[ cena do filme a chegada do trem à estação ciotat | 1895 ]

 

 
 
 
 
 

  

"O respeito que o cinema tem pelo ritmo e a disposição das coisas. É o que faz com que suas imagens sejam reais. Imagens únicas, essenciais. Este distanciamento, a não-interferência no fluxo da realidade filmada, é para este cinema condição para se chegar a essência do real" [Nelson Brissac Peixoto]1

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Faz sentido relembrar ainda as palavras do descobridor do fantástico no real (título de um notável artigo de Pedro Maciel): "Clássicos são aqueles livros que quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, mais se revelam novos, inesperados e inéditos, quando são lidos de fato". A citação de Italo Calvino se aplica também aos filmes. E o fascínio por Vertov (O Homem da Câmera) e os irmãos Lumière (A Chegada do Trem à Estação Ciotat). Uma película de 1929, outra de 1895. Clássicos da história do cinema, com leituras afins e revelações diferenciadas. No entanto, como aponta o professor de cinema e audiovisual (UFF), conferencista, pesquisador e ensaísta João Luiz Vieira num dos seus excelentes artigos, que circula entre os estudiosos e cinéfilos: "(...) No que se refere ao efeito provocado, à célebre impressão de realidade, até agora parece que o pacto de crença inaugurado lá atrás, no cinema mágico de Méliès, continua o mesmo". Na sua essência, a imagem (devemos ponderar esta gênese) dentro de um pacto icônico e indicial (Pierce), sob diferentes formas de narrativas (literária e cinematográfica, por exemplo), conduz a um outro signo (seu interpretante) de modo que também se refere, sem perder de vista a imagem como uma representação e indícios fabricados, no caso por um objeto (uma filmadora), uma metáfora estratificada do real, que legitima a memória no plano-sequência, pelo ritmo e a disposição ou não da montagem: fazem com que as imagens sejam reais (a partir do seu tempo interno) e o seu "efeito do real" (para Umberto Eco este "efeito do real" é fundamentado no detalhe do concreto que está no filme que dá sentido ao real. O real concreto — pequenos gestos, atitudes transitórias, objetos insignificantes, um automóvel, um trem, etc.)2

na mente do espectador perfaz o elemento referencial que aproxima uma narratibilidade naturalista realista com outras produções mais experimentais.

Guardadas as devidas diferenças de datas e qualidades, mesmo com a câmera estática, plano aberto, tomada fixa, lentes simples (apontando ser uma grande angular), montagem linear, narratibilidade tradicional (eu usaria esta denominação, mesmo alguns teóricos não concordando), realçando o aspecto realista da cena, o filme do cinematógrafo dos irmãos Luimière, cinema de atração, não deixa de ser uma experimentação para a época (pioneirismo), que ajudou o cinema gradualmente substituir, ao longo do tempo, o circo, o próprio vaudeville e outros tipos de espetáculos. Logo, alterna, não podemos negar, a tensão da experimentação (novidade carregada de novos sentidos) e o realismo. A cena do trem em movimento é uma panorâmica (externa, ao contrário também do teatro tradicional) que documenta, não deixa de ser também uma espécie de "mostração e ilustração" direta do acontecimento, todavia regida por um narrador, diferentemente de uma narração mais elaborada que está ligada à manipulação de diversos planos e suas montagens. Bem diferente de seu concorrente Georges Miélès. E sabendo que não foram os irmãos Lumière, os primeiros a fazer uma exibição pública de imagens, mas ficaram famosos e entraram para a história em 28/12/1895. Detalhe: cobraram ingresso.

O experimento dos irmãos Lumière é uma marca da modernidade. Pois vai além da fotografia e foi inovador. Realista ao "imprimir um cunho de verdade. (...) Se adequando a uma concepção naturalista das aparências externas e visíveis do mundo", de acordo com João Luiz Vieira. Mesmo assim, com um olhar diferente e mediador, imprimindo e abrindo possibilidades de conquistas, de progresso estético, de evoluções na linguagem, de tensões e tentações para os espectadores.

