Capa da revista O Malho, J. Carlos, Rio de Janeiro, 07Set1922

 

 
 
 
 

  

Um vulcão de criatividade. Nasceu no Rio de Janeiro em 1884. Sua primeira erupção foi em 1902 aos 18 anos no Tagarela. Depois, labaredas em vários livros, revistas, semanários e jornais ao longo da vida: Para Todos, O Malho, Careta, Tico-Tico, Fon-Fon, A Avenida, Revista da Semana, O Cruzeiro, etc. Foi lido e visto de cabo a rabo por todo o país. Além de chargista, publicitário e designer gráfico, supervisionou diagramações e chegou a desenhar para dez publicações ao mesmo tempo. Profusão aquecida e alma flamejante em vários veículos de comunicação social no Brasil das primeiras décadas do século 20. Por outro lado, pacifista, cidadão anti-autoritarismo, descontente e meio libertário. Foi um profissional que soube ler as entrelinhas da linguagem. Rei dos recursos gráficos. Morreu aos 66 anos, na mesma cidade que nascera, num sábado, dois de outubro de 1950, meses depois da perda da Copa de Mundo de Futebol para o Uruguai e um dia antes das eleições que trouxe de volta Getúlio Vargas ao poder. A brasa final: de acordo com a história (uma das versões), seu corpo caiu como um fruto maduro em cima de uma prancheta de trabalho. Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Penha deram-lhe a Graça e Honra de fenecer a última centelha junto daquilo que mais gostava de fazer: caricaturas. Dizem que ao lado estava o esboço da capa de um disco de Braguinha.

 

Colecionador nato, profícuo, ilustrou diversos temas e assuntos (segundo pesquisadores produziu mais de 100 mil trabalhos), Hermes Tropical, faísca e visionário: "Sua clarividência era por via de regra mediúnica. Intuiu o asassinato de Pinheiro Machado. Marcou vinte anos antes do prazo exato em que estouraria a Segunda Guerra Mundial. Antecipou em quarenta anos o desmonte dos blocos de países comunistas e profetizou que a recém-rebatizada Leningrado voltaria a se chamar São Petersburgo. No próprio Malho, cantou três anos antes a pedra de que Washington Luís romperia com Minas Gerais o pacto do café-com-leite1". Só não previu a Revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas.

 

J. Carlos é um reflexo cristalino e crítico — com direito a lavas surgindo do Morro do Pão de Açucar — do processo de modernização e urbanização do Rio de Janeiro. Para alguns, foi um futurista sobre duas rodas. Mas realizou uma interface elaborada com a história. Desde a higienização, traçado urbano, qualidade de serviços públicos, pavimentação, transporte coletivo, sob o olhar maroto, observou em suas crônicas visuais a transformação da metrópole à custa de aumentos estrondosos dos impostos na adequação da capital federal como uma cidade cosmopolita aos moldes de Paris. Contradições das contradições, parece também ter antecipado o caos urbano, pois investiu contra um dos símbolos de um projeto maior da civilização humana: o automóvel. Por extensão, bem atual, pegando um gancho na fagulha do parágrafo anterior, abriu fogo, mirou e acertou sem querer em mais uma previsão: hoje a poluição (principalmente a emissão de CO2) é um problema e tanto mundo afora, sem falar no confuso sistema de transporte carioca.

 

Apoiou a oficialização do Carnaval (1927) e bateu de frente com os "cérebros privilegiados" da época. Colocou "fogo na canjica" da "emergente e estudada" elite carioca. Na década de 1920, o caricaturista, patriota declarado, insistiu em três pontos fundamentais que ainda rondam um projeto maior, edificante e estatuto sério para o emergente Brasil: o analfabetismo, altos impostos e a corrupção política. Oxalá, creio não estar errado, mas J. Carlos é mais contemporâneo (contemporâneo e coletivo seriam os termos mais impactantes) que muitos artistas, os quais pregam um individualismo massacrante, característica da nossa época. Outro detalhe que não pode passar batido: ajudou também na popularização do futebol, não sem antes criticar a importação (Vasco da Gama X Alfândega) dos materiais para a construção do Estádio de São Januário.

 

Faz parte da memória e história gráfica nacional. Teve a visão modernista (como idéia e necessidade), atração e ação para a heresia no espaço das formas, ao utilizar as suas criações artísticas como instrumento de crítica capaz de colaborar no desenvolvimento de uma mentalidade e cruzada cívica em prol dos valores brasileiros. Malhou na bigorna quente tudo aquilo que fosse ao desencontro dos símbolos que caracterizam uma pátria. E o mais importante: o seu conjunto bem-sucedido de obras realizadas, no seu devido suporte, está correlacionado com a vida social. Obras aparentemente inocentes que partem do realismo para subvertê-lo, utilizando de uma liberdade criativa que ironicamente pela visão do espectador, sua experiência e observação, acrescentam ao imaginário coletivo, além do humor e irreverência, um conjunto novo de simbolismos e o antídoto contra o naturalismo (devemos lembrar sempre que o modernismo surge do naturalismo. Parte dele para confrontá-lo. O modernismo é uma reação ao naturalismo enquanto movimento) e uma matriz ainda ligada aos valores conservadores e deterministas. Ou seja, o artista realiza a experiência modernista (parece que inconscientemente, mesmo estando no Rio, por telepatia, dialogava com a turma da Semana de 22. Não temos evidências de ligações ou troca de correspondências dele com os paulistas) da falta de decoro. O interessante também, outro fator que remete ao anti-naturalismo, são as formas, traços, cores e suas combinações inusitadas, distorcidas e exageradas de suas imagens em relação às aparências da natureza. Outra questão que merece ser observada em seus desenhos é o caráter antiacademico, não se prendendo aos rigores e métodos adotados por algumas escolas de artes da época no Brasil. As comparações em relação ao naturalismo e o academicismo são importantes para contextualizar o contraste e a experiência do artista; diferenciar que espécie de tensão e crítica ele salienta em relação à cultura e padrões de valores estabelecidos. Concebeu uma forma alternativa e plural para vivenciar, experimentar e expressar uma percepção sem perder a identidade e o estilo frente às tendências, idéias feitas e crenças dominantes na cultura da época. Olhou para o passado, desviou a direção e realizou a sua progressiva carreira e capacidade imaginativa.                 

 

Reavivou em seus desenhos os principais acontecimentos nacionais e internacionais, nos quais o branco, o negro e o índio (também em menor quantidade os imigrantes) formavam a "tríade da dignidade nacional". Descobriu e embalou o Brasil (principalmente na década de 1920) e manteve a sua atitude pacifista internacional (décadas de 1910 e 1940).

 

Contradições das contradições (novamente!), foi um homem de posições políticas conservadoras, todavia defensor da liberdade de expressão.

 

 

 

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1 SIMAS, Antonio Luiz. O Vidente Míope: J. Carlos n'o Malho (1922-1930). Organização: Cássio Loredano. Rio de Janeiro: Edições Folha Seca, 2007.

 

 

 

 

março, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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