O Acácio recusou-se a ficar aqui em casa. Surgiu as três vezes sentado no chão, na calçada ao lado da porta do prédio, me esperando, sempre nos horários exatos, com os dentes mais sorridentes do mundo, nem parecia que tinha ficado no sereno, o orvalho qual gotas no cabelo dele. Três dias seguidos materializado diante de mim atônito.

 

— Parto.

 

— Parte? ou parto?

 

O meu irmão não era muito de ouvir, preferiu sempre espalhar conversa afora, estranha a hesitação dele comigo, queria contar algo que não conseguiu.

 

— Você tem tempo?

 

Ofereci a casa, a cama, mais de uma vez, mas ele era bem mais de surpresas manhã adentro do que eu; sem falar dos assuntos incógnitos: nada de trabalho, ou família, falou da consulta às cartas do tarô e da perseguição a ele, cada outdoor na rua, um aviso pra fugir das cidades que veio galgando até mim. Do país, inclusive. Viver é respirar sem culpa e suplicava na minha frente, achando que resgatava e pagava uma dívida esquecida, de tão antiga. A primeira caixa com livros, nos braços dele, a voz mudada não me deixaram reconhecer o rosto, todo traços que retive pra posterior apreciação quando nos separamos. Ele é diferente de mim fisicamente, mais magro, com a cabeça sempre procurando por movimentos furtivos na sombra da visão periférica. Parece com o pai, que era o mesmo que o meu, acredite. Era enorme a caixa que depositou aos meus pés, o esforço escondido em um sorriso.

 

— Espero que goste.

 

— Me ajuda a levar lá pra cima.

 

Acho que o Acácio achou meu apartamento pequeno, ou desarrumado, um dos dois. Mal desconfiava que a caixa duraria menos do que ele previu, ali. Fechada, joguei prédio abaixo. A cada lance de escada, uma gota de suor manchou o papelão, abri a porta que dava pra rua. Cinco minutos na calçada em frente ao prédio, alguém já abriu pra checar o conteúdo. Dez minutos, já levaram metade dos livros. Vinte minutos, nem a caixa estaria mais lá pra contar a história. Mesmo sob chuva, é rápido assim se apropriarem do que nunca quis revelado. No primeiro dia, meu irmão ainda tinha que fazer caber a vida inteira num monólogo disfarçado de conversa. No segundo, quis perguntar coisas por esse viés estranho que sempre usou.

 

— Quando foi seu último suspiro?

 

No terceiro, me acompanhou até o trabalho e aguardou o fim do expediente como um índio, agachado perto de uma parede. Algo pairou, o Acácio só me convenceu de que a história dele ficava incompleta porque o pedaço ausente é impublicável. Ser inconveniente plantado à soleira da minha porta. Parar de pensar porque quis esquecer que ele um dia. Que ele um dia nada, reticentes tratávamos o presente igual ao passado e o passado igual a um cachorro que expulsamos de casa.

 

Que meu irmão um dia trabalhou pra trazer dinheiro pra casa. Minha mãe conseguiu um empreguinho pra ele, mais leve por ele ser mais novo, um que eu já tinha feito, vender rosas por aí adiante. Sempre que ela arranjava esse emprego pra alguém, a pessoa tinha oito anos de idade, um pouco mais, um pouco menos, e era capaz de imitar no rosto um sofrimento que se existisse de verdade, era só na cabeça dela. E treinava a gente pra fazer cara de coitado, mais pra vender as rosas, mas também pra cortar cana, engraxar sapato, lavar e secar louça. O Acácio era bom nessa cara; até o cara que pagou cinco reais ao meu irmão por cada vez que o comeu concordou com isso. Lacrimejou muito às escondidas em casa e só depois da quinta vez, um tapa da mãe trouxe à tona o porquê do choro. Conta-gotas com que pretendeu esconder a recorrência dos fatos. Longe de ser sexo, o que o afligia foi não conseguir acobertar.  Um tapa meu só trouxe à tona mais lágrimas afloradas fecundando o rosto. De costas pra mim, recolhido em decúbito dorsal virado pro encosto do sofá, alguns socos e chutes bastaram para marcar manchas na blusa dele: e nada de grunhidos, reclamações ou se virar pra me encarar. Mãe resignada ao filho aleijado corrigir o filho bicha. Que aceitava punição sem questionar. Que aos prantos descarado num murmúrio antes do primeiro tapa, confessou que doeu no começo, que só quis ajudar a família, que agora não doía mais. Ninguém pediu ao Acácio nada mais do que a única coisa que ele desrespeitou. Minha mãe convulsionando de choro e alaridos cacarejava pra vizinhança que agora se assomava à  janela da nossa casa; indecisa entre entrar e intervir, ou só contemplar o espetáculo.

 

— Você sabia, meu filho, que teu pai foi embora com um desses? Acabou o espaço pra gente assim no coração de Deus. Não se perdoa a quem desvia dos desígnios dos céus. Já me basta um filho inútil pra trabalhar, agora me vem o outro com essa porcaria.

 

O Acácio correu, pulou pela janela, esquivando da multidão espectadora ajuntada lá fora. Descalço tropeçando em uns pneus, atropelando gatos, sumiu de vista. Minha mãe me mandou buscar o irmão onde quer que ele pudesse ter ido; cansado, saí e dormi na frente da porta de ferro de um açougue, sem a mínima vontade de voltar pra casa ou prosseguir. Já deviam estar longe os dois parentes que eu tinha a essa altura. Só faltou lembrar da minha irmã, recolhida debaixo da cama. Bastante tempo depois desse dia, em que eu deitado vi numa estrela um apagamento que achei parecido com ela, minha irmã surgiu de imprevisto na vida nova também. Antes do Acácio, deu certeza que não lembrava desse nosso último dia como família, nem de por que eu fui e o Acácio foi.

 

Meu irmão tratou a vida pregressa como um episódio não acontecido, relevou e eu por medo de mencionar deixei passar. Mas uma desconfiança mútua. Mas um auto-respeito falho. Três dias em que pra me livrar desse atrito de uma vez, era cordial com o Acácio, quis protegê-lo de novo, dessa vez mais de si mesmo do que de caras que te abordam oferecendo carona. Passou, não sem assuntos de sempre entre irmão ser ignorados, ele curioso por coisas bestas da minha vida. Atropelamos o que nos separou, sem nos virarmos pra ver se isso ainda se contorcia de dor no meio do asfalto. E nos contorcíamos, um ímpeto me eletrocutava por dentro.

 

Sangue corria a despeito dos esforços para conter que recompuséssemos laços. É foda pensar que a mesa esteve ali pra esclarecermos ao invés de preferirmos não fazer. E preferimos. Sem caixa nos dias seguintes, o que os dois queríamos é que acabasse? Acabasse o quê? O fingimento, talvez. Não, acho que ele era sincero em querer reatar, mas eu não considerava seriamente em reavivar espinhos tão antigos entre nós.

 

Três beijinhos no rosto, passagem comprada pra fora daqui, recusa ser levado ao aeroporto ou dinheiro pro táxi. Também não vi a sombra das malas do Acácio, ao término do último nosso parágrafo juntos o que nos separou foram caixas.

 

   

 

Hugo Crema. Escritor não publicado, poeta e estudante de Letras. Brasiliense, é o que sobrou do poste tentar iluminar a lua. Um espirro no silêncio e o eco no fundo sem abismo. Mesmo que isso seja uma mentira novecentista demais até para quem acredita em mentiras. Twitter: @HugoCrema