paul gauguin

 

 
 
 
 

  

       O programa político começou, e não há rádio ou televisão que nos poupe de ouvir promessas gastas, sorrisos forçados ou cançõezinhas medíocres. Aristóteles foi um dos que cunhou a expressão "mediocritas": referia-se ao meio termo que é certamente o ideal que os políticos buscam — e não para se definirem como "medíocres", mas para se porem como ponderados, passíveis de ouvirem outros argumentos que não só os seus — ou seja, nesta época, mais que nunca, se postam como "bonzinhos", para dizer tudo. Adorno desconsiderava radicalmente a expressão: o meio termo seria, como dizemos, a melhor forma de não assumir compromissos sérios com ninguém e com nada.  Há diferenças, portanto, na consideração do termo. O pintor Paul Gauguin, em seu ensaio de uma autobiografia, disse ter de se esforçado para não despejar seu ódio sobre um general encarregado da repressão que se seguiu à Comuna de Paris. Ele contava, num bar, entre um e outro copo de vinho, como glória, que mandara fuzilar um menino de 12 anos. Sabia que a criança não tinha nada a ver com os membros da Comuna. Mas tinha de dar um exemplo público de rigorismo. Não era um medíocre. Tinha orgulho de ser um façanhudo. Guerreiros são sempre radicais; orgulham-se de não tergiversarem em torno de nada. Era disso de que se louvavam os militares nos tempos da Ditadura. Talvez seja esse o contraponto da maior parte dos nossos políticos. Eles sabem que vivem num país não muito rigoroso em muitas coisas. A boa propaganda estaria em não radicalizar.  Seria essa, então, a medida do "homem cordial" como definiu o brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda? Deve ser, pelo menos em parte.  Mário de Andrade insistiu na tese da nossa preguiça congênita que se exclama no Macunaíma, a cada suspiro: ela expressaria a indisposição dos índios em não trabalhar senão para a subsistência — nunca para o empreendimento capitalista — aquele que produz para o futuro e que, afinal, ao ser implantado justamente em São Paulo (como parte da nossa "modernidade"), espantou o escritor. É o que ele deixa expresso no seu poema ao rio Tietê: a previsão do comprometimento de suas águas faz-se em torno não da poluição doméstica, que já deveria ser comum e pesada na época, mas nas águas "oleosas": elas adviriam de uma fonte qualquer, de uma indústria algures. Mas seria um traço genético? Fosse isso, o Brasil não se industrializaria. Ou as coisas não se definem por aí?



evaldo cabral de melo

       No livro que dedicou à guerra que o Brasil português moveu contra a Holanda, no século XVII, o historiador Evaldo Cabral de Melo, demonstra que não fazia parte do Império Português sugerir aos moradores do Brasil, qualquer tolerância com qualquer invasor. Para certa historiografia — inclusive pernambucana — para a qual a reação de Portugal e os brasileiros não teria sido uma guerra de verdade — os milhares de mortos assinalados pelo historiador pernambucano são uma demonstração inequívoca de que os batavos não se depararam com cordialidade alguma. E que se o "não" radical lhes era irrelevante — erraram de cálculo. Matias de Albuquerque, governador e general das tropas luso-brasileiras — na primeira invasão — moveu uma guerrilha intermitente contra um dos exércitos mais poderosos da época — nada menos, em suma, do que uma guerra radical. Complicado exercitar uma gênese por aí.

       No entanto, não somos dados, parece, a "extremismos" — seria essa a palavra? Os políticos que bradam contra os corruptos, ou que conclamam guerra à pobreza, ao analfabetismo, ou à situação agrária, ou que dizem exatamente o contrário de tudo isso, estão quase todos concordes em que o pior não é certamente o melhor.

       Villa-Lobos sem pensar nesta instância exagerava os termos do que se pode considerar a sua "brasilidade". Escreveu uma música muitas vezes torrencial. E exagerou, muitas vezes, na grandiosidade da sua concepção: ela é raramente intimista. No entanto, naquilo em que tinha de dizer das três "raças tristes" de que falava Olavo Bilac, até que foi convincente: o "Canto do Sertão" da sua bachianas número 4, lembra em muito aqueles versos de outro poeta, Manuel Bandeira, que lá pelas tantas, no "Vou-me embora pra Pasárgada" diz textualmente estar "triste de não ter jeito". É realmente de uma tristeza cava, a mais funda possível, que se faz a música do grande compositor. Ao ouvi-la, pensa-se que o tal "homem cordial" é capaz de não ter outra coisa a fazer do que chorar, de ser "triste de não ter jeito".

