Pouco antes de morrer, o escritor português José Saramago deu uma entrevista intrigante. Estava com a voz débil, um evidente contraste com contundência normal da sua fala em outros encontros com jornalistas ou intelectuais, e contou da sua experiência com a morte que já então lhe rondava. Disse ter visto, na parede do hospital, quatro luzes — o insólito, como declarou — era que ele se projetava na visão: dava-se como se estivesse representado nos pontos luminosos. No mais, como aduziu — e esse talvez fosse o que mais o supreendera — de repente, vieram-lhe palavras que ele havia esquecido. Do que ficou da sua experiência — e parecia deixar claro que houvera apenas um vislumbre da morte eminente — era como se tudo lhe voltasse desde a infância até o instante que ele julgava ser o último da sua existência. Richard Strauss, compositor austríaco, escreveu um poema sinfônico institulado "Morte e Transfiguração" e quando estava à morte, confessou ao filho que o que imaginara na música, era exatamente o que lhe estava a acontecer naquele instante.

Strauss era católico, devia acreditar numa outra vida. Saramago nunca escondeu, como comunista, que era agnóstico. O surpreendente da entrevista, porém, não era que se imaginasse num processo de transfiguração como acontecera com Strauss — mas bastante fraco, a balbuciar as suas impressões, que ele mesmo julgava estranhas — parecia sugerir o que talvez lhe fosse essa outra realidade do ser, de todos os seres — a morte. Parecia, em suma, concordar, pelo menos em parte, nem tanto com a morte. mas com a possibilidade da transfiguração.

O assunto, porém intriga, porque a morte intriga. Por ser o único contraponto natural à natureza da vida, a ninguém, nem mesmo aos homens santos, ou tidos como tal, e que teoricamente vão se encontrar com Deus, parece se colocar a questão como tal. Pelo contrário, o que todos sentimos — a começar pelos vivos — é que a morte, o mais natural para quem vive, será sempre um problema a lastimar. Nos muitos episódios que escreveu sobre suas aventuras no Oriente, o português quinhentista Fernão Mendes Pinto demora-se algumas páginas sobre a morte de São Francisco Xavier, jesuíta que morreu de causas naturais e que, ao que tudo indicava — já que foi canonizado como santo pela Igreja — não se achava nenhum pouco animado com a perspectiva de, por fim, ingressar na vida eterna. Sofreu terrivelmente e teria se queixado em terríveis sofrimento, da doença que o vitimava. Aparentemente, a se crer em Fernão Mendes Pinto que dizia ter assistido seus últimos momentos, não sentiu qualquer experiência como a sugerida por Strauss: segundo Mendes Pinto, a transfiguração, se lhe ocorreu, só ele soube dela.

Menos mal, parece, que José Saramago sugerisse que algo de ficcionável lhe tivesse acontecido, pouco antes de "a morte levá-lo", como se diz. O grande artista que foi — como sucedeu com Richard Strauss — pelo que deixou da entrevista, a sua última na verdade, pretendia, mais uma vez, transformar em estética a sua experiência Não teve tempo - mas, pelo menos, encontrou a história como uma possibilidade. As palavras há muito esquecidas que ele admitiu terem lhe ocorrido, era a resposta previsível ao que lhe tinha acontecido. Mas talvez não lhe fosse, afinal, uma experiência estranha.

Num dos momentos mais bonitos de um de seus melhores romances, "Memorial do Convento" — mais tarde transformado do em ópera — Saramago conta de como uma das protagonistas, por sortilégios da sua condição de bruxa, consegue roubar a alma de seu amado que está sendo queimado numa fogueira da Inquisição: ela lhe poupa do sofrimento, fazendo da morte rápida, milagrosa por seu olhar, a única solução, como prova de seu amor ao homem que irá sofrer demais. Pode-se imaginar, para consolo dos que admiravam Saramago, que isso, afinal, quem sabe, estava lhe sendo anunciado na primeira experiência de morte, a que ele teve e que relatou no tal programa da televisão portuguesa. São, porém, conjeturas.

Até quando se sabe, nada disso constou nos panegíricos que a TV europeia apresentou ao grande público como parte de suas exéquias. Muitos de seus colegas falaram, naturalmente, da sua "imortalidade". De fato, os artistas almejam, quase todos, essa condição. Nunca ninguém provou que Van Gogh, Machado de Assis ou São Francisco Xavier tenham qualquer consciência da sua importância onde quer que estejam, se estão, de fato, em algum lugar. Bela Bártok, compositor húngaro, certamente um dos maiores do século XX, não chegou a lamentar a morte pelo fim que ela representava para ele, individualmente, mas dizia — e certamente mais para seu prazer dos que lhe apreciam a música e que, por isso mesmo, até o "adoram" — que era lamentável estar à morte: havia muita música — bela música — que ele ainda teria para compor. José Saramago não precisava dizer isso — sugeria, porém, que a experiência de alteridade que teve, a de se ver desde a parede, transfigurado em luz, podia se transformar num conto, num livro, sabe-se lá: o ocorrência de palavras que lhe eram estranhas ao seu dia a dia, talvez fossem uma outra forma que ele estava buscando para continua em sua aventura de escritor.

Na verdade, pode-se conjeturar muito sobre a aventura dos artistas em suas respectivas vidas. Coisa meio de santos, quem sabe. Villa-Lobos resumia a questão, ao dizer, que escrevia cartas à posteridade sem esperar respostas. Todos os artistas, parece, fazem isso. Por mais sucesso que tenham, como o próprio Saramago e Villa-Lobos, mas não Van Gogh ou Camões que morreram na miséria, a questão parece ser a de perseguirem certos ideais que se bastam em si mesmos, não visam a se impor, muito menos a se tornarem imortais. Como se diz, ninguém provou ou prova de que haja outra vida. E que será um consolo saber-se apreciado e glorificado pelos homens — sejam nos altares, como acontece com os santos, sejam nos livros ou nas partituras ou nas obras dos artistas plásticos que hoje se espelham pelos museus. No fundo, ficam os mistérios — os dois: a da vida que, afinal, acontece como coisa natural. E a da morte também. Para quê? Todos têm suas respostas que não são suficientes para convencerem todos os homens de que somos imortais ou que a imortalidade das obras compensam perante a inevitabilidade da morte individual.

 

junho, 2010