Capa da revista Para Todos, J. Carlos, Rio de Janeiro, 23abr1927

 

 
 
 
 

  

Como é enfatizado pelos estudiosos das artes plásticas/visuais, a profusão é um efeito ou técnica visual notadamente presente nos estilos gótico, barroco e art deco (pautada pelo ecletismo e mistura de vários outros estilos). Também na decoração, peças gráficas, alegorias e adereços das escolas de samba do Carnaval. De acordo com o simbolismo empregado realça a forma, volume, plano, contraste, ordem, desordem e faz interagir os vários elementos e valores representacionais, primado pela técnica e o estilo. Está presente principalmente em configurações estravagantes e agregados informativos. Normalmente comunica enredo, tendência e emaranhado à procura de um clímax ou arrebatação, fruto da abundância.

 

A grande questão envolve a articulação do conjunto na busca de um suposto equilíbrio e harmonia dos elementos de uma determinada composição e a sua linguagem. No meio da quantidade perfaz também a busca da qualidade, num jogo e expediente de investigação e força de comunicação visual. As contemporaneidades são marcadamente o reino da hipervisibilidade, cujo movimento incessante de valores e distribuição das imagens constituem-se um agregado híbrido de excessos e   amálgamas com a leveza e fragmentação, evidenciado pela complexidade das combinações e informações visuais. A figura de linguagem, além do pleonasmo, que mais se aproxima da profusão é a hipérbole e o seu caráter aumentado e redundante. Exagero! Outro aspecto bem atual que reforça os estímulos a partir da profusão apresenta-se nos apelos das propagandas e publicidades, as quais almoçam e jantam diariamente, de noite também, nas mentes do cotidiano e embalam corações e as mais diversas paixões. Sejam na TV, rádio, internet, etc. Vivemos num mundo de acúmulos e faltas. Quem coleciona algo sabe muito bem do que estou falando. J. Carlos, por exemplo, era um colecionador pra lá de exigente e apaixonado. Assim reza a história. Inclusive os vírus também são redundantes. Pragas exacerbadas. Um deles se fantasiou de Cavalo de Tróia e fez uma limpeza no meu PC. Desconfio que ele também gostou da melindrosa e se juntou à multidão de machos tropicais. Rebatizei o profuso invasor de "Arlequim Cibernético".  

 

Pois bem! A profusão é um outro aspecto que ronda a imaginação a partir do jorro de pensamentos advindos do inconsciente. Aí sim faz sentido pensar na subversão da realidade (ou do próprio realismo) e na questão que é justamente estabelecer alguma ordem no meio da desordem, que fatalmente desembocará nas reflexões do surrealismo. Estímulos externos, visualidades em confronto com a exuberância de idéias e criações que brotam de dentro colocam em risco os traços da razão. Despertam um outro tipo de razão e estética. "É preciso instruir o processo da atitude realista, depois do processo da atitude materialista"1, já observava André Bretton na primeira edição do Manifesto do Surrealismo (1924).

 

Em relação à imagem acima, capa da revista Para Todos, a instrução sobre o processo da composição remete, com certa ênfase e de modo reiterado, a um outro aspecto advindo da profusão: o barroco. Pois ela é também uma técnica utilizada para o enriquecimento visual que está associada às questões do poder e da riqueza. Também ao embelezamento e a ostentação. A composição de J. Carlos ressalta estas qualidades da profusão. Pois o poder está com Ela. E dEla brota a ornamentação, o ritmo, acento e apelo visual muito bem trabalhados, usando o próprio nome da revista. Por extensão, para todos os olhares. Admiradores! E o melhor do carioca: a imagem lembra uma ala de uma escola de samba. Capitaneada por Ela, a melindrosa, e sua elegância são os motores da composição. A cor preta na parte de baixo (usada com extrema sensibilidade e de maneira intencional, sendo um contraponto em relação aos traços e cores em suas variadas tonalidades na parte de cima) é o tapete e o elemento visual garboso para o restante das figuras, tendo como base e sustentáculo a mulher. O foco/eixo principal/central parte da passista e seu vestido realçante, complementando a distinção necessária. A perna posta adiante produz uma sensação de que ela sozinha não conseguirá segurar/equilibrar o peso e o ritmo da enxurrada de homens que a contemplam. Novamente, faz sentido falar no preto (cor símbolo do anarquismo; ausência de luz; etc.) que absorve toda a profusão da parte superior, e irradia o ritmo imposto pela caminhada, servindo com uma espécie de freio/amortecedor da multidão, colocando uma certa ordem na marcha, parecendo dizer para quem vai atrás dEla: "Não ultrapassem a melindrosa. Podem olhar, mas não coloquem as mãos. Coloquem as mãos noutro lugar: comprem Para Todos" O contexto da escala, relação tamanho de campo e sua dinâmica, amplia o conhecimento da visualização, pois a aglutinação (reavivamento da profusão ao misturar as cabeças uma nas outras e chapéus, prevalecendo um tom pastel para as cores) é feita com medidas e tamanhos proporcionais na primeira fila de homens, seguindo da desampliação, tornando mais evidente a mulher e a primeira coluna masculina. A desordem e tensão estabelecida na parte de cima da imagem é sustentada/amparada pela cor preta e a figura dEla (referenciais primeiros), eixo vital de toda composição gráfica.   

 

O estilo ornamental, utilizando quase todo o espaço da página, enfatiza um abandono da realidade em favor do mundo da fantasia. Com certeza é isto que se passa pelas cabeças e olhares masculinas que aceleram atrás dEla. A exuberância da imagem ressurge uma postura simbólica e tentação regida pelo desejo e o sonho. Parecendo dizer que a multidão é a estratégia estética e complexa de toda a trama da diagramação. Um amontoado de formas aparentemente bem comportadas. O referencial secundário é este. A tensão, impacto e contraste estão em (re)articular a dicotomia apresentada, estabelecer a harmonia entre os dois volumes que se atraem, as duas referências (a inferior, principal com o título da revista, perna e parte do corpo dEla, com ¼ da página e a superior, secundária com o agrupamento de figuras em profusão, com ¾), que reforça a mensagem através da técnica e desenhos apurados, acertando a forma, disposição e o conteúdo, não dando margem para dúvidas. J. Carlos, com certeza, trabalhava com o conceito de eficácia visual.   

 

 

 

 

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1 BRETTON, André. Manifestos do Surrealismo.Tradução: Sérgio Pacha. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001. 

 

 

 

 

março, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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