | Contorno (detalhe) | Desenho e escultura | Grafite, tinta acrílica e MDF | 2008
Embaixo: Gustavo Maia | S/T (detalhe) | Acrílica sobre tela | 2007

 
 
 
 
 


 

A novela híbrida

 

 

Non-sense 4

 

O sangue vaza pelo orifício provocado pela bala e coagula as frases no céu da boca. É a hóstia dos medos da infância. A lembrança: o que é dela? Estou sempre construindo passados que nem mesmo sei se existiram. Assim engano a morte. Mas o ponto de partida cada vez mais distante; mais próximo o de chegada. E a sensação de não ter saído do lugar nessa viagem planetária e infinita. Observo uma rosa como poderia estar diante de um cravo, a natureza acontece, não se explica, repete-se em sua diversidade. Quando o espírito abandonar o corpo, não haverá necessidade de oxigênio nem sofreremos o aprisionamento provocado pela gravidade.

 

 

Noctâmbulo 3

 

Lindsay reencontrada. Ninguém conhece o esconderijo de Lindsay. E Lindsay não é personagem de nada, ela é real no fingimento de uma das versões da vida. Ela retira da mudez da natureza os sons que o pai tanto adora. Diante de pequenos seres que cruzam seu caminho sem se darem conta de sua existência. Que sons emitiriam e que ela não ouve? Por que eles não esboçam reação diante das palavras que ela emite? Somente os pássaros acompanham as sonoridades. O mandarim tem a sonoridade das aves cantantes. Foi o pai quem lhe explicou que o som que ela gostara tanto vinha de um país chamado China. A professora não entendeu quando falou que gosta dos poemas com sonoridade oriental. A mãe anda preocupada com a filha. Igual ao pai. Para a mãe, nada pior que uma filha tecendo os mistérios das palavras ocas e dos sons mudos. Bastasse um! Mas é de Lindsay carregar as mesmas curiosidades do pai. Vê na mãe o vazio físico.

 

 

Non-sense 5

 

A barata entrou pelo ralo. Percebi como somos frágeis. Fugimos da noite. Desconhecemos as fragilidades do escuro. Com os sonhos, permanecemos diurnos. Acendemos velas aos mortos para que eles iluminem a última passagem. Mas os olhos dos mortos serviram de alimento aos vermes. Cegos para sempre. Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro. Escrevemos... Escrevemos... Para quê? Não é proibido perguntar...

 

 

Canto primeiro

 

Risos contidos. Cenário de sombras. Cheiro de velas. Assim o clima. Os passos artificialmente leves. Um acalcanhar em medos. A moral apre(e)ndida destoava. Desde muito cedo. Dissonâncias. No presenciado na casa e na rua. Nunca a verdade. Os estranhos sons noturnos como obra Dele. Anjos e santos gemiam nas madrugadas. Maldades zuniam como abelhas. Realidade e boato no mesmo patamar. Mas corpo em brotamento. Passado apagado pela moeda. Tudo tem seu preço. Diante de anjos e santos. Convulsionando. Gemido (in)contido. Fixado no pecado. Não fosse o badalar do sino...

 

 

Perdido 103

 

(ao ouvir o tiro, a polícia invade o recinto, liberada pela policial, das amarras, a mulher corre na direção do homem caído no chão, ao redor uma poça de sangue, acomoda sua cabeça no colo, não precisaria perguntar: Você está feliz? Está bem? O silêncio respondia por ele...)

 

 

 

Razão

 

 

        A genética da coisa começa no acaso do encontro das hélices que formarão o DNA. Dali em diante o grau de cisão definirá um reinado de surtos, da fragmentação do dentro e do entorno, uma multiplicidade de histórias. Como o mata-borrão, meu continente são todos os fragmentos sobrepostos e atemporais. Daí a literatura um reverter de todas as cópias, simulacros de Deleuze, outra coisa que não a realidade enxergada pelo rebanho, para isto há a imagem, o cinema e o documentário — mesmo aí prefiro a estranheza em Kurosawa. E há a sinestesia ao ouvir Bach, Astor Piazzolla e John Cage. Mas nada disso seria o que é não fosse o exagero de Beckett com o tempo passado entre a luz e a escuridão, com seus fragmentos em ilhas neuronais, a repetição e o repique, nem sem um barroco atualizado, cada partícula uma multiplicidade, mobília de sonhos, Kafka do não-lugar, tudo pode começar com uma palavra perdida no sonho, como NOY, título de um livro e que resultou em:

No intróito, a morte de Eros. A linha do trem sabe do nada na curva. Onde desaparece a máquina o horizonte é Tânatus. A simetria dos batentes sempre no aguardo. Vagalhões de lustres são estrelas ao longo. Diapasão nos agudos e graves do silêncio. A mudez de consumo é quando o luto invade. De que adiantam as rédeas na mesmice do pasto. Só a fumaça arrisca os sopros e os ventos; depois repousa lençol nos caminhos. A glande sabe da plenitude do jogo. Intuir é descobrir ovos no ninho. Compasso é a derrota do pensar. Competir é ser Matador Cool. Besouro é Deus desajeitado. Amor é sapato sem par. A pedra, entregando-se aos ventos, faz-se poema. É do penhasco os medos e as quedas. Na morte o eletrocardiograma cala. É da epiderme do deserto as mutações. Seguir rastros é ansiar companhia. Enfim, agora é a vez de Latour... Sem som e leitura, não há (des)construção...

 

 

 

setembro, 2010
 
 
 
 

Carlos Pessoa Rosa (São Paulo/SP). Escritor, editor do site e blogue Meiotom, e colunista do PNETLiteratura. Publicou A cor e a textura de uma folha de papel em branco (prêmio ficção nacional UBE-CEPE, 1998); Mortalis: um ensaio sobre a morte (prêmio Xerox-Ed. Livro Aberto); Não sei não e Sobre o nome dado, pelo coletivo Dulcinéia Catadora (São Paulo/SP); Destinos de vidro (Ed. Meiotom). Tem trabalhos publicados na revista Olhar, da UFSCar, revista Polichinello, revista Dimensão, D.O. Leitura, Instituto Piaget, Portugal, entre outros. Textos do autor podem ser lidos também nos seguintes endereços eletrônicos: http://www.meiotom.art.br | http://www.pnetliteratura.ptmeiotom@uol.com.br

 
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