S/T | Raoni Assis | Técnica Mista (Aguada, Colagem e Nanquim) | 2010
 
 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

um último poema

mas te elevas com um lagarto aceso

com uma verdade de sete estrelas plantada na boca

com um não incinerado na língua

 

um último poema

num varal de esperanças apodrecidas

mas tu me rasgas a pálpebra com filetes de madressilvas

me presenteias um espelho oco

um terno mofado

larvas de poetas abortados

 

só queria um último poema

mas último poema não há

porque um último poema

é como encaixotar palavras em dez livros

porque não há poema que caiba

não há poema

 

eu tentei destruir o verso e o peso do medo

mas não acaba

eu tentei mastigar a carne da poesia

mas não acaba

barr to c mpello não acaba dr mmond não acaba bl ke não acaba y rke não acaba b ndeira não

art r rog rio não acaba p ssoa

não acaba

porque é muita carne pra pouca boca

 

não acaba porque desliza como aquele lagarto aceso

como o olhar de l rca

aquele olhar de l rca

antes do fuzilamento

como a pupila de l rca

soterrada pela areia quente de granada

 

como a presa de um cão andaluz

na construção

mordendo o derradeiro olho de l rca

mas l rca não cabe na boca do cão

não

não acaba fed rico numa vala anônima

fed rico sorrindo do meu último poema e de teu último livro

porque ele sabe

não cabe

não acaba

 

mesmo

que a tua letra seja língua

e a minha olho

a tua letra seja riso

e a minha náusea

não acaba

não cabe em nenhuma parte

 

porque a pupila de aleph

na minha

refletida

carbonizou todos meus poemas

retalhou toda a carne da poesia

dinamitou a solidão do blog esquecido de rodr go de souza leão

 

esse reflexo

vale mais que o medo

vale mais que a fúria

porque

poesia não é nada

 

porque

em recife ou salamanca

em são paulo ou barreiros

um olhar feio

um trejeito

um tiro certeiro

uma estocada

depois disso

nada

 

porque no final

a conta

tem que ser paga

porque de nós

só restarão mornas tardes

em seminários inúteis

com meninas menstruadas

e esses livros

de ventre

morto

 

 

 

Razão

 

 

Esse é o último poema do meu livro O peso do medo: 30 poemas em fúria (Recife: Editora Paés, 2010). Meu amigo Artur Rogério havia escrito um poema, "Cartório", dedicado a mim e que me incomodou pela maneira como eu me via associado ao cotidiano, às coisas práticas, que aparentemente diluíam a poesia. Faltava um poema para fechar meu livro e aquele poema de Artur Rogério foi a motivação final.

 

Normalmente eu escrevo no papel e posteriormente vou ao computador. Quando há mudanças significativas, salvo a versão do livro com uma numeração diferente, como 1.3, 2.6, etc. A primeira versão digitalizada do poema "Art r Rog rio" é de 19 de julho de 2009 (versão 2.2. do livro). Até então eu tinha pensado em fazer três livretos com dez poemas cada, mas nessa versão já estava consolidada em mim a necessidade de ser um livro só. O poema foi escrito inicialmente como todos os demais do livro, ou seja, sem versos nem pontuação. Apenas um ano depois, na versão de 26 de julho de 2010 (versão 4.6 do livro) o poema ganhou a forma de verso. Isso porque eu considerava que esse poema era o final de uma parábola, uma volta ao verso depois de vinte e nove poemas de palavras despejadas sem pausa.

 

Há várias referências ao que vivi nessa época que podem ser vistas no poema e dão conta de sua gênese. Artur Rogério estava preparando uma decalogia e certa vez me disse que queria fechar isso para poder voltar à prosa ou escrever outra coisa. Isso motivou os versos "só queria um último poema/ mas último poema não há / porque um último poema / é como encaixotar palavras em dez livros / porque não há poema que caiba / não há poema". O verso "não acaba", que se repete várias vezes, reverbera em autores que são citados de alguma forma no livro, como Drummond, Blake ou até mesmo Thom Yorke, vocalista do Radiohead; ou que permeiam minha poética, como Maria do Carmo Barreto Campello. Todos esses nomes são grafados com vogais faltando, como uma indicação de respeito que remete à cultura judaica ao se referir ao nome de Deus.

