O Ceú de Salamanca, por Jussara Salazar
 
 
 
 


 

O poema

 

 

O altar flutuava entre jasmins y igarapés perfumados

mar de jade mar de pássaros e folhas onde

a arari vermelha pousando suave adormeceu para sempre

o jovem príncipe amarelo

Os arcanjos lutavam com os demônios

Das igrejas escutavam-se os sinos

 

Cumpridos os responsos fecharam o livro de cânticos noturnos e o hostiário:

abriu-se a litúrgica cambraia branca onde a cabeça de joão batista sorria entre as relíquias sagradas de tereza santa y su cuerpo en martírio — dedos, narizes e pernas — esparramado desde ávila hasta salamanca

 

— Vós o flautista!

 

E aquele cortejo de véus atravessou a cidade chegando ao rio

e mergulhou entre as ondas por baixo das folhas dos aguapés

 

na visão o

aurisplendor

da fauna as escamas

verdes prateadas

furta-cores que

brilhavam

em tua vestimenta

cegou o

sol derretendo a

cera das velas sobre

a espuma:

adormeceu

a lâmina fina

luna seda que

a água riscou

na outra onda que

ali passou

 

nadando um cardume de nenúfares entreabertos azulou

 

 

 

Razão

 

O poema integra um livro ainda inédito, onde o tema das velhas com suas cantigas levou alguns anos de pesquisas e buscas. Mesmo com a poesia, como todo designer, adoro projetos. Penso o poema como uma ópera, com vozes, imagens, mudanças de cenário e música. Vou vestindo o figurino e vale tudo para isso que eu nomeio de a "pesquisa". Busco as palavras desesperadamente em tudo que vivo.

Há um ano atrás, durante o período em que estive na Espanha, na cidade de Salamanca, dividi meu tempo entre a universidade e longas caminhadas pela cidade medieval de Castilla y León, e pensava sobre os poemas desse projeto que deveria escrever. A cidade me tomava a alma. Todos os dias descia pela Calle Toro e escutava o pisotear, o arfar dos touros bravos de Lidia, entrando porta adentro em direção à antiga arena, hoje Plaza Mayor no centro histórico da velha cidade, ou sentava para me deleitar sob o afresco O céu de Salamanca, parte da abóboda da antiga biblioteca da Universidade de Salamanca, pintada por Fernando Gallego em 1490.

Na fachada do pátio da Universidade, edificada no século XIII, diziam-me que havia em meio a exuberância dos relevos, uma rã; aqueles que a enxergassem carregariam a sina do retorno à Salamanca, como um ritual de passagem ou uma clarividência, e eu ficava ao lado da pequena multidão de curiosos buscando a rã encantada, minha revelação mágica. Um dia a descobri, minúscula, desafiando a imponência dos reis e rainhas, das coroas e brasões. Estava selado o meu amor estético por aquela cidade, o meu eterno retorno.

Nas proximidades, na pequena Ávila, cidade vizinha onde nasceu Santa Teresa, cumpri minha encantação. Reza a lenda que em 1582, logo após a morte, o corpo da santa exalava um perfume delicioso. Até hoje seu corpo conserva-se intacto, mas contam também que estaria espalhado em vários lugares da Espanha. Seu coração, apresentando larga e profunda ferida, acha-se guardado num precioso relicário na Igreja das Carmelitas em Alba de Tormes. Creio que Santa Teresa de Ávila é a mais bela representação do barroco, em seu êxtase, ferida por uma seta de amor divino disparada por um anjo, pura paixão.

Quando retornei, as muitas imagens vividas em Salamanca se juntaram ao desejo de uma identidade profunda que me vinha quando escutava a Floresta Amazônica de Villa Lobos (a música, sempre). Assim o poema foi escrito em um momento inspirado de águas e cantos, que se iniciou entre a minha imaginação e aqueles dias de bela Espanha.

 

março, 2010
 
 
 
 
Jussara Salazar. Poeta e artista plástica. Publicou os livros Inscritos da Casa de Alice (1999), Baobá, Poemas de Leticia Volpi (2002), Natália (2004) e Coloraurisonoros (Buenos Aires, 2008). Publicou também sua poesia em várias revistas e antologias brasileiras e internacionais. Edita a revista eletrônica de arte e literatura Lagioconda7. Em 2009, recebeu a Bolsa Funarte de Criação Literária com o livro Cantigas da Árvore Votiva.