       Os artistas talvez não se afigurem sempre os que o melhor dizem da história de um povo. Sob este aspecto, talvez valham mesmo os testemunhos oculares, os historiadores, os cronistas. Júlio César contou, com a objetividade de um grande militar, os percalços de suas conquistas na Gália. Não deixou dúvidas quanto à belicosidade dos romanos, mas não menos o quanto a sua reivindicação, que se opunha aos "bárbaros", continha, ela mesma, na sua radicalidade, a intencionalidade de uma crueldade sem limites. Cristo foi crucificado dentro do imenso repertório de torturas que os romanos reservavam aos malfeitores ou aos inimigos de Roma. No entanto, em seu relato, o primeiro imperador romano antecipou uma das melhores peças de marketing que alguém poderia conceber em seu tempo: depois de exterminar milhares de pessoas (alguns falam em milhões), de "inimigos" — ninguém melhor do que ele para governar Roma a seu talante. O povo adorou.

       Maquiavel, em seu texto — "O Príncipe" — antecipatório da "Realpolitik", não parece ter feito qualquer distinção entre a radicalidade e a tolerância; tudo se daria em conformidade com as conveniências. Dependendo do tempo e do lugar, as coisas se fariam, ou aos berros — como parece ter sido com Hitler — ou com "jingles", como parece estar sendo conosco. Menos mal, certamente, que os "jingles" sejam medíocres — ou francamente horrorosos. Parece preferível aos brados dos profetas retumbantes, que delimitam as coisas, ou ao "eu" ou ao "dilúvio".

       Apesar de tudo, porém, não sabemos se, afinal, a "mediocritas" será sempre protagonista da nossa tradição política. Na parte que nos cabe da história portuguesa — o mito da cordialidade não parece ter muita vigência. Para voltar ao rechaço da Holanda em sua tentativa de dominar o Brasil — ou parte dele — os portugueses e seus vassalos, — vale dizer, os nativos brasileiros e os escravos africanos e índios —  foram  de uma ferocidade radical na luta contra os invasores. Tratava-se de repelir um dos primeiros empreendimentos capitalistas, concebidos como guerra: os quase setenta navios holandeses que começaram a invasão estavam a serviço de um empreendimento comercial, da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Qualquer semelhança com as empresas petrolíferas que incentivaram a invasão do Iraque por parte dos americanos — ou mesmo do Afeganistão — está longe de ser uma casualidade. No caso do Brasil português, porém, ficou a lição para o futuro. Depois da derrota holandesa — o único povo a disputar com os ingleses o predomínio dos mares no século XVII — o exemplo malogrado dos batavos parece ter arrefecido o entusiasmo possível de outras aventuras de outros países. O grande quadro hoje existente no Prado sobre esta batalha, de autoria do espanhol Juan Batista Maino, "La recuperacion de Bahia", não chega a ser qualquer peça de marketing do episódio. Nele não se distinguem grandes loas aos almirantes que reconduziram a Bahia aos seus primeiros colonizadores, muito menos exalta a figura do rei comum dos portugueses e espanhóis: o que se vê no primeiro plano é uma mulher com o filho, ao lado de um ferido da batalha, e em quase em quadrinhos, na parte detrás, então, os dignitários. A rigor, uma alegoria. Mas celebra uma vitória que bem ou mal, manteve o Brasil na órbita portuguesa e deixou claro que faltou competência militar para que os holandeses nos dominassem como pretendiam. 

 


la recuperacion de bahia | juan batista maino

 

       O episódio não tem nada a ver com o atual momento político brasileiro. É apenas um instante em nossa história de pouco mais de 500 anos. Mas talvez denotem uma vocação para o acordo, a discussão, quem sabe até, para o que nos é relativamente novo — a democracia, ainda que mais formal do que de fato.

       Não se sabe, aliás, em que é exatamente que a arte refletiria essa situação. Um crítico disse que a arte brasileira era medíocre em comparação com mexicana, por não termos tido uma revolução como aquela que manteve, até bem pouco, um partido único a comandar a primeira nação latino-americana abaixo do Rio Grande, do grande mundo anglo-saxônico.  Fica, não para variar, a dúvida se milhares de mortos produzem grande arte. Os muralistas mexicanos fizeram grande arte — talvez a melhor, do gênero, na América e como parte dos que lhes pareceu uma revolução salvadora. No mais, em que é mesmo que o México é exemplar? Talvez em muitas coisas, não necessariamente em sua vida política. Mesmo assim, para alguns, parece que a história se realizaria a partir do magnífico quadro de Delacroix "A Liberdade guiando o povo" — um quadro que só se fez como ideal, nunca como realidade, nem mesmo na França republicana.

       Os povos não se guiam por quadros, embora também se possa dizer o mesmo sobre os "jingles" e a propaganda eleitoral obrigatória a que somos submetidos a cada eleição. Reduzir tudo ao político, parece ser mais que um exagero; é a forma de não se pensar que a totalidade vai da complexidade da história, à simples "mediocritas" entronizada como a melhor forma de seduzir o eleitor num determinado período histórico. Não faz bem para os ouvidos ou para o bom gosto — mas parece preferível isso, ao silêncio que se seguia à mudança de generais  na presidência do Brasil, na época da ditadura recente.

 

 

setembro, 2010