"A mais alta função da crítica, além da informação, é o desvelamento amoroso da obra,

tornando-a objeto real de conhecimento e possibilidade única de fruição educadora".

(Jorge Anthonio e Silva)

 

 

Desde a infância, Jorge Anthonio e Silva interessou-se pela comunicação e a estética. Escrevia sempre motivado pelo encantamento e as brechas de um olhar singular. Faz parte da sua educação e ensino. Hoje, na maturidade, as descobertas transcendem em ideias repletas de significados e interpretações, leituras abertas, sobre a imagem. Elegendo a cultura o seu objeto prático da informação e intermediação de sentidos, notamos em Jornalismo Cultural: apontamentos, resenhas e críticas sobre artes plásticas (São Paulo: Pantemporâneo, 2010) uma reunião de textos, cuja elasticidade dinâmica e preciosa tem a sua correspondência em diálogos com o New Journalism. Pois a estrutura frasal, como o leitor poderá observar nos parágrafos abaixo, além de informar e auxiliar na formação sobre as artes plásticas, possui uma tênue sensibilidade poética. Uma narratibilidade que discorre sobre vários assuntos, articulados de maneira sem ser elitista tão pouco rasteira, na qual a potencialidade e manifestação assemelham-se com aquilo que Roland Barthes chama de desvio consciente e sistemático da norma linguística (ao se referir à linguagem poética). Cada imagem, uma estação do olhar. Cada porta, uma fechadura. A chave é a leitura. Escritura como imagem, e nesta breve viagem, paradas obrigatórias sobre a criação artística/poética, desvios e miragens.

Otávio Paz já observava também sobre um tipo de transgressão que nasce da imaginação para compor uma paisagem de vozes dentro do silêncio. No caso do livro de Jorge Anthonio e Silva, muito mais que um silêncio necessário, a contemplação. Buscando sentidos na leitura. Um silêncio que dialoga com o tempo/espaço, a memória e a busca interminável do conhecido em meio ao desconhecido. Impressões, linguagem e pensamento que transitam pelo conhecimento e a história da cultura artística humana. O mais importante é o modo como o autor consegue, por meio de uma delicada, equilibrada e perspicaz sinfonia entre a clareza, humildade, objetividade e detalhes, estabelecer a comunicação e experiências estéticas. Cuja ornamentação é a sedução das palavras. Daí a necessidade de alimentar um tipo de feitiço da linguagem entreamada de incertezas do mundo contemporâneo, como ensinava Nietzche: "Por meio das palavras e dos conceitos nós somos continuamente tentados a pensar nas coisas como sendo mais simples do que são, como separadas umas das outras, como indivisíveis, cada uma existindo por e para si mesma. Existe uma mitologia filosófica escondida na linguagem, que a todo o momento irrompe novamente, por mais cautelosos que sejamos".

 

Manto da Apresentação, Detalhe (frente), Arthur Bispo do Rosário, Tecido, Linha e Metal, 118,5x141,2 cm

Museu Bispo do Rosário, Rio de Janeiro

 

"Dizendo-se ordenado por vozes que o mandaram reconstruir o mundo, Bispo produziu com a paciência de quem não está subjugado pela temporalidade, o objetivo tido como o mais marcante de sua vasta obra com cerca de 900 outros: o Manto. Trata-se de fatura de um grande valor expressivo, riqueza de detalhes e simbologia pessoal, onde abordou uma arqueologia de vivências em desenhos e nomes. Através dele pretendia tornar-se grande e sobrepor-se ao mero sentido da existência no asilo. Queria, um dia, vestir esse manto e tornar-se transparente para encontrar a Virgem Maria. Em 1995 foi um de seus muitos outros objetos, que representou o Brasil na XLVU Bienal Internacional de Veneza. (...)

