Constantin Brancusi | Peixe | Mármore cinza sobre bases de mármore e calcário | 127,3x180x81,5 cm | 1930 | MoMA, Nova Iorque  

 

 
 
 
 

  

Mais cinco outras composições artísticas dialogam com a sinuosidade. Num desdobramento do texto anterior (Sinuosidade 1), a questão inicial que é tentar estabelecer correlações da linha curva e o espaço, contatos e passagem de ações artísticas e relações com o mundo. Acentuando observações sobre o espaço moderno e a subjetividade. Que remeterá, com certeza, noutros textos à discussão do processo de "decomposição" nas contemporaneidades em relação à "presentificação" da modernidade. Nas contemporaneidades convivem infinitos estilos e modos distintos de se fazer/experimentar/observar a arte, um reino híbrido do moderno e várias outras manifestações de vanguardas do passado e ensaios pessoais, misturando tudo ou quase tudo. Gostaria de acrescentar que o termo "espaço moderno" no meu entender tem uma via dupla, um sentido duplo, considerando a questão do imaginário (subjetividade, tanto do artista quanto do espectador) como também os suportes, a superfície dos suportes adotados para traduzir no bidimensional (ou tridimensional, no caso da escultura) toda a ênfase criativa e imaginativa. Logo, faz sentido pensar o "espaço moderno" como uma confluência destes dois espaços (interno, externo e o suporte), um espaço em obras (reiterando: mão-dupla), estabelecendo relações com o mundo. Nas contemporaneidades, podemos dizer que na mistura dos vários paradigmas (pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico) temos uma mão-tripla (pois entra aqui o virtual) e/ou poli-mãos (neologismo), pois as conjugações de experimentações (novamente a palavra) artísticas bebem/jorram de vários lugares e tempos distintos, um "pós-tudo", flexibilização dos limites, no qual tudo é possível e impossível ao mesmo tempo. Um "vale-tudo" medonho.

As curvas da autêntica mulher brasileira (mistura de três raças; mesmo com as pontuações dos críticos sobre a forte tendência da arte indígena e marajoara no artista) na pintura As Nadadoras (1924) de Vicente do Rego Monteiro (único brasileiro participante da Escola de Paris nas primeiras décadas do século 20), refletem a volúpia e o erotismo cor de/da terra. Sensualidade e sinuosidade. Sugerindo um encontro com as nossas raízes, valorizando os traços e transformações no universo da "retratação" da mulher no período. Uma pintura (nu artístico) até certo ponto primitivista ou naïf (parece ser proposital; e os dois termos nas artes plásticas ainda dão boas discussões.), pontuada pelo nacionalismo, linhas e cores contra o naturalismo, louvando a brasilidade e comovendo a linguagem. Presença e diálogos com a Art déco na simplicidade de contrates das formas figurativas em tonalidades claras com o fundo mais escuro, permeado pelas concavidades de cabeças/montanhas/terras no espaço. A dignidade mulata do mutiartista (poeta, escritor, pintor, desenhista e escultor) abriu caminhos, pois foi dos primeiros a pintar de maneira vigorosa os nossos traços. Por outro lado, de certa forma uma antítese da Art decó, temos novamente a presença da Art nouveau no cartaz/poster de alimentos Tropon (1898), de  autoria de Henry van de Velde, considerado pelos críticos um dos principais expoentes deste movimento internacional. Várias linhas curvas tonificantes, em quatro cores, provocam o dinamismo, a mensagem e forças necessárias para as pessoas: realçar a forma e promover o movimento magnificente e nutritivo do alimento.     

