Capa: Luiz Zerbini, Paisagemnaturezamortaretrato (As colunas caíram do céu), Instalação pictórica

Centro Universitário Maria Antonia (USP), São Paulo, 2008


 

 
 
 

 

 

Muito tem sido comentado em catálogos, críticas, resenhas, revistas, jornais, internet e elogios sobre a atuação de determinada parcela de artistas na atualidade. Embora determinados discernimentos e salvo exceções que confirmam a regra, para efeito de exibição, análise, reflexão e construção da linguagem na guerrilha anunciada de signos contaminados e em contínua proliferação (Michael Archer, na sua história concisa das últimas quatro décadas do século passado, alinha o campo expandido das artes que remonta o começo da década de 1960, na opinião de outros, o último estampido das vanguardas) perversa sob olhares atentos das fronteiras móveis.

 

A suposta tentativa de definição (algo em aberto) estética do que seja contemporâneo imerso nas contemporaneidades é uma rara oportunidade que deve ser aproveitada com a devida atenção/intenção de auscultar não somente a poiesis, o discurso e a literatura nas artes visuais com igual peso, medida e sensibilidade (uma palavra que esboça reações para dar conta de si mesmas). São várias metáforas e testamentos na embriagues da criação e confluências de relações que diferenciam as coisas. O seu efeito ótico, pelo menos na recente vida artística brasileira percorre a trajetória naquilo que alguns poucos confirmam e advertem como um nome importante nesta incessante faxina, separando o já diluído de um lado, tendo do outro, as inquietações típicas para investigações mais experimentais.

 

Quem acompanha mais de perto tem o privilégio, em fluxo contínuo, de conhecer e compreender a história e sua interlocuções necessárias. O nó da questão — no laço/lastro das conveniências do mercado — até pode ser contestado pelos curadores, no compasso das concorrências velozes. Todavia, se existe dúvida, cabe enxergar de olhos bem abertos no Trópico de Capricórnio, para comprovar que nem tudo está perdido. Estou a falar de Luiz Zerbini, um artista contemporâneo. Singular, múltiplo, contaminado de maneira fértil e integrante do Chelpa Ferro, que trabalha desde 1995 com sons, imagens, sejam por meios de objetos, performances, CDs, shows e instalações. Sem falar da sua pintura, rica e diferenciada, um dos pontos altos de sua carreira particular. 

 

"O processo todo é muito misterioso. Tudo parece metáfora, são explicações, comentários, os textos, isso vai me ajudando, é como se eu estivesse descobrindo aquilo, desde o começo foi assim. Aquela história do tempo, de eu lembrar de uma outra imagem que estava guardada numa gaveta. Eu já contei isso, não? Eu estava fazendo um desenho e lembrei de uma aquarela que eu tinha feito e guardado para aproveitar um dia, em algum outro trabalho. Anos depois, quando estava fazendo um desenho, lembrei disso. Achei a imagem e, enquanto olhava para ela, reparei o papel meio amarelado. A imagem em si não significava nada demais para ter sido guardada, mas eu lembrei dela por algum motivo e pensei: por que eu fui lembrar dessa imagem agora? Fiz uns cálculos e descobri que ela estava guardada havia vinte anos numa gaveta. Eu fiquei muito surpreso de como aquela imagem estava tão fresca na minha memória e por que ela tinha vindo á minha cabeça naquela hora. Isso acontece muito, é como se o tempo ficasse parado, o tempo fica em suspenso no trabalho. Fico tentando entrar nesse estado andando pra lá e pra cá, começo fazendo uma pintura e do nada, de repente, misteriosamente... É igual quando escrevo. Eu não sei escrever, nunca aprendi a escrever direito, mas do mesmo jeito que, às vezes, baixa a pintura, eu fico surpreso com o que eu faço, sabe, tem um estranhamento. Eu olho para aquilo e duvido que fui eu quem fiz", observa o paulistano em Luiz Zerbini (Coleção Arte BRA. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora e Consultoria, 2010, 192 págs., R$ 35,00), edição bilíngue (Português/Inglês), apresentação de Luiza Mello, textos críticos de Agnaldo Farias, Hermano Vianna, Sergio Romagnolo, além de uma excelente entrevista coletiva, cronologia/biografia (organizada pelo próprio Zerbini em companhia de Débora Monnerat e Luiza Mello) e referências bibliográficas. Um dos mais qualificados lançamentos do ano. Sem falar da rica iconografia. E não esquecendo de citar também, um lembrete: Rasura (dedicado especialmente à pintura de Zerbini), publicado em 2006 e as ilustrações de Alice no país das maravilhas (2009), ambos da Cosac Naify, exemplares importantes na carreira nacional e internacional do artista.