Outra série de grande expressão é a das faixas de misses. Nelas, bordou nomes de países e de capitais, mais os acidentes geográficos que copiou de seus vários Atlas. Contrariamente ao que muitos afirmam, Bispo nunca saiu do Rio de Janeiro, não esteve nesses lugares distantes que compõem seu rico universo de ícones. Produziu montagens, assemblages, esculturas e uma série de carrinhos infantis que hoje carecem de maiores cuidados, principalmente de conservação, principalmente sabendo-se que usou como base materiais perecíveis, como o papel, o pano e o papelão. Há ainda, objetos que buscou transformar, relações de nomes obsessivamente pintados sobre papel, quadros preenchidos com objetos tornados inúteis após o uso como panelas, torneiras, partes de máquinas, pratos e toda uma parafernália de elementos habitualmente tidos, até como lixo". (Sateljornal, São Paulo, novembro de 1993)

 

A estação de Saint-Lazare, Claude Monet, Óleo sobre Tela, 60x100 cm, 1877, Museu do Louvre, Paris

 

"O Impressionismo foi a alternativa encontrada pelo artista do final do Século XIX, para conceder à pintura um discurso renovador, diante da nova feição impressa à Europa pelo desenvolvimento científico e, em grande extensão, tecnológico. Transformações sociais, guerras, o surgimento de uma nova classe produtora de riquezas, o proletariado, avanços nos transportes e nas comunicações levavam a um olhar já não tão idealizado como no passado. Descobertas científicas e a tendência constante a valorizar o cotidiano foram os propulsores dessa vertente pictórica que, praticamente, se esgotou em sua contemporaneidade. A química expandida a variedade de tintas disponíveis, conferindo às telas os tons puros e mais estáveis que de seu sucedâneo orgânico. A indústria têxtil desenvolveu novas fibras com urdiduras adequadas ao efeito flou nas telas. A indústria gráfica barateava preço e o papel tornou-se base expressiva na nascente indústria de cartazes, revelando Toulouse-Lautrec com seus movimentados e moderníssimos grafismos. Esses elementos chegavam ao artista como um novo arsenal a ser apropriado como auxiliar na busca de novas alternativas para a arte, cujo espectro clássico estava em completo esgotamento. (...)

Para o Impressionismo, a verdade estava no homem com todas as mazelas e imperfeições no reconhecimento do real, que não é, apenas o que se vê. A experiência subjetiva é o que deve interessar à arte pictórica. Para Paul Gauguin (1848-1903), 'é preciso vestir a ideias com uma forma perceptível aos sentidos'. Monet inventa a plasticidade das locomotivas envoltas na fumaça do progresso, definindo novos motivos e volumetrias. A arte torna-se autônoma ao abandonar a função de mera reprodutora das formas vivas. A máquina fotográfica faz isso com agilidade e maior precisão que as tintas e pincéis. A arte deve refletir sobre sua própria natureza, sobre sua essência, sobre a realidade em fragmentação. Pode reproduzir conhecimento e não apenas reproduzir o existente. Os artistas consideravam as cores elementos em mutação. Julgando-as diferentes para diferentes indivíduos, negaram a Leon Battista Alberti (1404-1472) e a Leonardo da Vinci (1452-1519), ideólogos das 'realidades permanentes e independentes'. Discutiram a natureza da matéria que Albert Einstein (1879-1955) estudaria depois. Para René Huyghes, 'o impressionismo não parece ser senão um novo episódio do realismo submetido às exigências cada vez mais precisas do escrúpulo científico'". (Sateljornal, São Paulo, dezembro de 1993)

 

Santuário do Bom Jesus de Matosinhos e Adro com os 12 Profetas, Séculos 18 e 19, Mariana/MG, Brasil

Aleijadinho, Manoel da Costa Ataíde, Bernardo Pires e vários artistas participaram da construção

 

"A palavra barroco surge escrita em 1718, como sinônimo de irregularidade. Em 1797, é considerado 'o superlativo da bizarria, excesso do ridículo', pelo dicionário Milizia em seu Dicionário de Belas Artes publicado em Roma. Posteriormente, é analisado pelo historiador Heinrich Wölfflin (1864-1945) como a arte subsequente e oposta ao Renascimento. Concretamente é aí que começa a história do novo estilo. Mas há controvérsias quanto à etimologia do termo. Para alguns historiadores de arte, a origem é portuguesa, como o correspondente simultâneo 'barrueco' na Espanha. Seria, ainda, a corruptela do nome do pintor maneirista italiano Federico Baroci (1528-1612). Para aumentar a dúvida, o ensaísta cubano Severo Sarduy (1937) acrescenta que barroco significa 'pérola irregular' que um dia os ourives espanhóis chamavam de 'berrocal'.

