Os leitores de outras obras do israelense A. B. Yehoshua vão encontrar em Fogo Amigo algumas das melhores qualidades que se tornaram marca do escritor: sutileza psicológica, capacidade de desenhar uma personagem — e de fisgar o leitor — com apenas alguns traços, e inventividade narrativa. Quanto à temática, é mais um desdobramento, enriquecedor, em sua obra: a vida familiar israelense, o conflito-impasse entre palestinos e israelenses, assim como a condição judaica na perspectiva cultural e do indivíduo.
Desta vez ele conta o caso de uma família de Tel Aviv, classe média alta, dilacerada pela morte de um de seus membros, jovem soldado, em um acidente militar. Por engano, o rapaz é alvejado pelos próprios companheiros, numa operação de caça a um suspeito. É o "fogo amigo". A ironia da expressão, universalizada pela imprensa norte-americana, espalha-se pelo romance e chega até o exagero, pois o autor não se cansa de explicitar o que mais eficaz se ficasse implícito, algo nada explicável num autor com o domínio técnico várias vezes comprovado de Yehoshua, desde os primeiros contos e o belo romance "O Amante" até sua obra-prima, "O Sr. Máni". O acidente abalou a família e torna-se um pesadelo que muitas vezes é preferível esquecer, na medida em que o dia-a-dia mantém seu ritmo estável econômica e socialmente.
O abalo se aprofunda quando o pai do rapaz, Iirmiahu (Jeremias) viúvo recente, decide permanecer na Tanzânia, depois de se aposentar de um cargo diplomático, e, embora seja impossível, se propõe a esquecer Israel e mesmo o judaísmo. O romance começa quando a cunhada dele, Daniela, decide visitá-lo sem a companhia do marido, Amotz, que fica tomando conta dos negócios de engenharia, da filha um tanto rebelde, do filho que, não por questões ideológicas, mas por tédio, deixa de se apresentar às forças armadas para o serviço de reservista e por isso é detido, da nora sirigaita, dos netos e do pai vítima de parkinson. Formalmente, a cisão familiar é representada pela alternância cinematográfica entre as cenas que se passam em Israel e na Tanzânia. Para as amenidades, levezas e indulgência israelenses, temos a dramaticidade dos diálogos entre Iirmiahu e Daniela na Tanzânia, o auto-exílio que se torna a parte subterrânea do ilusório marasmo de Tel Aviv.
Na verdade, a história dispara somente quando Iirmiahu entra em cena — até aí temos um exercício virtuosístico que cansa um pouco, mas o leitor não se decepcionará. Bastam algumas linhas e a personagem se impõe como a grande figura da história. Com calma ele atira ao fogo os jornais israelenses que a cunhada levara de presente, assim como as velas comemorativas de Hanucá, a Festa das Luzes (o romance se passa durante os dias do festival e é mais uma alusão ao fogo amigo). Ele diz que não quer mais saber daquilo. Aposentado, trabalha como administrador de uma missão científica da Unesco, que busca a origem do ser humano na África. Assim como ele procura um sentido para a expressão fogo amigo e para o fogo em si, como fonte de vida e agente mortal, a partir de uma releitura própria dos profetas, que ele execra e o fascinam.
O ponto crucial da contradição é que Iirmiahu se encontra num ambiente de violência incontrolável. A enfermeira da missão científica, uma sudanesa deslumbrante, educada na Europa, teve toda a família dizimada porque seu grupo era identificado pelo tom mais escuro de pele... Mas isso não o atinge. Ele pretende que o isolamento por si só acabe por concretizar o ideal de se desligar da morte do filho, provocada a rigor por um simples gesto de respeito pelo outro, num instante em que o conceito de humanidade se torna supérfluo, e do passado em geral, tão estúpido quanto essa expressão fogo amigo. O mesmo fogo das velas, dos rituais judaicos e pagãos, do preparo da comida e da bala que lhe roubou o filho. É admirável o resultado obtido por Yehoshua na construção dessa personagem, mistura de estupor, fúria e sensualidade reprimida que explode de maneira surpreendente na órbita do coração das trevas. É aí que Yehoshua dá sinal do seu grande talento de ficcionista. O que compensa os deslizes.
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Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo
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setembro, 2010