 

Zerbini já participou de inúmeras coletivas e individuais, nas quais destacam-se: Bienais de São Paulo e Mercosul (Brasil); Havana (Cuba); Monterrey (México); Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro; Centro Universitário Maria Antônia, São Paulo; Galeria Fortes Vilaça, São Paulo; Galerie Rabouan Moussion, Paris, França e Galeria Filomena Soares, Lisboa, Portugal.

 

Multifacetada, perceptiva e imaginativa, advindo da Geração 80, sua pintura desenvolve-se a partir de narrativas com apelos domésticos, landscapes e flagrantes urbanos, na balada da fotografia, com cores pulsantes tropicalizadas (sem perder o tom necessário), realçando de alguma maneira uma subjetividade, às vezes abstrata, entretanto, apontando um viés conceitual no qual a materialidade, sobreposições de gestos e procedimentos, luz e sombra, efeitos óticos, jogos entre percepção e representação recriam trocas simbólicas em movimentos contínuos. Textura e cromaticidade rica, luminosa, justapondo estilos e técnicas, subvertendo padrões orgânicos e geométricos, efeitos óticos deslocando o olhar, critério básico da contemplação.   

 

Se o encontro artístico, hoje, está indefinido, sujeito a reavaliações contínuas entre ranger de dentes, angústias e tiros para todos os lados — configurando uma "dispersão de estilos", marca registrada das contemporaneidades, como observa Luiz Camilo Osório —, Zerbini representa uma clara luz com efeitos diferentes. Embate criativo no meio de tanta poluição visual. O livro deve ser lido, visto e refletido como bagagem nesta penumbra ardente à procura de espaços expositivos. Podemos encontrar nele o que há de mais importante na arte contemporânea, o que realmente importa, uma conceituação mais plena do que é a própria arte.

 

Vista da exposição "Trepanações e outros artifícios", Luiz Zerbini, Galeria Fortes Vilaça, São Paulo, 2007

 

"A abertura de Luiz Zerbini para o mundo, para a representação direta das coisas, caminho para o qual ele estava especialmente dotado, colocou-o em uma rota singular. Seu talento inato, sua tendência ao virtuosismo chegou a atrapalhá-lo. Afinal, na altura em que sua carreira começava a deslanchar, o interesse recaia sobre a bad painting, a fatura e a imagética tosca de artistas como Penck, Basquiat e Kippenberg. Quando Rubem Breitman, sócio de João Sattamini na galeria Subdistrito, em São Paulo, ironicamente propôs 'Vejam como sou habilidoso', como título de sua exposição individual em 1988, colocou o dedo na ferida. Foi exatamente esse talento o responsável pela crise quando do seu ingresso no curso de artes plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), entre 1978 e 1981, sob a tutela de professores como Nelson Leiner, Julio Plaza e Regina Silveira, todos sem  interesse pela pintura. A coisa só voltou a funcionar quando entrou em contato com seus futuros colegas da faculdade, Leda Catunda, Sergio Romagnolo e Ciro Cozzolino, cujos grafites lhe interessaram muito. Embora  interrompido por algumas viagens, a passagem pela FAAP teve bons momentos, como quando conheceu Dudi Maia e passou a ter aulas de aquarela com ele na Áster, um centro de estudos criado por Julio Plaza, Regina Silveira, Donato Ferrari e Walter Zanini, que funcionava no bairro do Pacaembu. Lá também fez contato com Leonilson, de curtíssima passagem pela instituição, companheiro na fuga  para as aulas de Nelson Leirner, o mestre de quem teve o ensinamento: 'o trabalho [uma obra de arte] não acaba nunca'. Leonilson, até então enfiado na moda e na publicidade, entreviu nos trabalhos do amigo a possibilidade de ele próprio virar artista. Por sua vez, a qualidade e a desenvoltura dos desenhos de observação do colega, sem muita bagagem artística, levaram Zerbini a questionar os seus, a seu ver travados pelo peso de uma formação específica. Com Leo, ele dividiria o ateliê no Jardim da Previdência, na zona sudoeste de São Paulo, e depois faria viagens à praia de Maresias". [Agnaldo Farias]