O trecho do filme experimental O Retorno à Razão (1923) do americano Man Ray dialoga com o Dadaísmo e o Cubismo. Aliás, ele é um dos fundadores do Dadaísmo ao lado de Marcel Duchamp. É a arte colocada a nu pelo vanguardista, uma atitude que registra o instante curvilíneo dos seios e ventre de uma mulher junto à janela. Explorando a brisa e o deslocamento num jogo de luz fenomenal, confeccionando e valorizando uma intervenção imagética sobre o corpo (interessante, e não pode passar batido, não se lembrar neste momento de As Nadadoras de Vicente do Rego Monteiro), Man Ray estabelece uma maneira bem particular de relacionar-se com o espectador. Deslocando o olhar para a sensualidade de um corpo no qual não aparece a cabeça nem os membros. Parecendo dizer que a pele, os seios e linhas corporais (des)obedecem os limites da razão. Instinto e sensação, o corpo sendo o suporte do sujeito, o lugar de passagem, através do qual a subjetividade também ganha a sua identidade. Um contraponto à razão, explorado pelos reflexos de linhas de uma janela na superfície ondulante na tela, fundindo formas, imaginação e um certo questionamento em relação à beleza. O dorso, tórax e abdome, uma estátua em movimento, cintilante na curva pretensiosa de linhas (que lembram pinceladas) fundidas no espaço, proporcionando um jogo de trocas de luzes, sombras e o sólido preenchendo o vazio. O contorno articulado com o círculo brotando das auréolas e mamilos, nada estático, é a transfiguração, ampliação do próprio conceito de colagem. Rotações e deformações, cruzamento de ilusões, mistura de operações em 360º. A sinuosidade é um poderoso artifício para pontuar o corte de uma seqüência de imagens em movimento e proporcionar novas leituras por parte do espectador, levando-o para um tipo de fronteira, na qual a razão se (des)obedece, tendo em vista que a seqüência anterior é um objeto (nove quadrados ocos de papel pendurado na mesma janela e balançando, tendo a sua sombra projetada na cortina) mais linear na forma. Como observamos anteriormente, a sinuosidade é um recurso visual que desencadeia múltiplas conexões. Pode ditar o ritmo em distinções dinâmicas e estabelecer a complexidade nas partes e/ou no todo. É sofisticada. Pois permite sutilezas na difusão das formas e uma pretensa diluição das imagens. Ou complementa-se por um tipo de olhar que resgata aspectos e singularidades.

A escultura descontínua Peixe (1930), imagem acima, do romeno Constantin Brancusi é um exercício de abstração fora do comum. Revolucionária. Rompe com todo tipo de naturalismo possível. Os formatos dos três anéis cilíndricos numa tonalidade clara de mármore e calcário e o contraste curvilíneo do mármore cinza na parte mais alta flutuam sobre a base, que também não deixa de ser a sua moldura e parte integrante do todo. Uma série de esculturas e/ou bases cilíndricas sustentando uma outra principal em formato de ovo (uma constante nas esculturas de Brancusi), cuja expressão abstrata reelaborada e sígna toma o lugar do peixe. Eis o novo limite de uma fisionomia para além das formas estáveis. Eis a percepção da sinuosidade tratada numa ação, criação e relação de liberdade com o mundo. Imaginação, abstração e sinuosidade, básico do básico que desestrutura: Brancusi. Por outro lado, temos Max Bill, artista e arquiteto suíço, ex-aluno da Bauhaus, líder do Grupo Concretista de Ulm, principal herdeiro das vanguardas construtivistas. Sucessor de Theo van Doesburg, artista e teórico holandês, fundador da escola De Stijl e do Elementarismo. Doesburg definiu os princípios da arte concreta no manifesto As Bases da Arte Concreta, publicado no primeiro e único número da revista Art Concret, em abril de 1930. Com o falecimento de Doesburg, o termo e o conceito foram estudados e reelaborados por Max Bill em 1936. Influenciou Franz Weissmann, Amilcar de Castro e muitos escultores brasileiros. A idéia do Cubo Vazado de Weissmann tem a sua base em Max Bill. Pois a premiação da Unidade Tripartida Max Bill na 1ª Bienal de São Paulo (1951) foi decisiva para o surgimento do movimento concretista no Brasil. Seus objetivos são ilimitados e se diferenciavam dos novos estilos figurativos. Nada há de sentimental, nacionalista ou romântico. Mesmo assim, podemos observar em Max Bill no desenvolvimento da escultura sobre o mesmo tema (Unidade Tripartida, 1948-49), uma junção entrelaçada e expansiva, cambiante do centro vazado e formas circulares, ampliando no espaço as chapas de metal. Arcos e geometrias com simetria, redefinido o campo de expansão. Uma espécie de brincadeira com a simetria. Liberdade com sinuosidade, pulsão e gesto racional criativo de um todo fluído e cambiante. 

 

 

junho, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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