João Luiz Vieira também observa o seguinte: "Vertov, em outro viés, recusa o cinema dramático e a encenação, tornando-se figura central no desenho de um cinema não-narrativo, um cinema feito nas ruas, antecipando, de certa forma maneira, todo um movimento voltado posteriormente para o documentário". Vertov apresenta-nos o cine-olho, a construção de um discurso cinematográfico no qual demonstra de maneira reflexiva a sua experimentação, com imagens do mundo, montado-o, desmontando-o, no seu modus operandi descontínuo e movimentado, e ao mesmo tempo realizando uma linguagem decodificada, que remete ao pensamento e a dialética marxista em confronto com o pensamento positivista empírico, consubstanciando um produto final crítico, um discurso crítico, autorizado e competente, uma aventura da linguagem sobre um mundo concreto pensado, analisado, processado e remontado de alguma maneira de acordo com as conveniências políticas do sistema soviético da época.   

Vertov foi um cineasta que radicalizou a questão do movimento no seu método de decifração do mundo e na recusa das facilidades de um tipo de reprodução imediatista. "Por cine-olho entenda-se 'o que o olho não vê' como microscópio e telescópio do tempo como o negativo do tempo como a possibilidade de ver sem fronteiras ou distâncias"3.

A sucessão de imagens em ritmo alucinante criado pela montagem (re)produz incessantemente relações que dificultam estabelecer ligações imediatas na tela. Um cinema cerebral, que necessita de uma contemplação mais demorada nas ruminações dos espectadores. Ao mesmo tempo, o movimento dos olhos nos trechos de Vertov também podem remeter para a ficção, mas a contrapartida, as imagens da cidade preenchendo uma boa parte do tempo de exibição, garante que a fonte é um documentário sobre a cidade, e o documentário está bem mais próximo da realidade que outros gêneros no cinema.

 

[ cena do filme o homem da câmera | 1929 ]

 

No emaranhado e viagem da decomposição da realidade com foco (e sua intencionalidade meio desfocada) na produção de significados por meio do associacionismo com closes de informações de textos/idéias/montagem: interessante às relações formais entre os planos, cujos recortes temáticos dão margens a propostas segmentadas do filme. Dentro do projeto de revelação do mundo pelo e para o olhar, os efeitos da montagem adquire a condição de virtudes (virtù: força e coragem) de uma nova arte. O procedimento de Vertov recorre a uma disrrupção e sequências que preparam para a sequência seguinte (observem a questão do tráfego, os movimentos dos olhos, os intervalos, etc.).   

O intervalo em Vertov, dentro da sua inovação disrruptiva, é uma correlação e amálgama de variações de planos, velocidade, luz, movimento e ângulos, no cinema documentário do cine-olho, a verdade que desmascara, em sua constante oferta de pontos de vistas por parte dos espectadores. Todavia, levado a cabo, num fluxo de imagens muito bem trabalhadas, é impossível o espectador perceber tudo aquilo que se passa ou que passou no plano formal da elaboração da película. Mesmo com a cidade sendo sacudida pelas tomadas de um bonde/trem em alta velocidade, desvendando que ela está despertando.

 

PS: de acordo com alguns diretores, quando se filma com planos-sequências o fluir do tempo tem uma duração bastante próxima do tempo real. O falecido cineasta russo Andrei Arsenevitch Tarkovski (1932-1986) considerava que o cinema surge como uma possibilidade de apreender qualquer fenômeno na sua duração. Para ele a imagem é verdadeiramente cinematográfica quando não apenas vive no tempo, mas quando o tempo também está vivo em seu interior, em cada um dos seus fotogramas. E quem dita isso é o ritmo das imagens. O ritmo é um dos fatores determinantes tanto nas narrativas como na imagem do cinema. E este fluir do tempo se dá não na montagem, mas no interior do quadro. As tomadas são impregnadas de tempo. Um tendência interior do material filmado, a sua natureza e unidade essencial acaba determinando — se soubermos reconhecer este seu significado vital — o ritmo das imagens.

 

 

 

 

 

Notas

 

 

1 PEIXOTO, Nelson Brissac. As imagens de TV têm tempo?. In: NOVAIS, Adauto (Org.). Rede Imaginária: televisão e democracia. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. 

 

2 ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. 9.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

  

3 VERTOV, Dziga. Nascimento do cine-olho. In: XAVIER, Ismail. (Org.) A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal/Brasiliense, 1983.

 

 

 

dezembro, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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