 

 

Luiz Zerbini, Sanfoneiro, Acrílica sobre tela, 190x190 cm, 1998

 

"Essa comunhão entre retrato, natureza-morta e paisagem teria soluções igualmente exuberantes nesse mesmo ano de 1998. Se eu tivesse uma guitarra e O sanfoneiro pertencem ao mesmo veio, ao mesmo jardim cultivado por Luiz Zerbini. Com essa sequência de telas, ele atinge o diálogo emocional com o espectador, desde sempre perseguido. É sintomático que o Sanfoneiro seja uma clara homenagem a Luiz Gonzaga, proximidade que ele deixa evidente ao colocar em seu livro, lado a lado, a tela com a capa do vinil Forrobodó cigano, do grande músico sertanejo. Sob o fundo alaranjado, a capa nos traz, à maneira mesma de Zerbini, o gibão e o chapéu de couro apoiado em uma sanfona deitada, compondo o formato do corpo de uma pessoa. Também aqui o homem se definindo por seus instrumentos. E não um homem qualquer, mas aquele que honrou a raiz do forró, o for all dos gringos, referindo-se ao povo da casa, tocando para o povo. O homem que responde à apreensão de Gilberto Gil, preocupado com a banalização de sua música pela divulgação em excesso, explicando que ele trazia música 'pra trocar no rádio', tema de uma música/sucesso do mesmo nome, composta por Gil depois dessa conversa, prova da lição aprendida. E não é isso o que diz Zerbini quando cita Arnaldo Antunes defendendo o rock como veículo de poesia para as massas? Não é esse o sonho de Zerbini, defendido como o sonho do artista em geral — 'a sensação de que se pode mudar alguma coisa' —, se a irradiação da poesia acontecesse em todos os níveis? É justamente neste ponto que reside a exuberância de sua obra, a vontade de levar a todos, quase por impregnação, a potência do mundo. Como um som alto, capaz de vencer as paredes, por mais espessas e indiferentes que sejam". [Agnaldo Farias]

 

 

Luiz Zerbini, A tragédia é um acúmulo de mal entendido, Acrílica sobre tela, 230x320 cm, 1989

 

 

"A história da pintura de Luiz Zerbini é um movimento não linear entre esses extremos. Das paisagens 'urbanas' ao 'barroquismo' das caravelas portuguesas (e de casario baiano servindo como pano de fundo para a passagem de um trio elétrico McDonald's), passando por aquelas naturezas mortas gigantescas que destacavam e amplificavam elementos que podiam estar em outras de suas pinturas. Todos esses quadros podem ser analisados como colagens (característica que o trabalho Brasil Colônia vem enfatizar, iluminando retroativamente a pintura de Luiz Zerbini, daí sua importância e talvez surpresa para alguns observadores inatentos). Uma colagem especial, que tomando como já consolidada a subversão pós-cubista, pode experimentar caminhos mais ousados/'cordiais' como a fusão não declarada de estilos e a mestiçagem antisseparatista de um sampler de imagens". [Hermano Vianna] 

 

 

Luiz Zerbini, Figura sentada, Instalação, Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, RJ, 2009/2010

 

 

"A pintura de Zerbini num primeiro momento aparece sólida como uma parede de ferro e num segundo momento se levanta como se fosse uma cortina de seda e mostra por trás o vazio. A perversidade de Zerbini consiste em dar e retirar, em ser pintura popular e pintura conceitual. Esta exposição resume a mecânica da arte atual: ela se mostra fácil e sedutora, e em outro momento dá o bote, trazendo o veneno do questionamento e da autoconceituação. Zerbini não tem dúvidas do que a pintura é. Se existe alguma dúvida, está nas mãos do observador. A bem da verdade, estas pinturas funcionam como um espelho: se quem olha quer ver um pintor virtuoso, esta visão é possível, mas, se quem olha quer ver um artista que consegue armar sua teia conceitual e nos prender nela, também será bem-sucedido". [Sergio Romagnolo]

 

 

 

dezembro, 2010