 

Ao mesmo tempo, minha insatisfação e medo de ser aquele poeta burocrático de que ele falava no poema Cartório foram a mola de todo o poema. Há várias imagens sobrepostas que me levariam, se não tivesse plena consciência do que estava fazendo, a classificar esse poema como neossurrealista. Por exemplo, a imagem de um cão mordendo o olho do cadáver de Federico García Lorca se sobrepõe à imagem do blog de Rodrigo de Souza Leão, autor de Todos os cachorros são azuis. Nesse segundo caso, Rodrigo tinha morrido no começo de julho e ficou em mim a pergunta: quão solitário é o blog de alguém que morre assim, de repente? Esse sentimento de desolação se unia ao de tentar fugir do lugar comum, do "poeta de gabinete", mas, contraditoriamente, traz consigo um sentimento de derrota; uma vitória, ainda que provisória, do cotidiano contra a poesia. A dicotomia cotidiano/poesia é associada aqui à dicotomia dia/noite de Neruda em Residência na terra (1933/1935). Embora o poema tenha nascido como uma reação ao poema Cartório, o eu lírico meio que assume, com fúria, essa vitória do "gabinete": "porque de nós / só restarão mornas tardes / em seminários inúteis / com meninas menstruadas / e esses livros / de ventre / morto". Os últimos três versos são muito importantes, pois dão um sentido de circularidade a todo o livro, como um uróboro: as primeiras palavras do livro são "morto ventre de livros", as mesmas do último verso, só que invertidas.

 

Com relação ao tratamento com a linguagem, percebo poucas diferenças entre a primeira versão e a última. Por exemplo, na versão original opto pelo "você" ao invés do "tu", mas achei que a segunda opção dava mais velocidade ao poema e, como recifense, me soava mais natural. Algumas mudanças são circunstanciais: me refiro nas primeiras versões a "encaixotar palavras em cinco livros" porque o projeto inicial de Artur Rogério era uma pentalogia. Quando ele mudou para decalogia, o poema acompanhou a mudança. Há uma mudança que julgo importante que é no verso "mesmo que a sua seja língua e a minha seja olho a sua riso e a minha náusea", que se transformou em "mesmo / que a tua letra seja língua / e a minha olho / a tua letra seja riso / e a minha náusea". Aqui, noto uma força maior na primeira versão, um caso em que o medo da má compreensão acabou retirando a força de um verso. Outras mudanças são pontuais, mas igualmente importantes. Leia-se "como a pupila de l rca soterrada pela areia quente de granada como a presa do cão andaluz mordendo o derradeiro olho de l rca mas l rca não cabe na boca do cão não acaba fed rico numa vala anônima fed rico sorrindo do meu último poema e de teu último livro" em contraste com "como a pupila de l rca / soterrada pela areia quente de granada / como a presa de um cão andaluz / na construção / mordendo o derradeiro olho de l rca / mas l rca não cabe na boca do cão / não / não acaba fed rico numa vala anônima / fed rico sorrindo do meu último poema e de teu último livro". Aqui, incluo o verso "na construção", que é uma referência ao meu poema Fábula, em que um cão observa o corpo de alguém que lhe trazia comida todos os dias em uma construção. Essa imagem se funde à de Lorca e à de Rodrigo de Souza Leão dos versos anteriores. Também acrescento, na versão final, um "não", que nesse caso acredito ter fortalecido a negativa de que Lorca não acabaria ali (a poesia não acabaria ali, soterrada em Granada).

 

dezembro, 2010
 
 
 
 

Wellington de Melo (Recife/PE). Escritor, professor e tradutor. Publicou O diálogo das coisas (Recife: Editora Universitária, 2007), [desvirtual provisório] (Bauru: Editora Canal6, 2008) e O peso do medo: 30 poemas em fúria (Recife: Editora Paés, 2010). Recebeu menção honrosa no Prêmio Nacional Mendonça Júnior de Crônica e Poesia (2007) com o poema "Casa". Organizou, com Lucila Nogueira (UFPE), e traduziu ao espanhol a edição de A musa roubada (Recife: CEPE, 2007), livro de poemas inéditos a partir dos manuscritos da poetisa da Geração 65, Terêza Tenório. Organizou, com Artur Rogério e Bruno Piffardini, a antologia Tudo aqui fora escrito, tudo fora escrito ali, com dez novos autores que produzem em Pernambuco. Com Lucila Nogueira e Juan Pablo Martín, organizou e traduziu ao espanhol a antologia Ventos do povo (Recife: Instituto Cervantes, 2010), edição comemorativa do centenário de Miguel Hernández. Produz o talk-show Laboratório — Literatura & Crítica, que acontece uma vez por mês no Teatro Hermilo Borba Filho e é um dos organizadores da FreePorto - Festa Literária de Recife.