O Barroco é a arte europeia seiscentista por excelência. Opõe-se ao racionalismo do Renascimento ao qual se insurge como reação estilística. (...)

A porta barroca é um elemento que estabelece os limites entre o sagrado e o profano, arco de passagem ornado com volutas, motivos espirais e cabeças de anjo. Nela está aposta a monumentalidade, primeiro elemento para o divino. No Brasil está representada na famosa moldura em pedra sabão realizada por Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), o Aleijadinho, na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.

É na arquitetura que a pintura vai encontrar grande espaço para expressão. Isso demonstra o poder político do Barroco, sob a égide da Igreja. Com a utilização de cúpulas e duas torres, os espaços internos disponíveis à decoração são ampliados. As abóbadas são adornadas com pinturas de feição celeste, assim como as naves. Efeito semelhante é usado em palácios que receberam a decoração dos arquitetos, em geral, escultores e pintores. A pintura barroca é ilusionista com a utilização da perspectiva arquitetônica para gerar amplitudes espaciais. É o recurso do tromp-l'loeil criando a sensação de infinito. No Brasil desenvolveu-se com o ciclo do ouro em Minas Gerais, na costa de São Paulo e em Pernambuco. Sua maior expressão está em Ouro Preto. Trata-se do Barroco excelente, contrastando com o pobre de algumas regiões de Goiás. É de grande importância no Brasil o artista mineiro Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), responsável pela nave da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. No Rio de Janeiro, seu representante foi José de Oliveira Rosa (1690-1769), fundador da Escola Fluminense de Pintura, um exímio retratista e pintor religioso que deixou rica iconografia no Mosteiro de São Bento". (Sateljornal, São Paulo, junho de 1993)

 

Estátua do imperador Marco Aurélio, única representação equestre de bronze que se conserva da época clássica | Século 2, hoje nos Museus Capitolinos, Roma

 

"A arte romana é, esteticamente, a instância terminal do helenismo. Foi normatizada na Antiguidade, conforme os ditames do idealismo e da razão da Grécia culta. A essa estética ainda amada e modelar, a Europa se submeteu irremediavelmente até o advento do Cristianismo, quando a representação deixou de obedecer ao naturalismo realista. Em 323 a. C., morre Alexandre Magno (356 a.C-323 a.C.)  no momento em que a expressão da cultura mediterrânea era o cosmopolitismo plural grego em um mundo instável sob guerras de dominação frequentes. Um século depois, a expansão grega conhecia os Estados republicanos, também helenizados, mas de língua distinta daquela praticada na Hélade. Roma, em 754 a.C., era um aglomerado de povoados em torno das sete colinas sagradas perto do Monte Palatino,  sulco sagrado, perímetro de contorno do Ocidente. Inicialmente, é uma cidade culturalmente etrusca que ignora a arquitetura pública. Com o enriquecimento do butins (despojos abandonados pelos vencidos) é embelezada em evidente estímulo às artes decorativas. Surgem construções caracteristicamente romanas como as basílicas, destinadas às atividades públicas, em vastas construções, divididas em cinco naves iluminadas por altas janelas, entre as quais o artista imprimia grandes afrescos narrando histórias sagradas. Essa era a forma educativa de utilização da arte para um universo de iletrados. Também populares eram fornix, construções públicas em forma de ogivas que evoluíram para os segmentos arcos do triunfo. Igualmente romanos são os templos circulares e aqueles chamados pseudoperípteros (rodeados  por sequenciais de colunatas), cujo melhor exemplo é o Santuário de Fortuna Viril de Praeneste (século II a.C.). (...)

A escultura romana é copista, com pouca inovação e, enquanto imitativa, foi próxima ao seu modelo original grego, já tão bem resolvido. A pintura, caracterizada pela monumentalidade do mural, foi mais autônoma. Não podia ser transportada como correria com os blocos escultórios espoliados na Grécia ou livremente comercializadas nos portos mediterrâneos. Roma pode desenvolver com relativa autonomia sua forma pictórica a partir de sua obsessão pelas questões práticas. O costume de manter em casa retratos tirados de máscaras mortuárias fidedignas resultou nas imagines malorum, uma tendência realista ao retrato. Após sucessivas transformações, registrou figuras idealizadas, personalidades públicas, caricaturas de contornos realistas, legando ao futuro dados sobre a vestimenta dos retratados, fossem eles imperadores ou pessoas comuns. (...)

No uso de materiais, os romanos foram generosos. Dos pétreos (argamassa polida, pedra natural e mármore) aos metálicos (ouro e ligas, chumbo, prata, bronze e cobre), usaram materiais artificiais (vidro e cerâmica) nas mais variadas técnicas em busca de expressividade. Usaram, ainda, o osso e a madeira, os chamados materiais orgânicos, aos quais deram tratamentos especiais para a obtenção de textura policromada, perdida no tempo". (Sateljornal, São Paulo, novembro de 1992)

 

As meninas ou A família de Filipe IV, Diego Velázquez, Óleo sobre Tela, 318x276 cm, 1656

Museu do Padro, Madri

 

"O jogo de Velázquez faz do espectador mera pedra no tabuleiro de indagações contínuas. Insidiosamente, a obra se apropria do homem entranhado-o no tempo de uma realidade sedutora, eivada de instigação e mistério. Na composição magistral está esboçada a realidade histórica, envolta em maravilhosamente e discrição. As pessoas estão ali. O artista está em seu ateliê no Palácio do Escorial, onde se pode ver quadros na parede, que ainda hoje existem em algum museu. Foram efetivamente pintados por Mazzo, Jordaens e Rubens. Mas a atmosfera densa, oscilante, toca em profundidades distintas da consciência do observador-modelo. Um contínuo poético sancionado por leis regidas pela ambiguidade torna o caráter conclusivo da análise algo fugidio. Como um intrincado jogo de espelhos, vai criando novas formas perceptivas e contrariando as indagações do olhar observador. Se a arte vive da incerteza, do possível, então todo o princípio da arte está ali feito realidade. Do quadro, o homem é convidado a participar em sintonia com o sensível. Satisfeita a avidez do olhar inicial, entram na esfera do conhecimento sentimentos depurados de mistério, inquietação e estranheza. A consciência é acionada para desfazer esse puzzle montado com figuras que oferecem suas partes à desarticulação.

Sobre a presença poética no objeto artístico, Roman Ossipovich Jakobson sustenta que não há natureza morta ou ato, paisagem ou pensamento que esteja, atualmente, fora do domínio da poesia. Ela é o difícil cânone de toda a atividade criadora, uma presença realizável em qualquer processo de expressão e percepção do homem. O tema não é a única fundamentação poética da obra, como em alguns muitos momentos passados. No caso desta pintura de corte, sendo o tema a realeza espanhola, espera-se que o resultado seja um movimento descritivo eloquente e documental. Sob essa perspectiva, Las Meninas já é uma transgressão criativo-poética que se inicia pela elisão do tema: o Rei Filipe IV e sua esposa Mariana. A primeira elipse acontece pela ausência do óbvio nomeado, que deveria ser objeto da adoração no espaço sagrado determinado pela cena. Os monarcas não estão retratados na grande obra; pelo contrário, pelos olhares dos demais são impiedosamente empurrados para fora. Essa ausência é redundante e confirmada pelo minúsculo espelho que adensa os dois rostos sem explicitá-los por inteiro. Mas, seriam Filipe IV e mariana? O espelho é um segundo quadro em processo de confecção, por que é apenas um borrão que pode indicar o retrato real. Está aí um jogo de cifragem pela dupla ausência e pela presença dubla. Presença imperial, absoluta, que se justapõe à de quem observa e também é observado pelo grupo. Entrega a negativa no jogo de escamoteações que para o cubano Severo Sarduy se concentra no Rei, '... centro organizador do conhecimento na sua metáfora solar'. O rei, 'à volta de quem todos giram e que todos vêem,com seu correlato metafísico; o Mestre que representa o olho que organiza, aquele que vê'". (Sateljornal, São Paulo, agosto de 1993)

 

 

 

junho, 2010